Certa arte

Conversando recentemente com minha mãe, lembrei do filme “Flores raras” e do poema que enquadra o filme, um poema lindo, lindo, da Elizabeth Bishop, chamado “One art” (“Certa arte”). E resolvi reler o poema e rever o filme

Fotomontagem feita com as fotos de: Dmitry Ganin/Pexels e Emiliano Arano/Pexels

Vi há alguns anos, quando ainda morava em Xangai, o filme “Flores raras”, dirigido por Bruno Barreto, com Glória Pires. Como foi bom ver um grande filme brasileiro estando tão distante do nosso querido país! O filme é a estória do atribulado romance entre a paisagista e urbanista, Lotta Macedo Soares, uma das responsáveis pelo planejamento do Aterro e Parque do Flamengo, e a poeta americana, Elizabeth Bishop.

Conversando recentemente com minha mãe, lembrei do filme e do poema que enquadra o filme, um poema lindo, lindo, da Elizabeth, chamado “One art” (“Certa arte”). E resolvi reler o poema e rever o filme.

Dessa vez, gostei ainda mais do que da primeira. Bruno Barreto mostra várias coisas bonitas – o maravilhoso Rio de Janeiro dos anos 1950, por exemplo –, mas a mais bonita é a maneira como ele abre o filme com esse poema, ainda incompleto e embrionário, e termina com ele, acabado e comovente. Fica subentendido que Elizabeth só pôde concluir o poema, que trata da arte de perder, depois de ter vivenciado e sofrido a perda – a perda catastrófica da pessoa amada.

O poema é este:

One Art

  • The art of losing isn’t hard to master;
  • so many things seem filled with the intent
  • to be lost that their loss is no disaster.

  • Lose something every day. Accept the fluster
  • of lost door keys, the hour badly spent.
  • The art of losing isn’t hard to master.

  • Then practice losing farther, losing faster:
  • places, and names, and where it was you meant
  • to travel. None of these will bring disaster.

  • I lost my mother’s watch. And look! my last, or
  • next-to-last, of three loved houses went.
  • he art of losing isn’t hard to master.

  • I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
  • some realms I owned, two rivers, a continent.
  • I miss them, but it wasn’t a disaster.

  • — Even losing you (the joking voice, a gesture
  • I love) I shan’t have lied. It’s evident
  • the art of losing’s not too hard to master
  • though it may look like (Write it!) like disaster.

O meu gentil leitor não tem obrigação nenhuma de saber inglês. Assim, traduzo, sacrificando, porém, a rima:

Certa arte

  • A arte de perder não é difícil de aprender;
  • tantas coisas parecem repletas da intenção
  • de serem perdidas que sua perda não é nenhum desastre.

  • Perca algo todo dia. Aceite a afobação
  • de chaves perdidas, a hora mal-empregada.
  • A arte de perder não é difícil de aprender.

  • Pratique então perder mais fundo, perder mais rápido:
  • lugares, e nomes, e para onde você queria viajar.
  • A arte de perder não é difícil de aprender.

  • Perdi o relógio de pulso da minha mãe. E olhe só! a minha última,
  • ou penúltima, de três casas queridas, se foi.
  • A arte de perder não é difícil de aprender.

  • Perdi duas cidades, lindas. E, mais ainda,
  • reinados que tinha, dois rios, um continente.
  • Sinto falta deles, mas não foi um desastre.

  • — Mesmo perder você (a voz alegre, um gesto
  • que amo) não terei mentido. É evidente
  • a arte de perder não é tão difícil de aprender
  • embora pareça (Escreva!) um desastre.

Poesia é, por definição, aquilo que resiste, heroica e obstinadamente, à tradução. Perder a rima, a musicalidade da rima, é uma perda irreparável, eu sei. Há quem questione se vale a pena traduzir assim. Encontrei na internet algumas traduções do poema, que procuram recriar as rimas em português, mas são desastrosas. Melhor nem ter tentado recriá-las. Creio que consegui preservar, pelo menos, o ritmo e o sentido.

Poeta americana Elizabeth Bishop I Foto: Wikimedia Comons

O poema de Bishop é uma pequena obra-prima, não é mesmo? A força das palavras! A sua capacidade de evocar o sofrimento, de estilizá-lo e torná-lo, assim, um pouco mais suportável! A linguagem é simples, como uma conversa. Mas vai num crescendo, e vamos percebendo, aos poucos, que a arte de perder, ao contrário do que se proclama insistentemente, em refrão repetido a cada verso, não é nada fácil de aprender.

As perdas no início são pequenas, triviais, “chaves”, “a hora mal-empregada”. Em seguida, “lugares”, “nomes”, e “para onde se queria viajar”. Mas aí vem a referência à mãe, e às casas queridas, que aumentam a intensidade emocional. Depois aumenta a amplitude: a perda é de cidades inteiras, reinados, continentes – para culminar na perda da pessoa amada.

Repare, leitor, que no último verso, a inserção quase imperceptível da palavra “tão” no meio do refrão – “a arte de perder não é difícil de aprender” se torna “não é tão difícil de aprender” – prepara o momento final, de impacto, que revela toda a insinceridade – ainda que mantendo, já sem convicção, a negação insincera – “embora pareça (Escreva!) um desastre”.

Neste momento em que a cultura nacional está sob ataque cerrado e violento, em todas as frentes, presto com esta crônica minha pequena homenagem ao cineasta brasileiro Bruno Barreto, que soube enquadrar e recriar, com excepcional sensibilidade, o lindo poema de Elizabeth Bishop. Essa é, afinal, uma das grandes contribuições, entre tantas, que o cinema pode dar – abrir portas, de par em par, para as outras artes, a poesia, a literatura, a pintura, a música – torná-las conhecidas e amadas por quem talvez nem chegasse a encontrá-las um dia.

Richard Wagner falava, no século 19, da sua ópera dramática como Gesamtkunstwerk, como a “arte total”, que reuniria todas as artes. Mas o século 20 mostraria que é o cinema, mais do que qualquer outra, a verdadeira arte total.

Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 20 de agosto de 2021

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