Crise e parasitismo nos EUA
Kenneth Rogoff , ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), acredita que a crise econômica em curso nos Estados Unidos e na Europa está longe do fim e tende a piorar. ''Os Estados Unidos não estão fora de perigo. Penso que a crise f
Publicado 26/08/2008 16:34
Rogoff, hoje professor de Harvard, criticou ainda os cortes nas taxas de juro promovidos pelo Federal Reserve (FED), banco central dos EUA. ''O corte das taxas de juro levará a muita inflação nos próximos anos nos Estados Unidos'', avaliou. A verdade é que a crise colocou as autoridades econômicas do país entre a cruz e a espada.
De um lado, a emergência da recessão sugere a necessidade de reduzir as taxas de juros. De outro, a fragilidade do padrão dólar e a inflação em alta indicam a necessidade de aumentar os juros para atrair capitais estrangeiros, indispensáveis para sustentar o valor da moeda e financiar o rombo externo, bem como conter o consumo interno e a alta dos preços.
Os juros e o dólar
A redução das taxas de juros é uma das causas imediatas da forte queda do dólar registrada praticamente em todo o mundo ao longo dos últimos anos. Os juros baixos reduzem o apetite dos investidores estrangeiros por ativos estadunidenses, comprometendo o financiamento do escandaloso déficit em conta corrente e estimulando a emissão inflacionária das verdinhas.
A crise econômica e a depressão das bolsas também estimulam a fuga de capitais dos EUA, agravando o problema. A inflação do dólar pressiona os preços internos através da alta das mercadorias importadas, que têm um peso expressivo na composição do consumo interno norte-americano. De quebra, é também uma das causas da inflação mundial das commodities, uma vez que o dólar ainda é a medida (ou unidade de referência) dos preços internacionais.
O dilema explica a decisão (ou falta dela) do Federal Reserve, que preferiu ficar em cima do muro em suas duas últimas reuniões, mantendo a taxa básica de juro inalterada em 2% ao ano, o que configura uma interrupção da política monetária de viés baixista iniciada em meados de 2006 para fazer frente à ameaça de crise no setor imobiliário, que acabou irrompendo no ano passado.
Ciclo deformado
As estatísticas indicam que o sistema capitalista-imperialista dos Estados Unidos está amargando algo mais que uma crise cíclica. A análise dos fatos sugere que há novidades na atual turbulência que fazem diferença em relação às crises cíclicas habituais, que de resto são intrínsecas ao processo de reprodução ampliada do capital em escala social.
A crise atual revela certa deformação do ciclo econômico nos Estados Unidos em comparação com o ciclo anterior – o festejado e mistificado boom dos anos 1990. A diferença começa pela duração.
O ciclo de crescimento verificado na última década do século 20, quando a balança do desenvolvimento aparentemente tinha se inclinado a favor dos EUA, durou cerca de 10 eufóricos anos, antes de desaguar no colapso da chamada Nova Economia (com direito a fraudes contábeis, falências e derretimento do valor das ações das empresas de informática e telecomunicações) e na recessão de 2001 (1).
A recuperação desta última crise, conforme notou o economista Robert Brenner, foi frágil, breve e sem bases sólidas. Embora a recessão tenha sido declarada oficialmente encerrada ainda no segundo semestre de 2001, a verdade é que a indústria e o nível geral de emprego só iriam conhecer uma débil e incerta recuperação a partir de 2003. E esta não durou sequer cinco anos, metade do ciclo de prosperidade anterior.
Expansão distorcida
A economia saiu da recessão em 2001 graças a uma ousada e contraditória política de redução dos juros conduzida pelo Federal Reserve sob a presidência de Alan Greespan. A taxa básica recuou para 1% ao ano e permaneceu por um bocado de tempo negativa (abaixo da inflação). Só em 2004 o FED retomaria o viés altista da política monetária, elevando o juro gradualmente, para mais de 5% em 2006, quando o sentido da política monetária foi mais uma vez alterado, optando-se pela redução gradual da taxa básica até os 2% atuais.
A expansão do crédito decorrente do afrouxamento monetário conteve o avanço da recessão, induzindo uma retomada do crescimento ancorada na expansão extraordinária do consumo, que passou a representar mais de 70% do PIB, e do endividamento familiar e empresarial, cabendo destacar a dívida hipotecária. Este foi um efeito colateral que revela o caráter limitado e contraditório da intervenção do Estado capitalista na economia. Como muitos economistas observaram, a política de Alan Greespan produziu a bolha financeira que estourou no segundo semestre do ano passado e provocou a crise atual.
O extraordinário avanço do consumismo não teve contrapartida na produção industrial doméstica, configurando o que o economista Robert Brenner chamou de ''uma via distorcida de expansão'' e que podemos caracterizar também como um ciclo de reprodução parasitário. Registre-se que o consumo esteve em expansão, de forma inusitada e bizarra, mesmo durante a recessão de 2001, o que à primeira vista pode parecer um contra-senso. Na realidade, o hiato entre produção e consumo nos EUA é mais um sinal de parasitismo, que encontra sua explicação nas relações que o imperialismo americano estabelece com o resto do mundo e no seu histórico e escandaloso déficit comercial. A diferença entre exportações e importações deve chegar a 900 bilhões de dólares este ano – a cifra é a melhor medida de quanto a sociedade estadunidense vive à custa alheia.
O apetite dos consumidores resultou, obviamente, numa forte expansão do comércio varejista, associada não mais ao incremento da produção doméstica, como seria normal, mas ao aumento apreciável das importações, que além de aprofundar o relativo sucateamento da indústria americana também impulsionou o déficit em conta corrente e o passivo externo, o que abalou a credibilidade do padrão dólar. Deste modo, a bolha impulsionada pela redução dos juros agravou o parasitismo da sociedade norte-americana, acostumada a viver além dos próprios meios que produz, poupando pouco e consumindo em excesso.
Hegemonia em xeque
A política de redução dos juros levada a cabo por Alan Greespan tem tudo a ver não só com a crise financeira (a bolha imobiliária) como igualmente com a crise do dólar. O déficit externo corrompeu os fundamentos que sustentavam o padrão dólar, colocando em xeque a capacidade do dinheiro de Tio Sam continuar cumprindo as funções de moeda internacional – ou, em outras palavras, de manter a hegemonia do padrão dólar.
A atual crise, por conseqüência, não tem apenas um caráter cíclico, pois combina as perturbações no sistema produtivo e financeiro com a decomposição do padrão dólar. Os fenômenos estão estreitamente associados. O que está em curso, no final das contas, é a crise da ordem capitalista e imperialista internacional, ou seja, a crise da hegemonia dos EUA.
1- A época (meados da década de 1990 até os primeiros anos deste século) foi dominada falsa aparência de que o processo de decadência da hegemonia imperialista dos EUA fora revertido, abrindo a perspectiva de um novo século americano. Quem falava em decadência do império e denunciava a decomposição do padrão dólar era tachado de esquerdista e catastrofista pelos que apostaram ingenuamente na hipótese de que os EUA continuariam liderando o crescimento mundial pelo menos até a metade do século 21.