Coisa de preto, coisa de negro

O negro, tão natural, tão à vontade, mudava o modo de operar com os burgueses que encontrava no Recife. As curvaturas e cumprimentos aos gringos se tornavam fio de prumo erguido no peito, a conversar em inglês com os recifenses mais cultos. Para quê?

Provocador, com um senso agudo das deficiências dos adversários – as pessoas que tiveram as oportunidades que lhe foram negadas -, com uma lanceta incidia em seus pontos mais doloridos. “Ai” não gritavam. A vontade que tinham era de emudecer. Os livros formais, a pronúncia formal, as frases de convenção formais, as saudações polidas, as palavras de boas escolas com as flexões de número e pessoa no devido lugar, caíam por terra inúteis e abatidas. Em inglês, os burgueses do Recife conversavam como nos livros. Aqui e ali, para maior distinção, enunciavam breves discursos com um acento britânico, que no máximo conferiam pelas transmissões de rádio da BBC. O preto não gargalhava dessa finura de ladies de livro didático. Mas como um novo bárbaro os golpeava a socos, pontapés, escarros de expressões, variações frasais, numa torrente que mais lhes parecia as sílabas ininteligíveis de um bebop. “My God”, queriam levantar os olhos para os céus. Ao que ele soltava um jab:

– Se você preferir, podemos conversar em francês. Eu não gosto muito do francês por causa da pronúncia afeminada.

E com os lábios grossos, na boca desdentada, afetava “ouis” para maior demonstração da perda de macheza, que no seu entender constituía o modo de falar francês. Na verdade, a falsa perda de macheza terminava por atingir os burgueses falantes da língua, que já não estavam bem no inglês. Se não falava à Shakespeare com um ar de Alec Guiness, o negro atarracado, cachorro, fedorento, cu-de-escrava, os reduzia a burgueses de Molière. Se em seu natural – e aqui valeria todo um capítulo sobre a natureza de mestiços burgueses e mestiços pobres do Brasil, os primeiros a se considerarem brancos, os segundos tratados como habitantes da senzala -, se em seu natural o mantinham agastado em razão da cor e da falta de referências educadas, apesar dos óculos e das calças da América, pois macacos nos filmes também as usavam, que dirá agora, quando fala em um terreno de ilustração privilegiada, próprio de gente chic, e, insolência das insolências, corrige maltratando-os? Se aquilo não era um macaco, devia ser um boneco, a quem os burgueses olhavam assustados à procura de um dono:

– Cadê o ventríloquo? Cadê o cara que fala por trás desse boneco Benedito?

Pois o negro possuía várias características do boneco de feira que os artistas mambembes levam para as praças: olhos graúdos, muito vivos, beiços grossos, pele escura, e, principalmente, um espírito zombeteiro que atazanava as pessoas que tinham classe. Um ente daqueles não podia ser senhor das próprias linhas escuras, e no entanto lhes dizia:

– O senhor fala frase de lição de livro. Nada a ver com o inglês.

Que petulância! Os burgueses ficavam a ponto de explodir um cuspe na cara do boneco Benedito. O diabo é que a coisa, macaco ou boneco, era real, movia-se, elevava a voz, dava-se entonações de homem inteligente, falava com picardia e presença de espírito. Ou seja, com manifestações absurdas em inferiores. O que era aquilo? Melhor era vê-lo de costas, com a bunda larga vestida no jeans importado, “de contrabando”, sem os óculos made in USA, “de contrabando”, sem a cara com o beicinho importado, que não era nem podia ser humano. Era outra coisa, de um reino entre animal e humano, ora mais animal, ora menos humano, mas algo enfim que não dava para ser tratado como um semelhante a eles, aspirantes a burgueses de fina classe. Tinham-lhe raiva. Não que ele chegasse aos dignos senhores com postura e gestos agressivos, ele era louco, mas nem tanto. Mas a simples presença dele, frente a frente em planos iguais, é que era uma agressão. Ele possuía na pele uma bactéria de contaminar gente bem. Em vez de se fazer igual pela própria elevação, ele baixava o indivíduo que se queria branco, puro, até a sua altura. Se fossem semelhantes, isso significaria na cabeça dos educados, que todos eram negros, igualmente negros. O equivalente a um socialismo de miséria, de infâmia, que sua presença trazia. O equivalente a um nobre de engenho de açúcar, sentado no chão, a babar o mesmo cachimbo que a escrava ao lado.

Esse absurdo ele conseguia quando, apesar de mais baixo em estatura, falava de queixo erguido em inglês para os médicos e advogados do Recife. Que insulto. Ele nem precisava lançar perdigotos para os doutores, como às vezes os lábios úmidos, em ato vil, arremessavam na boca dos oponentes. Até parecia de propósito, perdigotos lhes chegarem como um cuspe de negro em boca de branco. Havia uma absoluta agressividade na sua presença. O que antes constituía um absurdo, aquilo, a existência de alguém naquelas formas a se expressar como gente, um absurdo engraçado, como engraçados são os seres inferiores quando imitam homens, como os cachorrinhos de fraldas ou os chimpanzés em smoking, pois o absurdo vira cômico pela semelhança descabida, depois se tornou constrangimento e raiva, porque o impossível acontecimento se alterava para se tornar um igual aos bons burgueses. Um mal-estar idêntico ao de uma convidada ser recebida à porta por uma empregada doméstica com

os mesmos relógio de pulso e sapatos que a grande senhora. Que coisa desagradável, os finos recifenses tinham comichão, coceira alérgica na pele, ao ouvirem daquele inferior esta intimidade:

– Como está a sua família? A sua saúde, como vai?

Que atrevimento. Pois o mundo não era nem podia ser igual para todos. Os negros e pequenos em geral tinham que saber, tinham que ficar em seus lugares. O luxo, a educação, a decência, não nasceram para todos. Ou melhor, a excelência da educação mostrava qualidade em ser acessível para poucos. Imagine-se o escândalo se houvesse caviar para todas as bocas desdentadas do planeta. O comum da gente, a grossa maioria, os outros, não teriam língua para a percepção do excelente. Imagine-se o nonsense de um símio de terno se pôr a discutir elegância. Do nonsense os educados entravam no pesadelo do macaco a lhes apontar o dedo sujo, enquanto dizia: “a tua camisa e as tuas calças não servem, a tua roupa está errada”, Se o leitor imagina tais construções ilógicas, poderá entender como se sentiam os bons burgueses diante daquele homenzinho chulo, sem classe e sem instrução formal, um vira-lata a lhes ensinar fórmulas e expressões da língua do cinema. Shit! Shut up! Os rostos brancos, que apenas eram pálidos, se transfiguravam.

* Do romance “O filho renegado de Deus”

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