China: a (falsa) polêmica da legalização da propriedade privada (final)

Para encerrar esta série de colunas acerca do tema proposto, procurarei evidenciar ao leitor a dimensão da formação/estrutura econômica chinesa. Aos apologistas da “economia natural do socialismo”, é importante notar que a economia chinesa é complexamente

Partindo de uma visão de conjunto da economia nacional chinesa, pode-se verificar com mais seriedade a questão da propriedade privada na China. Evidentemente que não passarei do campo do geral. Porém, esta abordagem será superficial para demonstrar a cadeia que envolve o processo de (re) construção de uma nação.


 



A economia socialista de mercado na China: o geral e o específico


 


 


O grande pressuposto a esta análise final, deve partir de: 1) o elemento de classe principal no âmbito da superestrutura; 2) as características da formação social chinesa e 3) a idéia smithiana de Divisão Social do Trabalho (1).


 


 


No âmbito do “geral” podemos conceituar a formação/estrutura da economia chinesa como uma economia mercantil centralmente planificada, ou melhor, (agregando o elemento da superestrutura), “economia socialista de mercado”. Trata-se de uma estrutura econômica onde o mercado cumpre papel como elemento fundante à alocação de recursos e onde o cálculo econômico (2) é o principal instrumento à busca de um sistema de preço condizente com os custos sociais. Porém, esta estrutura tem no controle estatal sob os elementos do processo de acumulação (câmbio, crédito, sistema financeiro e política de juros) – juntamente com o planejamento econômico em larga escala – seu elemento basilar e caracterizador.


 


 


Partindo ao específico cabe responder à pergunta: quais os setores participantes da formação/estrutura econômica chinesa?


 


 


Respondo o seguinte: o setor estatal e/ou coletivo nos setores estratégicos ou com alto grau de monopólio; as empresas de capital misto estatal-estrangeiros ou estatal/privado nacional (em ambos os casos o Estado tem participação majoritária); a propriedade estatal “total” do solo urbano e rural; as empresas estatais com capital aberto (com ações ao público em bolsas de valores chinesas); as empresas estrangeiras; as empresas privadas nacionais e a economia privada individual (3).


 


 


De forma mais específica ainda, podemos dividir a economia chinesa em três formações diferentes, a saber: 1) a economia agrária voltada ao abastecimento do mercado interno; 2) a “economia socialista de mercado” propriamente dita (indústria, Empresas de Cantão e Povoado (ECP`s), serviços de transporte, comércio, aparelho governamental etc) e 3) o setor comércio exterior, ou seja, as unidades econômicas cujas atividades colocam a China em evidência com o mundo exterior e onde o capital privado nacional ou estrangeiro tem importância fulcral, porém balizados – política e economicamente – por um comércio de novo tipo: o comércio exterior planificado como superação e em contraposição ao comércio típico do modelo anárquico de produção (4).


 



O desenvolvimento econômico e o entrelaçamento da ação de cada setor


 


Para os grandes e respeitáveis pensadores Prebish e Furtado e – numa escala de elaboração mais sofisticada (marxista radical) – em I. Rangel, o processo de desenvolvimento econômico nada mais é do que o processo de otimização/elevação da produtividade de trabalho, proporcionada pela transferência de mão-de-obra de setores marginais (economia natural) aos setores ligados, para o caso brasileiro, ao mercado interno. Para o caso chinês, a transferência ocorre do campo aos setores ligados à indústria de base (mercado interno) e principalmente às unidades produtivas voltadas ao mercado externo (num primeiro momento às indústrias do Departamento II da economia).


 


 


A novidade em Rangel está na percepção de que o processo de desenvolvimento econômico é a síntese do entrelaçamento e ações de cada setor formação uma sobre as outras (5).


 



O caso concreto da China


 


Primeiro, generalizadamente, percebe-se – em sua história milenar e recente – que o processo de desenvolvimento econômico é síntese da ação da segunda formação sobre a primeira, como resultado aos impulsos da terceira formação. Concretamente, na China, assiste-se a uma transferência de mão-de-obra da primeira formação para a segunda. Em palavras mais frias vê-se uma transferência de milhares de hands para dezenas de cidades e – de forma inovadora – para as chamadas Empresas de Cantão e Povoado (ECPs).


 


Abrindo necessário parêntese, as ECPs são empresas rurais surgidas no bojo da transferência de unidades produtivas do litoral para o interior da China durante entre as décadas de 1950 e 1960. Tratam-se pequenas e médias empresas de caráter coletivo e foram as grandes responsáveis pela invasão no mundo de artigos made in China (camisas, gravatas, calças e tênis) na segunda metade da década de 1980 e respondiam neste mesmo período por cerca de 40% das exportações chinesas (6).


 



Comércio exterior, financiamento, tecnologia e a propriedade privada


 


 


Disse que a segunda formação econômica exerce influência sobre a segunda estimulada pela terceira formação. O que quer dizer isto?


 


Isto quer dizer que, ao analisar o processo histórico, percebemos que o processo de desenvolvimento da periferia é ligado diretamente a impulsos externos, o que na prática significa a maior ou menor prática de comércio exterior e a utilização desta variável com o fim de se alcançar objetivos previamente elencados pelo Estado Nacional. Para o caso brasileiro atestamos que as transições internas (desde a transformação da pequena produção mercantil em indústria até a atual transição no rumo da viabilização do capitalismo financeiro brasileiro) estão intimamente ligadas a crises em nossas relações externas de produção, expressadas no comércio internacional. A escassez de divisas e conseqüentemente a perda de capacidade de importar engendraram processos contínuos de substituição interna de importações no âmbito para satisfação do mercado interno.


 


O caso chinês é diferente num aspecto: seu processo de substituição de importações (à moda japonesa) foi alimentado pela utilização de suas franjas litorâneas à instalação de empresas estrangeiras (em associação com o capital estatal) com a intenção de “invadir” mercados externos e assim acumular divisas necessárias à sua rápida modernização industrial.


 


Esse movimento engendrou a transformação do litoral chinês nas décadas de 1980 e 1990 numa imensa plataforma de exportações e indigenização de novas tecnologias e capitais necessários à consecução de objetivos previamente encetados pelo Partido Comunista da China (PCCh).


 


Porém – para fins de formação – é bom salientar que se deve abstrair ainda mais e perceber que por trás de todo esse espetáculo de planejamento estão objetivos claros: a criação de condições objetivas à reunificação nacional e a sobrevivência do regime (e também do socialismo como alternativa) nesta – cada vez mais mortal – guerra comercial imposta pelo imperialismo à China. Trata-se de uma luta de vida ou morte para um quinto da população mundial.



 
A relação entre comércio exterior e processo de desenvolvimento na China ainda guarda algumas particularidades, como a relacionada ao acúmulo de divisas estrangeiras e possibilidade de adoção de uma taxa de juros propensa ao crédito barato e fácil. Marx percebeu que o capitalismo funciona à base de crédito, que por sua vez é gerido por um cada vez mais poderoso sistema financeiro. Já em Lênin vemos a necessidade de utilizar este mecanismo (o crédito) em favor socialismo.


 


Voltando, a influência exercida pela terceira formação (comércio exterior) sob a segunda formação (economia de mercado socialista) fecunda um movimento territorial no rumo das grandes cidades (existentes e em planejamento em torno das ECVs) com capacidade de assentar e desenvolver uma crescente divisão social do trabalho no país: uma indústria de ponta em determinados setores (aeroespacial e metalúrgica), uma agricultura cada vez mais especializada e pontuadas no território, indústrias siderúrgicas no oeste do país em fase de recuperação, um capital financeiro desenvolvido em Xangai, Shenzen e Hong-Kong e em expansão contínua com a formação de dezenas de bancos municipais de desenvolvimento, uma crescente participação das ECPs em grandes empreendimentos como a fabricação e montagem de computadores e de aviões (joint-venture com a EMBRAER) e ainda um largo Departamento II da economia responsável ainda – porém com cada vez menor peso – tanto pela abastecimento interno quanto como parte da estratégia comercial agressiva chinesa (7).


 


Por fim, dado o monopólio estatal sobre os setores estratégicos da economia do país, vem o papel da propriedade privada, tanto na aquisição de capitais, como – principalmente – na obtenção de novas tecnologias. Tal política é orientada pelo governo e é implementada partindo de associações com empresas estrangeiras. Este tipo de planejamento está em concordância com as idéias expostas por Rosa Luxemburgo relacionando o fenômeno da ascensão de novas tecnologias com a capacidade empreendedora da pequena e média propriedade.


 


Aliás, socialismo sem tecnologia e conseqüentemente sem automação industrial, não passa de um arremedo de projeto socialista.


 



Conclusão: um recado à nossa juventude


 


A falsa polêmica em torno da legalização da propriedade privada na China na China é parte de um todo que envolve – nas palavras de João Amazonas – a “crise do marxismo” no campo da elaboração teórica e científica. Esta crise abre campo para o “passe-livre” de diagnósticos sem fundo teórico ou metodológico. Enfim, “passe-livre” para a falta de radicalidade (ir à raiz), à falta de visão de conjunto (abstração), à especialização disciplinar (análises ausentes da variável científica da Economia Política) e o pior: a presunção de se “decifrar” realidades concretas sem ter em mente os chamados “processos históricos”, ou melhor, a análise do processo de acumulação capitalista e/ou socialista como parte da busca de uma compreensão exata da formação social em estudo.



 
Daí sim: partindo destes pressupostos históricos, científicos e metodológicos, pode se auferir a importância ou não da propriedade privada como parte de uma complexa (altamente complexa) formação social, a China no caso em tela.


 


Retornando, a superficialidade é a tônica máxima nos casos que envolvem dos veredictos encaminhados por (quase) todo espectro político e acadêmico quando o assunto é China e sua caminhada no rumo da libertação nacional e social (iniciada com a resistência popular às Guerras do Ópio – ocorridas entre 1839 e 1842 impostas pela Inglaterra e seu “democrático” império).


 


Caminhada esta ainda longe de ser coroada de êxito, porém grandes passos já foram dados com a Revolução Nacional-Popular de 1949 e a política de Reforma e Abertura implementada em 1978.


 


Infelizmente, a nossa juventude é a maior vítima deste tipo de abordagem onde as soluções são fáceis e pautadas por uma idéia de luta-de-classes como algo semelhante a uma festa de debutantes. Aos nossos jovens repito algo que já havia escrito em coluna anterior, onde (mais ou menos se lê) a partir de observação partida de meu amigo, mestre, companheiro e orientador, Armen Mamigonian:  “(…) a busca da verdade universal passa pelo estudo radical de grandes intelectuais voltados ao cultivo da virtude como Sócrates, Aristóteles, Platão, Confúcio e Lao Tse. Passa principalmente – também – pelo estudo de grandes gênios como Marx, Engels, Lênin, Ignácio Rangel, Antônio Gramsci e Oskar Lange e – também –  de intelectuais de menor porte como Emile Zolah, Max Weber, Rosa Luxemburgo e Nikolai Bukharin”.


 


 


Fica aqui mais um apelo à razão e um fundo de confiança na vitória da ciência de vanguarda de nosso tempo. O marxismo, naturalmente…



 


Notas:


 


(1) Indispensável – para este tipo de exercício – a leitura de: “A Riqueza das Nações” (A. Smith); de I. Rangel: “Introdução ao Estudo do Desenvolvimento Econômico Brasileiro” (1957) e “A História da Dualidade Brasileira” (1981). Claro que não poderia esquecer de indicar a leitura, de Lênin, do Capítulo 1 de “O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia”, onde o teórico e prático russo disserta sobre a Divisão Social do Trabalho e a formação do mercado interno a partir da ruína da pequena produção agrícola.


 


(2) Aos que relacionam o “cálculo econômico” como algo intrínseco ao capitalismo, consigno que uma sociedade que não utilize tal instrumental está fadada ao rápido empobrecimento de seu povo como resultado da má utilização de recursos financeiros, humanos e naturais.


 


(3) No capítulo 1 de meu livro (“China: infra-estruturas e crescimento econômico”) pode se observar o “papel cumprido” por cada um deles no processo de desenvolvimento recente da China.


 


(4) Tento aqui adaptar a idéia elaborada por Ignácio Rangel na década de 1950. Não se trata de uma adaptação mecânica se percebermos que para países periféricos como o Brasil e a China a variável comércio exterior é estratégica nos seus respectivos processos de industrialização ou desindustrialização (Brasil) em curso.


 


(5) As diferenças de concepção do processo de desenvolvimento econômico entre Prebish,  Furtado e Ignácio Rangel podem ser encontradas em: BIELSCHOWSKY, R.: “Pensamento Econômico Brasileiro: O ciclo ideológico do desenvolvimentismo”. Contraponto. 1988.


 


(6) As ECP`s foram o a pedra de toque para um processo de urbanização tipicamente chinesa. Outros e maiores detalhes sobre as ECP`s podem ser encontrados em: Sachs, J. & e Woo, W. T. 1997: “Understand China’s Economic Performance”. NBER Working Papers 5935. 1997; Kojima, R.: “Breakdown of China`s Policy of Restricting Population Movement”. The Development Economies, XXXIV. 4, december. 1996; Singh A.: “The Plan, The Market and Evolutionary Economic Reform in China”. Unctad. Discution Papers, n. 76. 1996.


 


(7) NINGNING, D. “The Geographic Layout of China`s Regional Economies”. In, China Development Review. Vol.6, n° 03, págs. 34 a 45. China`s State Council. Beijing. 2006.

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