Cidades invisíveis

“O essencial é invisível aos olhos”. (Fernando Pessoa)

Aos 62 anos o escritor Ítalo Calvino partiu, em viagem a outras cidades invisíveis: as cidades que dizem existir para além de mais além, e que se mantêm indiferentes ao barulho e à vertigem do mundo. Há outras cidades invisíveis. Uma São Paulo, por exemplo, sem glamour de modernidade, ou um Rio de Janeiro que não é nada maravilhoso. Em São Paulo pouca gente acreditaria que existem barracos erguidos sobre palafitas – e não se vê isto da Avenida Paulista, ou do Viaduto do Chá. É onde se erguem, à beira de córregos fétidos (em verdade, esgotos a céu aberto) barracos do desespero – nunca vistos pelos governos, embora não saiam de seus discursos.

Os que vivem à margem da antiga e da nova cidade, jamais bafejados pelos benesses da locomotiva do Brasil não saem nos sambas da boemia literária, não são figuras de fina estampa na Sampa da Ipiranga com a Avenida São João. Há cidades que só se vêem como propensas viver em estado de calamidade pública. É quando milhões de sobreviventes das cidades de vidro e aço sofrem e morrem, sob as águas do descalabro, ou sobre o neocinismo das políticas públicos que são só retórica de propaganda. Os esquecidos da sorte (os que ficam com fome a vigiar os carros) não sabem as cores de Almodóvar, nem conhecem o glamour das buates, ou o luxo dos palácios.

Saindo da dura realidade, que sempre emerge, após os dilúvios de alegria postiça da catarse carnavalesca, e retornando à nostalgia da infância, de que nos fala Ítalo Calvino, eu diria que voltamos a nos apossar de nossa pátria, retornando às cidades de nossas mais ternas lembranças, quando viajamos para muito longe. Assim, também, mais perto ficamos das pessoas que perdemos para sempre. Tomamos posse de quem amamos a partir de sua ausência. De fato, existem paisagens invisíveis aos olhos – são as paragens da alma, que não aparecem em cartões postais, nem podem ser congeladas em fotografias. Tão diáfanos e inefáveis cenários criados pela imaginação do espaço interior, que não pode ser medido pelos técnicos e cientistas.

Como poeticamente nos diz o professor geógrafo-poeta Benjamim Vilela: “Paisagens. As Paisagens não são só uma extensão ao alcance da vista. São mais que isso; são portadoras de símbolos constituidores do espaço. Elas se apresentam por meio da morfologia, dos signos e dos símbolos; os quais circulam e propiciam cor, forma, cheiro, sabor ao espaço, bem como pelo modo como os sujeitos usam, transformam e constroem os lugares; pelo simbólico, o religioso, o econômico, o cultural, o imaginário.

Assim, no meu entendimento, às paisagens invisíveis (ou as paisagens do interior da alma) são mais interessantes e possibilitam a imersão nos sujeitos culturais a nossa volta. De tal maneira que a morfologia cultural destes, apresentadas pelos seus gestos e suas ações tornam o entendimento dos gestos visíveis mais ricas e encantadoras. Daquelas paisagens cheias de luz, fica na memória o suor, os pontos vibrantes, os frontes dos sujeitos molhados nos afazeres impostos pelo sistema, como também o desenho invisível de cada-um”.

Somos tão águas sólidos feitos de sangue e linfa, – eternas e mutantes águas da vida que nuvens nos constituem e habitam. O que faz de nossa vida um inferno é fazer com que a solidão seja a nossa companheira inseparável. Afinal, estando longe ou perto da cidade ou do tempo em que fomos felizes um dia, é urgente não esquecer: nossas quimeras nos matam, com seus fardos de chumbo. Nós é que escolhemos carregar nos ombros o peso do mundo.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor