China: a (falsa) polêmica da legalização da propriedade privada (2)

O socialismo é uma proposta societal única, cujo processo de construção deve ser marcado pela cautela e não pela precipitação na tomada de decisões. Sendo uma proposta que visa a libertação do homem do jugo do próprio homem, e diante do pressuposto da hos

A aplicação de uma política econômica no rumo da construção da nova sociedade deve partir do pleno conhecimento da realidade: sua formação social, o nível de desenvolvimento das forças produtivas e o nível de consciência das massas.


 



Socialização e “arrojo revolucionário”


 


O processo de socialização dos meios de produção deve ser caracterizado por uma dupla/dialética característica. A primeira característica, a rapidez, é determinada pela necessidade de o poder popular, 1) solidificar seu poder político e 2) solidificar seu poder sobre os gânglios vitais da atividade econômica.


 


 


A solidificação do poder político, principalmente em formações sociais agrárias, passa necessariamente por um rápido programa de reforma agrária. Casos como ocorridos na Hungria, de Bela Kun, em 1919 atestam que o menor vacilo nesta área pode levar ao óbice do regime. Na China não é diferente, e por duas vezes (1949 e 1978)– em razão do peso político dos camponeses – reformas na estrutura tiveram de ser executadas com finalidades várias, sendo a manutenção do poder político a principal delas (1).


 


 


Na senda deste processo, a história dá conta, que um governo digno de ser chamado de socialista deve numa única atitude, nada gradual, socializar todos os ramos econômicos com tendência ao monopólio, a saber: o sistema financeiro, as indústrias do Departamento 1, as telecomunicações, o subsolo e afins. Desta forma o governo terá condições de gerir a vida econômica do país, partindo da planificação da vida econômica, superando uma forma de gestão anterior e utilizando as características inerentes à ação das leis econômicas em proveito da sociedade.


 


 


Assim é na China até hoje e é isso que garante, efetivamente, o caráter socialista do regime.


 


 


Esta medida “de um só golpe” tem por objetivo, também, evitar um colapso econômico do novo sistema. Expondo exemplos de ordem prática, podemos vislumbrar um governo socialista que no “dia seguinte à revolução” socializa as minas de carvão, o sistema de transportes, os bancos, porém declara que em cinco anos a indústria têxtil também será socializada. Ora, só podemos concluir que em menos de cinco anos a indústria “quebraria” (2).


 


 


Esta política econômica de edificação socialista em etapa inicial é uma política de “arrojo revolucionário”. Não confundir arrojo com voluntarismo, pois foi o próprio Marx que nos disse um dia que não devemos “brincar” de tomar o poder. Fazendo uma analogia com o atual caso chinês, não é possível “brincar” de exercer o poder em um país daquelas características e com a proposta que vislumbram.


 


 


E levantar falsas polêmicas é uma brincadeira, que pode ser de bom tom, mas de tremendo mau gosto.


 


 



O lugar da propriedade privada no socialismo


 


 


Qual o lugar da propriedade privada no socialismo? Sob qual ordem de fatores deve ser balizada tal discussão? Sob um ponto de vista particular, a participação da propriedade privada no socialismo deve obedecer duas ordens de fatores: 1) o processo de acumulação primitiva socialista e 2) o ambiente político nacional e internacional.


 


 


O primeiro aspecto é relacionado com uma longa discussão datada das décadas de 1910 e 1920 na Rússia que abarca a problemática da formação de poupança em economias agrárias e isoladas e a segunda, necessariamente, trata da unidade interna contra um determinado inimigo principal: o imperialismo e seu quase imbatível poder destruidor.


 


 


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Porém, antes de aprofundarmos esta questão, vale pincelar outra de ordem prática e relacionando com a segunda característica do processo de socialização: os limites impostos à propriedade privada no rol da economia de uma formação social socialista em estágio inicial.


 


 


Simultaneamente ao rápido processo de socialização dos meios estratégicos de produção, o governo socialista, a bem de sua sobrevivência ante a hostilidade interna e externa, deve proclamar apoio às propriedades privadas que não engendrem privilégios sociais em detrimento da maioria da sociedade e, acrescenta-se, com papel de utilidade social. Aliás, numa particular visão, o governo socialista deve – dependendo das demandas sociais do país – declarar apoio a este tipo de propriedade.


 


 


Claro que este espaço concedido deve preceder limites à atuação da propriedade privada, entre eles Oskar Lange elenca três: 1) tal propriedade deve existir e coexistir num ambiente de livre competição; 2) os meios de produção possuídos por um produtor privado, ou o capital possuído por acionista privado de indústrias socializadas não devem ter um volume tão grande que possa causar uma considerável desigualdade na distribuição de renda; 3) a produção em pequena escala não deve ser, em longo prazo, tão custosa quanto a produção em grande escala.


 


 



Um exemplo chinês no setor de serviços


 


 


Na China um tipo de propriedade privada que foi legalizada está voltada à gestão do setor de serviços, setor este com grande capacidade de absorção de mão-de-obra. Para um país com a necessidade de gerar 10 milhões de empregos anuais, a legalização deste tipo de propriedade é correta e atende os objetivos do poder popular.


 


 


Segundo relatos coletados por mim na China, os capitalistas como classe com acesso ao Partido Comunista da China (PCCh) hoje não passam de O,OO3% dos mais de 70 milhões de militantes do PCCh. Desta porcentagem, cerca de 80% são pequenos comerciantes, tipo donos de banca de jornal ou loja de antiguidades com no máximo três funcionários por ponto privado.


 


 


Retornando, por outro lado, impossível acreditar que este tipo de propriedade possa ser alguma ameaça ao regime, sendo que sua sobrevivência dependendo de aportes de crédito, que por sua vez, é monopólio exercido pelo governo central chinês. Logo, se “a anatomia do macaco se entende a partir da anatomia do homem”, é válida a relação entre superestrutura de poder popular com o monopólio sobre os elementos cruciais do processo de acumulação (câmbio, juros, sistema financeiro e crédito) para perceber que a própria sobrevivência da propriedade privada no socialismo (e a exemplo chinês atesta isso) depende em último grau da assistência financeira do Estado socialista.


 


 


Mais: este tipo de ação política em prol da propriedade privada na China segue o já citado critério da utilidade ao socialismo em acordo com o desenvolvimento ou não das forças produtivas. No caso em tela (setor de serviços) serve ao aprofundamento do processo de urbanização, que por sua vez cumpre papel histórico na árdua tarefa de diminuir as diferenças entre campo e cidade.


 


 


Por fim, atualmente é no setor de serviços que se enxerga a forma como a China utiliza, nas palavras de Lênin, “O espírito empreendedor da pequena produção em favor do socialismo”. Por um lado, ao assegurar empregos a grandes contingentes citadinos, garante-se paz social interna para enfrentar seus desafios de monta. Por outro aspecto de visão, paz social é sinônimo de reconhecimento. De legitimidade do regime.


 


 



A propriedade privada na China e seu papel político


 


Todo modo de produção e/ou de organização societal, ao ser concebido é muito mais fraco do que o que o engendrou. Por exemplo, pode-se vaticinar que os germes do capitalismo datam do século XIV com o surgimento de manufaturas em Gênova e Veneza. Tais experiências não resistiram ao poder do feudalismo hegemônico. Da mesma, forma a experiência da Revolução Industrial inglesa foi literalmente “cercada” por cerca de 50 anos ante um feudalismo reinante no continente. Isso sem falar das derrotas napoleônicas contra o feudalismo europeu. Tal dicotomia histórica serve na análise da transição capitalismo x socialismo no século 20. Não vou me ater neste processo por aqui.


 


 


Logo, uma política econômica socialista deve ter em seu bojo esse conteúdo de acúmulo histórico de outras transições. Logo, o poder popular deve separar a “contradição principal” do que é “o aspecto principal desta contradição principal”. Em ralas palavras, dado o acúmulo histórico de transições anteriores, o regime necessariamente deve eleger sua sobrevivência como prioridade política. Sobrevivência que depende da forma como se lidará com um mundo hegemonizado por seu modo de produção antagônico. Não é toa que Lênin alçou à condição de ciência a tática política do proletariado.


 


 


Ora, acredito que ninguém discorde que o principal inimigo do socialismo no mundo hoje tem nome: o imperialismo norte-americano. Também não vou aqui caracterizar o alcance de seu poder, apenas vaticino que se trata do maior poder destruidor e corrompedor da história da humanidade.


 


 


Logo, antes de partir para aforismos ideológicos baseados em um conhecimento superficial de uma realidade milenar como a da China, temos de convir que o socialismo seja ele chinês ou outro qualquer, deve centrar suas energias políticas no combate ao monopólio e ao imperialismo. Esta premissa se concretiza ao percebermos que um dos compromissos prestados perante o povo – feito por Mao Tsétung – na Tribuna de Tiananmen a 1° de outubro de 1949, foi o de unificar completamente o país. Esta tarefa ainda não foi concluída dada a influência do imperialismo sob as relações entre o continente e Taiwan. Desta forma, a única possibilidade possível de unificação – pela via pacífica – é o aprofundamento das relações comerciais com Taiwan e a legalização da propriedade privada na China é parte de um todo que envolve este processo.


 


 


Desculpe a ironia, mas se algum “iluminado” tiver uma receita mais prática à unificação nacional chinesa, por favor, a remeta ao Comitê Central do PCCh.


 


 



A retomada do programa de 1949 e as “cinco estrelas” na bandeira nacional chinesa


 


 


Para quem acredita e passa a frente a idéia de uma pura ruptura entre o legado de Mao Tsétung e as reformas implementadas por Deng Xiaoping em 1978, inclusive a permissão de acesso de proprietários privados ao PCCh e a recente legalização da propriedade privada na China podem estar enganados. Sugiro que leiam dois textos de Mao Tsétung escritos nos exórdios da Revolução de 1949 e incluídas no Volume 4 ds Obras Escolhidas de Mao tsétung, são eles: “Sobre a ditadura democrática-popular”  e “Sobre a questão da burguesia nacional e os nobres esclarecidos”.


 


 


Acredito que o programa implementado em 1978 e seus capítulos atuais têm e muito a ver com a retomada do programa pré-revolucionário. Programa este cujas condicionantes históricas daquele momento (Guerra da Coréia, p. ex.) a impediram de seguir adiante. Aliás, programa abortado por motivos análogos às ocorridas com a NEP de Lênin na década de 1920.


 



 
Encerrando, para quem não sabe, as cinco estrelas amarelas situadas ao alto à esquerda da bandeira nacional chinesa têm significado, a saber: a estrela maior significa o Partido Comunista da China e as outras quatro menores, o condomínio de classes que empreenderam a Revolução Chinesa. De cima para baixo, a classe proletária, os camponeses, a burguesia nacional e a pequena burguesia.


 


 


Os símbolos dizem muito mais do que milhões de chavões jogados ao vento. E em alguns casos são suficientes para encerrar falsas polêmicas.


 



Notas:


(1) As bases teóricas utilizadas por mim para esta discussão podem ser encontradas de forma sintética em: LANGE, O.: “On the Economic Theory of Socialism”. University of Minnesota. 1938, p. 134.


 


(2) Aos interessados sugiro a leitura de: LÊNIN, V.: “A catástrofe que nos ameaça e como combatê-la”. In, Obras Escolhidas. Alfa-Omega, São Paulo, 1988, vol. 2, pág. 165-200. Neste texto podemos observar até que ponto os bolcheviques – antes da Revolução – concebiam a socialização como algo gradual. Maiores detalhes sobre o período inicial da socialização na Rússia podem ser encontrados em: Maiores detalhes sobre este período podem ser encontrados em: DOBB, M.: “Russian Economic Development Since the Revolution”. Economic Journal. New York, 1928.

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