“Clube de Compras Dallas” Sem retoques
Os primórdios da aids nos EUA e a reação dos doentes são os temas deste filme do cineasta canadense Jean-Marc Vallée
Publicado 26/02/2014 09:35
A aids assustou o planeta na década de 80. Foi tida como consequência da permissividade dos anos 60 e 70. Desde então se tornou tema secundário na mídia. O cineasta canadense Jean-Marc Vallée (“A Jovem Rainha Vitória”, 2009), com este “Clube de Compras Dallas”, trata de seus primórdios. O centro de suas preocupações são os marginalizados, vivendo em bares, rodeios, esquinas e cômodos sujos. E nem pretende ser light para não chocar o público ou amenizar os riscos que correm os que não se previnem.
Pelos citados espaços circulam heteros e homossexuais embalados por drogas, sexo e bebidas. Vallée e seus roteiristas Craig Borten e Melisa Wallack não os tratam com compaixão por serem deserdados. O eletricista Ronnie Woodroof, o Ron (Matthew McConaughey), é homofóbico, compulsivo sexual e se entope de cocaína e uísque. Isto quando não está no rodeio, montando em toros bravios e recolhendo apostas, que não paga.
Não é, em princípio, um personagem simpático. Seus amigos e amigas são de seu naipe. Não há como separar o que o sistema lhes impõe, ao deserdá-los, e o que é resultado de suas próprias escolhas. Com eles, Vallé estrutura o que foram, a partir do caso real de Ron, os primórdios da aids nos EUA, nos anos 80, do século 20. Eles se sentem imunes a qualquer doença, ilusão que Ron só descobre ao ser diagnosticado com aids em 1986.
Agência encobre os erros de laboratório
A partir daí irá dividir a enfermaria do hospital de Dallas/Texas com o travesti Rayon (Jared Leto), ambos “tratados” pelos médicos Sevard (Denis O´Hare) e Eve Saks (Jennifer Garner). De sua amizade com Rayon irá surgir o Clube de Compras Dallas. E permitir a Vallée tratar de seus subtemas: a transformação dos soropositivos em cobaias do laboratório que produzia o remédio AZT, em experiência, e a cumplicidade do hospital e da Agência de Alimentos e Remédios, responsável pela fiscalização de medicamentos nos EUA.
Vallée mescla estes subtemas com clareza, pondo no centro o Clube de Compras, dirigido por Ron e Rayon. O clube fica à margem do sistema, que o vê como ilegal e ameaça às “verdades” do laboratório, do hospital e da Agência. Ao invés da enfermaria, aonde o soropositivo vai para ter “morte aceitável”, o clube injeta nele esperança, prolonga sua vida, a exemplo do que ocorreu com Ron. Ele se insurge contra o trio, denunciando-o pelo uso dos aidéticos como cobaias e perseguição ao Clube que lhes garantia a vida.
Ron não é o herói, lutando contra o trio laboratório, hospital, Agência, é o anti-herói. Ele, confirmando a dualidade de deserdado pelo sistema e vítima de suas próprias escolhas, não quer apenas ajudar os soropositivos, quer também ganhar dinheiro, muito dinheiro. O vírus do capital, motor dos EUA, incrusta-se nele. Ele o usa na ciranda de cocaína, uísque e sexo. Não é diferente com Rayon, entregue à cocaína. Vallée, assim, não os reverenciam.
Existe cumplicidade Agência/laboratório
Vallée ressalta ainda o conflito entre o laboratório e o médico Vass (Griffin Dunne), banido dos EUA por denunciar os efeitos colaterais do AZT. Isto atesta o poder do laboratório, a subserviência do hospital e a conivência da Agência, que não questiona os efeitos do AZT. Ron torna esta manipulação um dos pilares de sua luta, que, apesar de vender remédios tidos como ilegais, não cessa de denunciar a perseguição ao clube e defender os direitos dos soropositivos aos medicamentos alternativos.
São estes conflitos que levam a médica Eve a descobrir-se entre vários interesses, ficando o dos pacientes em segundo plano. Sua relação com Ron acaba fortalecendo o Clube. Há dupla transformação de ambos, provocada também pela situação de Rayon. Um personagem, junto com o próprio Ron, digno da dramaturgia cinematográfica. Travesti, sempre vestido de rosa, ele é o sócio-sombra, que não atrapalha. Diferente dele, Ron, morto em 12/09/1992, é o machão que perde o traço homofóbico, convivendo com ele.
O tratamento que Vallée lhes dá é honesto, sem a compaixão dos cineastas que o antecederam ao tratar da aids. Jonathan Demme foi mais light, em seu “Filadélfia” (1993), escolheu personagens da alta classe média, mostrando que ela atingia a todas as classes. O “Clube de Compras Dallas” é underground, marginal, pois se situa nos baixos círculos sociais, de perdedores, nem assim desesperados a ponto não lutar pela vida. Embora sabedores, naquela época, que estavam condenados.
Desde os anos 80 75 milhões de pessoas de ambos os sexos adquiriram o vírus HIV, da aids. 35 milhões delas ainda têm a doença. 25 milhões só na África, segundo dados de 2013, da Unaids, agência da ONU responsável por seu controle. No Brasil, 1.600.000 milhão foi contaminado e 510 mil estão em tratamento, de acordo com o Ministério da Saúde. Não é, porém, uma doença negligenciável. Vallée ao tratar dela no filme a repõe em discussão.
“Clube de Compras Dallas”. “Dallas Buyers Club”. Drama. EUA. 2013. 117 minutos. Edição: John Mac McMurphy/Martin Pensa. Fotografia: Ives Belanger. Roteiro:Craig Borten/Melisa Wallack. Diretor: Jean-Marc Vallée. Elenco: Matthew MCConaughey, Jannifer Garner, Danis O´Hare, Jared Leto.
(*) Globo de Ouro 2013: Melhor ator (Matthew MCConaughey) e Melhor Coadjuvante (Jared Leto).