Coronel Curió saiu do armário?

Em todas as ocasiões que rompeu o silêncio acerca da Guerrilha do Araguaia, o mais destacado membro da comunidade de informações da ditadura, o coronel do Exército Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió (ou “Dr. Marco Antonio Luchini”, do “Incra''), se man

Exemplo disso é a recente declaração que busca desqualificar a identificação de Maria Lúcia Petit — pois, como que a confirmar o que dizia Médici, Curió seria a única fonte militar autorizada em assuntos da Guerrilha. Essa noção se reafirma quando ele reitera a apropriação dos arquivos “secretos” das FFAA acerca do conflito, acenando para os familiares como a única “tábua de salvação” para os que desejam enterrar dignamente seus mortos.


 


Entretanto, nada do que ele possa dizer, terá a força para mudar a essência da História, ilustrada pelos balaços que, juntamente com o coronel Lício Maciel, levou de uma outra guerrilheira, Lúcia Maria de Souza: “Guerrilheira não tem nome, tem causa, seu f.d.p.”, disse “Sônia” antes de ser covardemente metralhada. Seu corpo foi abandonado no Igapó do Taboão, como era conhecida a área do “chafurdo” (jargão militar da “guerra suja” que identificava os combates travados).


 


 


Curió, diz hoje que “queria ter enterrado a guerrilheira Sônia com honras militares”. Admite, entretanto, que metralhou uma prisioneira e não saberia onde encontrá-la para atribuir-lhe tais honras: “Deixei o corpo dela para trás porque eu estava ferido, ela tinha me acertado com um tiro no braço e atingido o rosto do Lício (comandante da tropa). Tínhamos que buscar socorro”.


 


 


É esse o eminente representante da tropa a quem coube a tarefa de guardião da postura e dos segredos militares no combate à Guerrilha?


 


“Heróicas” lembranças


 


 


Não por acaso, quando são maiores as pressões (sociais e, neste caso, também judiciais) pela revelação dos arquivos, é ele quem resolve (ou é escalado para) “sair do armário” trazendo consigo “59” (e não 60 ou 61) comunistas insepultos. E, externando a versão que será definitivamente adotada acerca da desastrosa intervenção militar que violou todos os princípios da Convenção de Genebra e do Código Militar, em especial quanto à honra em combate e ao tratamento dos prisioneiros de guerra.


 


Como, no início dos anos 1970, não fora deflagrado nenhum ato beligerante no Sul do Pará e aconteceu um ataque massivo das FFAA com gigantesca (e inédita desde a 2ª Grande Guerra) mobilização de tropas contra o povo da região, seria necessário apresentar à sociedade e à própria história oficial do País algo bem mais digno e convincente que a idéia de uma “guerra suja”. Ou no estilo do incômodo imbróglio da Guerra do Paraguai — o “heróico” genocídio de paraguaios e brasileiros que perdurou por cinco anos, apoiado pelos ingleses e sob o comando do marechal Duque de Caxias e outras eminências castrenses, no qual a destruição dos vestígios de opulência do pais vizinho ocasionou imensos prejuízos financeiros e morais também para o Brasil.


 


Pois, é sempre adequado lembrar que a Guerrilha do Araguaia foi iniciada pelos militares em abril de 1972 e que, apesar da preparação ainda preliminar e da precariedade dos armamentos dos guerrilheiros, teve uma duração inesperada para os generais. Mormente essa façanha que, sem arrogância, sustentou uma resistência desgastante de três anos para o regime, elevando o tom do seu pânico quanto às “diabruras” comunistas, esta foi uma guerra jamais reconhecida no panteão oficial e nenhum combatente foi julgado como tal. Nem o hediondo massacre da Lapa, dois anos após, coloriu o amarelamento castrense, pois João Amazonas e outros dirigentes continuavam à solta.


 


Nas entrevistas e reportagens veiculadas nos últimos dias pela revista Isto É, Jornal do Brasil e Gazeta Mercantil, entre diversas outras, Curió anuncia a publicação de um livro e, numa delas (GM, 05.05.2008), trata da referida questão de fundo que determinaria a extensão e profundidade da violência do regime militar contra os guerrilheiros do PCdoB: a possibilidade estratégica de uma zona liberada num espaçoso território rico em minérios — alvo da cobiça do grande capital.


 


Na trajetória dessa operação, a privatização da CVRD (Companhia Vale do Rio Doce) ou a criação do Estado de Carajás teriam lugar colateral à linha das tarefas subseqüentes assumidas pelo coronel Curió.


 


Botim privado


 


Essa evidência factual (examinada em diversos textos nossos, em especial na 4ª edição da revista da Guerrilha do Araguaia) revisita bem mais que a convicção “gloriosa” da impunidade — emblemática na desenvoltura do principal quadro militar protagonista do massacre de dezenas de combatentes e de centenas de moradores da região do Bico do Papagaio. Tal evidência se desdobrou desde 1980 no controle aurífero da região de Serra Pelada, quando o coronel Curió foi nomeado interventor do garimpo pelo então general plantonista na Presidência da República, João Baptista Figueiredo.


 


Num mórbido domínio de mais de 80 mil homens, os quais manipulava física e psicologicamente, em 1982 Curió chegou a emplacar um mandato de deputado federal a soldo de terras e ouro, exercido de 1983 a 1987. Nesse período, manteve confronto com o também deputado José Genoíno, acusando-o da delação de destacamentos, de guerrilheiros, de áreas de recuo e refúgio, dos seus depósitos de alimento, etc., levando para o plenário da Câmara dos Deputados um debate enviesado sobre a Guerrilha. Genoíno, aquém disso, não seria o seu mais adequado interlocutor, visto que saíra do PCdoB anos antes, ainda que eleito em São Paulo numa condição virtual de ex-guerrilheiro.


 


Se havia um propósito estratégico do PCdoB, como hoje se pretende afirmar desde a memória do comandante Mauricio Grabois, os adversários também tinham objetivos claros — atestados nessa controvertida “ponte” entre o fim da guerrilha e ações subseqüentes na story line de Curió.


 


A distinção, claro, estaria na dimensão e no conteúdo dos propósitos estratégicos: um deles voltado para a emancipação nacional e social do País e de seu povo; o outro, inconfessável, voltado para o botim privado das nossas riquezas territoriais. Na versão divulgada pelo coronel Curió, “a estratégia de longo prazo traçada pelos comandantes da guerrilha para sustentar o território independente que os comunistas pretendiam criar, eram as minas de ouro, diamante, cristais e o manganês do subsolo das serras da confluência entre Pará, Tocantins e Maranhão”.


 


 “Osvaldão: governador do Pará”


 


A versão do militar se assenta em determinados depoimentos. O ex-guia do Exército, João Pereira da Silva, ainda hoje informante do coronel Curió (verifica entrada e saída de estranhos no antigo porto de Apinagés, nas margens do Rio Araguaia, a 13 quilômetros da cidade de São Domingos do Araguaia), teria trabalhado desde 1964 ao lado do comandante guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, escavando cascalho no garimpo de diamantes de Itamirim, antiga localidade de São João do Araguaia, atualmente município de Brejo Grande; e, mais tarde, na localidade de Tabocão, em Palestina do Pará, em busca de cristais, sem (à época) conhecer nenhuma informação sobre a guerrilha.


 


Para dar credibilidade ao que afirma, o informante de Curió cita de memória o que seria o número e data do decreto de concessão de lavra que pertenceria a Osvaldão. ''É o 74.509 e estava registrado no 5º distrito do DNPM em Belém desde 1969 em nome da Xingu. A concessão era do Osvaldão e da Dina (NR: a geóloga Dinalva Conceição Teixeira — que os garimpeiros do Sindicato de Serra Pelada dizem ter descoberto um kimberlito, a rocha matriz do diamante). Acho que os papéis sobre a empresa ficaram com os militares''.


 


Em 1971, um ano antes do ataque à área do PCdoB (e aí se revela que a ofensiva “legalista” foi longamente preparada), o mesmo Silva seria cooptado sob ameaça de morte. Caçador, garimpeiro, comerciante de peles e castanha — no perfil de Osvaldão —, se transformaria num mateiro de confiança dos militares pelo conhecimento da dimensão e da ousadia do planejamento comunista. Por isso, relatórios da “comunidade de informações”, a partir da sua narrativa, atribuiriam a Osvaldão o autotítulo de “governador do Pará”.


 


“Queriam o território todo”


 


Outro ex-guia do Exército, Abel Honorato de Jesus, sustenta a versão de Curió: ''Trabalhei para o Osvaldão no Garimpo de Matrinchã. Ele vendia os cristais em Araguatins e eu ficava com a metade do valor'', contaria “com exclusividade” ao jornalista Vasconcelos Quadros. Em dois depoimentos (um ao Ministério Público Federal, em 2005, e o mais recente no último dia 25 de abril aos membros da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em São Domingos do Araguaia), “Abelinho” afirmou que ele e outros dois homens, um deles conhecido como Zé Alemão, trabalharam para Osvaldão por cerca de seis meses em 1970.


 


Abel seria preso dois anos depois, e, sofrendo maus tratos nas mãos dos militares, tornar-se-ia mateiro do Exército por conhecer a região e outros guerrilheiros: ''Os militares achavam que eu era compadre do Osvaldão''.


 


Ainda nesta versão, a preocupação da guerrilha com as riquezas minerais apareceria em outros documentos, entre eles um que conteria “o roteiro das propostas do partido para o Araguaia”. O suposto documento falaria “em estimular a atividade garimpeira na região”. Indicaria, nesse caso, uma referência ao Programa de 27 pontos da ULDP (União Pela Liberdade e Direitos do Povo), que em seu 6º ponto pregava: “Assegurar aos garimpeiros o direito de trabalhar livremente e a regulamentação de sua atividade, impedindo que seja explorado na venda dos bens obtidos em seu trabalho”. (Entre outros inúmeros endereços, a íntegra do Programa da ULDP pode ser encontrada em http://www.marxists.org/portugues/tematica/1972/misc/uldp.htm).


 


O coronel Curió anuncia que as informações relevantes acerca do plano de sustentação econômica da guerrilha deverão ser conhecidas no livro que publicará sua versão: ''Eles queriam o domínio do território todo'', uma área compreendida entre o Sul e Sudeste do Pará, nas bacias do Xingu, Araguaia e Tocantins — que corresponderia hoje ao imenso território que determinadas forças pretenderiam emancipar com o nome de Estado do Carajás, numa redivisão da Amazônia, em 2010.


 


Entretanto, para quem se jacta de dispor de tantas informações, nenhuma palavra ainda foi pronunciada sobre o diário do comandante militar da guerrilha, o ex-deputado comunista Maurício Grabois, desaparecido desde a chacina ocorrida no natal de 1973.


 


Privataria e “segurança nacional”


 


O coronel Curió diz ainda que “a opção militar pela eliminação dos guerrilheiros impediu que a região do Bico do Papagaio se transformasse numa zona sob o controle da guerrilha, como fazem hoje as Forças Armadas da Colômbia (FARCS)”. E, ao tratar dessa opção como assunto de segurança nacional, esse coronel conquistaria também “o papel de protagonista do processo de transferência de concessões de exploração dos recursos minerais de toda a região controlada pela Companhia Vale do Rio Doce”, como ressalta também o jornalista Vasconcelos Quadros.


 


Ainda nesta versão, “a guerrilha estabeleceu seus destacamentos nas cercanias da Serra das Andorinhas, mas sabia do potencial mineral da região dos Carajás”. Há menção a “um dos textos produzidos pelos dirigentes comunistas, apreendido com os guerrilheiros mortos”, que descreveria as ''ricas jazidas da Serra Norte'' — a Serra dos Carajás — e criticava a concessão ''criminosa'' de um significativo pedaço de terra próximo a Marabá ao grupo americano Steel S/A — que, mais tarde, seria incorporado pela então estatal CVRD. Antes do início dos combates, as concessões de lavra teriam passado por outras três empresas: a Empresa de Mineração Xingu Ltda.; a Meridional; e a Amazônia Mineração S/A (AMSA), incorporada pela CVRD (ainda estatal).


 


“Área pertencia a Osvaldão e Dina”


 


O coronel Curió e seus “bate-paus” de fato não inovam. Entre outros, o sítio http://blogdoespacoaberto.blogspot.com/2007/12/no-meio-da-guerrilha-o-tesouro.html reproduz, no dia 24/12/2007, uma matéria intitulada “No meio da guerrilha, o tesouro”, veiculada pelo Jornal do Brasil, segundo a qual “líderes garimpeiros que disputam o controle do garimpo de Serra Pelada” estimulam uma nova versão acerca dos “direitos de propriedade” sobre a terra garimpada: “guerrilheiros seriam os controladores originais da área que pertence atualmente à Vale”. De acordo com a reportagem, essa revelação, “além de aumentar a lenda sobre a Guerrilha do Araguaia, joga luzes numa polêmica: militares e o comando da guerrilha sabiam que a região escondia jazidas de ferro, manganês, cristais, ouro e diamantes”.


 


Num documento encaminhado em 2006 ao Ministério Público Federal, em Marabá, e Justiça Federal, em Brasília, visando questionar a concessão de lavra de uma área de 10 mil hectares que hoje pertence à Vale, o texto, assinado por quatro dirigentes da Cooperativa Mista de Serra Pelada (Coomigasp), dá seu “tiro no pé”: diria que “entre os antigos donos estão os dois mais famosos personagens que o PCdoB mandou para o Araguaia, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, e Dinalva Conceição Teixeira, a Dina”.


 


“Imaginação e realidade”


 


“Vi os papéis nas mãos do Curió” — sustentaria o presidente da Cooperativa, Ataliba da Silva Leite, principal signatário do documento. Curió é definido no texto do JB como “personagem símbolo da repressão no Araguaia e o principal arquivo vivo de todos os mistérios que rondam a história da guerrilha e do minério”. Rival de Ataliba, o presidente do Singasp (Sindicato dos Garimpeiros de Serra Pelada), Raimundo Benigno Moreira, “põe um pouco mais de tempero na versão”:


 


“A área onde está o garimpo era dos guerrilheiros. Quem conhece a história e mora na região sabe disso. Quando toco no assunto, as autoridades do Ministério de Minas e Energia dizem que são coisas da ditadura, do passado e desviam do assunto”.
“Imaginação fértil ou realidade, o fato é que essa suspeita nunca chegou a ser investigada a fundo”, comenta a matéria do JB, que acrescenta: “O circuito da guerrilha compreendia uma extensão estimada entre 7 e 9 mil quilômetros quadrados, e englobava pedaços do Sul e Sudeste do Pará e uma parte do hoje Estado do Tocantins”.


 


De um modo ou de outro, todos esses elementos ofereceriam maior consistência política e substância ideológica à resistência que seria gradualmente construída na região, jogando por terra as interpretações levianas acerca do planejamento existente. No desespero, a saída “estratégica” do coronel Curió termina por ensarilhar uma afiada faca de dois gumes contra seu próprio peito e da corporação militar.


 


Inúmeros crimes pós-guerrilha


 


Na prática, essa conversa tem um outro prumo. A story line de Curió sugere que, não fosse seu desempenho no combate a esse projeto (ou, de modo mais factual, nos assassinatos cometidos para roubar direitos de concessão à lavra), ele poderia ser algemado, preso e submetido a um julgamento público por crimes que se sucederam à Guerrilha do Araguaia, e inoculam uma capenga “lei de anistia”.


 


Entre esses crimes, está até mesmo a execução, em 1993, de um adolescente de 17 anos (hoje contaria 35 anos) que supostamente teria penetrado em sua chácara, em Brasília. No final de 2007, as Câmaras Criminais Reunidas do TJE decidiram adiar o seu julgamento pela acusação do homicídio doloso daquele jovem brasileiro, em denúncia formulada pelo Ministério Público do Distrito Federal, pois Curió “não foi localizado”, apesar de ter endereço e local de trabalho conhecido, na prefeitura de Curionópolis.


 


Pois, como parte de sua tarefa, ele ganhou uma cidade, de onde foi prefeito (e permaneceu ainda em 2008, resistindo à cassação que culminou um processo por abuso do poder econômico formulado pelo TSE). E persistiu semeando execuções. Depois de comandar as operações de extermínio no Araguaia, construiu um feudo econômico e político, exercendo até hoje forte influência na região conflagrada.


 


Curió fundou Curionópolis (PA), que se emancipou de Marabá em 1988, exercendo o primeiro mandato de prefeito após uma longa folha de serviços prestados ao regime numa região onde fez muitas vítimas entre os garimpeiros, mantendo-se indiferente a quaisquer sinais de mudança. Exemplo disso foi o assassinato de Antônio Clênio Cunha Lemos, então presidente do Singasp, em Curionópolis, na madrugada do dia 17 de novembro de 2002, com cinco tiros, dois dos quais na cabeça.


 


Dois anos antes, o mencionado Raimundo Benigno Moreira, que o sucederia no comando do Singasp, fora vítima de esfaqueamento em Serra Pelada.
Garimpo da morte


 


A execução coroou a disputa entre dois grupos rivais de garimpeiros pelo controle da Cooperativa, um dos quais ligado a Curió. Aconteceu às vésperas das eleições para escolha da nova diretoria da Coomigasp, acirrada pela presença de uma chapa de oposição ligada ao Singasp, liderado até então pelo assassinado Cunha Lemos.
Muitos garimpeiros chegavam à região para votar contra a permanência do grupo de Curió à frente da Cooperativa. Curió agiu para barrar a entrada dos garimpeiros no local do enterro, armar trincheiras nas margens da estrada e queimar uma ponte para travar a passagem de veículos. Antes de ser assassinado, Lemos denunciara que, caso algo ocorresse contra ele, o culpado seria o prefeito Sebastião Curió.


 


No dia 19 de novembro de 2002, numa reunião da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (CDH), Lemos apresentaria uma lista com 41,2 mil garimpeiros que pediam reintegração à Cooperativa.


 


O então presidente da CDH, deputado federal Orlando Fantazzini, foi a Curionópolis acompanhado de agentes da Polícia Federal para elaborar um relatório sobre a situação e se encontrar com os garimpeiros e parlamentares da região.


 


No dia 20 de novembro de 2002, lideranças locais, representantes da OAB e da Igreja, se reuniram com o então governador do Pará, Almir Gabriel, e escolheram uma comissão que buscaria uma solução pacífica para o conflito.


 


Ouro para gringos


 


Em vão. Como afirmamos na 4ª edição da Revista do Araguaia, as evidências efetivamente apontam, de modo ainda mais consistente, para a razão fundamental de tanta violência que se abateu sobre a população araguaia nos anos da Guerrilha: a cobiça privada nacional e internacional sobre os minérios amazônicos.


 


Em julho de 2004, sob o título “Garimpeiros vendem parte de Serra Pelada para americanos”, a Folha de São Paulo (04/07/2004) noticiou que o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) considerou ilegal um contrato celebrado entre a Coomigasp e uma mineradora norte-americana, que envolveria a exploração de uma jazida de 180 toneladas de ouro e investimento de US$ 240 milhões.


 


O DNPM, autarquia subordinada ao Ministério das Minas e Energia, anunciou que o contrato não apresentava valor legal, pois a cooperativa não detinha ''nenhum direito'' sobre o aproveitamento de bens minerais em Serra Pelada. A Coomigasp afirmou que seriam exploradas mais de 20 toneladas de ouro ocultas em uma montanha de entulho — atividade também vetada pelo DNPM.


 


Efetivamente, a Coomigasp, liderada por Curió, assinou contrato com a empresa norte-americana de lapidação de pedras preciosas Phoenix Gems no dia 5 de junho de 2004. O ato ocorreu na vila de Serra Pelada (a 150 km de Marabá) entre o representante da empresa, Brent Smith, e Josimar Elízio Barbosa, então presidente da Coomigasp, e ficou sob os cuidados do gabinete do prefeito de Curionópolis, fundador da cooperativa.


 


A Phoenix se comprometeu a entregar US$ 40 milhões aos garimpeiros, a título de empréstimo, até 31 de julho, e a doar US$ 200 milhões assim que a cooperativa obtivesse do DNPM a concessão dos direitos minerais na área. Sem o documento, poderia explorar apenas os rejeitos abandonados pelos garimpeiros — na avaliação de Curió, cerca de seis toneladas de ouro.


 


“Ferida aberta na selva”


 


De acordo com a FSP, o negócio reativou a disputa pelo espólio do maior garimpo já descoberto no Brasil. O presidente da Coomigasp disse que somente os associados estariam representados no acordo, inspirado na fórmula de Curió, que distribuiu terras aos “bate-paus” que o ajudaram no combate à Guerrilha. Cada um receberia R$ 45 mil em dinheiro, mais uma casa no valor de R$ 16 mil numa nova vila a ser construída.


 


Por causa dessa armação, o presidente do Sindicato, Benigno Moreira, ameaçara invadir Serra Pelada com 30 mil garimpeiros, recuando apenas diante do compromisso do governo federal de buscar uma solução. Elízio Barbosa já circulava então por Serra Pelada com três seguranças.


 


Muito mais que numa mera coincidência, a história do garimpo de Serra Pelada começava em 1976, no ano seguinte à proclamação oficial do fim da Guerrilha do Araguaia, quando um geólogo do DNPM encontrou amostras de ouro no sul do Pará (jornalista Ricardo Kotscho em ''Serra Pelada, uma ferida aberta na selva''). O sigilo foi quebrado em 1977, quando a CVRD, que tinha direitos sobre a jazida, anunciou a descoberta de ouro. Em 1979, o ministro de Minas e Energia da ditadura, Shigeaki Ueki, confirmou oficialmente a existência do ouro na Serra de Carajás.


 


Em 1980, levas de migrantes se deslocaram para o Pará e invadiram o garimpo — pertencente a uma subsidiária da Vale, a Docegeo. Em 21 de maio desse ano, o governo federal promoveu uma intervenção na área, já ocupada por 30 mil garimpeiros, evidentemente comandada pelo então major Curió, o protagonista das intervenções consideradas “estratégicas” pelo regime militar.


 


Em 1981, após o esgotamento dos depósitos de ouro na superfície, a CVRD tentou reaver a posse da área, mas os interesses eleitorais da ditadura (sobre aqueles 80 mil garimpeiros) prorrogaram a exploração. O garimpo foi reaberto em 1982, Curió foi eleito deputado federal e apresentou um projeto de lei que permitia mais cinco anos de atividade.


 


Rastro de sangue


 


A violência prosseguiu, vitimando os que buscavam o ouro. Em 1987 os garimpeiros interditaram a ponte rodo-ferroviária sobre o rio Tocantins, exigindo que o governo rebaixasse a cava do garimpo. A PM do Pará — a mesma do massacre de 21 camponeses em Eldorado de Carajás (na mesma região de Curionópolis e Parauapebas) — desimpediu a ponte deixando, de acordo com a fonte oficial, três garimpeiros mortos, e, de acordo com os garimpeiros, mais de 60.


 


Em março de 1992, o governo brasileiro não renovou a autorização de lavra e o garimpo voltou a ser concessão da CVRD. Em 1996, os garimpeiros invadiram a mina, mas uma operação do Exército e da Polícia Federal, já no rumo da privatização da CVRD, pôs fim à obstrução de 171 dias nos acessos a Serra Pelada — fato que, em novas circunstâncias, se renova hoje na estrada de ferro de Carajás pela ação dos integrantes do Movimento dos Trabalhadores e Garimpeiros na Mineração (MTM).


 


Do início dos anos ‘80 aos dias atuais, Curió manipulou desde as origens um formigueiro humano que lembrava uma cena egípcia na construção das obras faraônicas. E ainda domina uma terra desolada pelas humilhações e assassinatos que tem como símbolo uma árvore amazônica que, por decreto municipal, nomeou “Pau da Mentira”.


 


E, por decreto, está presente com uma estátua em uniforme camuflado do Exército (do tempo da Guerrilha) na sede da cooperativa dos garimpeiros. Entretanto, nenhum decreto apagou seus crimes e a miséria contagiante que restou em torno da sua imagem — herança viva da ditadura e de seus sucedâneos no poder.


 


Grife tradicional


 


A arrogância de Curió se espelha na tradição da atrasada e truculenta elite brasileira, que, dos “pacificadores” Fernão Dias e Borba Gato aos requintados “humanóides” Filinto Müller e Sérgio Fleury (entre outros, Marco Maciel se refugia na esfera institucional dos caçadores da democracia e dos partidos políticos), escala seus quadros de modo racional para perseguir determinadas metas. E cuida bem deles.
Exemplarmente, Müller, desertor da Coluna Prestes e executor da extradição de Olga Benário como chefe de polícia do Estado Novo, teve uma trajetória que incluiu um encontro com Heinrich Himmler, chefe da polícia política nazista, a Gestapo, em visita oficial a Alemanha no final de 1937, em seguida à instalação da ditadura no Brasil.


 


Não obstante sua trajetória de crimes (e até por isso, pois, assim como Curió, também realizou prisões arbitrárias e utilizou-se da tortura no trato aos prisioneiros), ocupou cargos de destaque na República, inclusive como líder do governo JK, elegeu-se quatro vezes senador, presidiu nacionalmente a Arena, voltou a ser líder do governo no regime militar e, após ser escolhido presidente do Senado em 1973, faleceu num acidente aéreo em Paris e virou nome de Ala no Senado Federal.  
Portanto, no que concerne (pelo menos) a elite, mesmo longe de ter o mesmo tratamento histórico de Müller, não será julgado ou abandonado, como não o foram os “cortadores de cabeça” de diversos tempos históricos. Afinal, o coronel Curió demonstra freqüente benevolência com a tropa, ainda que moralmente submetido aos guerrilheiros: “Eles conheciam a floresta e a tropa militar colecionava muitos erros, como movimentar 300 homens ao mesmo tempo, roupas inadequadas, combatentes não adestrados e falta de rádios de comunicação. Até homens da guarda palaciana, que nem sabiam o que era selva, estavam lá”, narrou à Tribuna da Imprensa (04/03/2004) em suas primeiras revelações após a determinação judicial (agora reiterada) que ordenou a abertura dos arquivos da Guerrilha do Araguaia*.


 


Que venha o livro do coronel.


 


*Após o histórico dia 30 de junho de 2003, quando a juíza da 1ª Vara Federal de Brasília, Solange Salgado da Silva Ramos de Vasconcelos, assinou a sentença (307/2003) que determinou a quebra do sigilo das informações militares de todas as operações referentes à Guerrilha do Araguaia, informando “onde estão sepultados os restos mortais dos familiares dos autores da ação, mortos na guerrilha do Araguaia, bem como para que proceda ao traslado das ossadas, o sepultamento destas em local a ser indicado pelos autores, fornecendo-lhes, ainda, as informações necessárias à lavratura das certidões de óbito”. A juíza determinou também a apresentação de “todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas à guerrilha, incluindo-se, entre outras, aquelas relativas aos enfrentamentos armados com os guerrilheiros, à captura e detenção dos civis com vida, ao recolhimento de corpos de guerrilheiros mortos, aos procedimentos de identificação dos guerrilheiros mortos quaisquer que sejam eles, incluindo-se as averiguações dos técnicos/peritos, médicos ou não, que desses procedimentos tenham participado, as informações relativas ao destino dado a esses corpos e todas as informações relativas à transferência de civis vivos ou mortos para quaisquer áreas”. E determinou “à ré que, sendo necessário, proceda à rigorosa investigação no prazo de 60 (sessenta) dias no âmbito das Forças Armadas, para construir quadro preciso e detalhado das operações realizadas na Guerrilha do Araguaia, devendo para tanto intimar a prestar depoimento todos os agentes militares ainda vivos que tenham participado de quaisquer das operações, independente dos cargos ocupados à época, informando a este juízo o resultado dessa investigação”. E completou: “Ultrapassado o prazo de 120 dias sem o cumprimento integral desta decisão, condeno a ré ao pagamento de multa diária que fixo em R$ 10.000,00 (dez mil reais)”.

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