Crivella, Márcia e a fila do SUS
Durante 10 anos, meu pai dirigiu o Instituto Nacional de Câncer (INCa). Mais do que um hospital ali na praça da Cruz Vermelha, o INCa é uma instituição de atenção à saúde, ensino e pesquisa, extremamente complexa e responsável pela política de atenção oncológica em toda a rede do SUS. Eu não sabia de nada disso, mas acabei sabendo.
Publicado 18/07/2018 18:44
Nesse período, quase que semanalmente eu recebia telefonemas de amigos, conhecidos, amigos de amigos, algumas pessoas muito queridas, para conseguir uma ajuda, agilizar a marcação de uma consulta, adiantar alguém na fila da triagem, antecipar um determinado procedimento. E se isso era assim comigo, que nem médico sou, imagina com meu pai! Diz ele que passava parte importante do dia dando atenção a estas solicitações. Mesmo que nada pudesse ser feito a não ser seguir os procedimentos e protocolos estabelecidos pela rotina hospitalar, a simples escuta e diálogo com o diretor da instituição já era um alento para o paciente e seus familiares.
A dor e o desespero de quem convive com alguém próximo vítima do Câncer é algo inimaginável. O tratamento por si só já é algo invasivo, desconfortável, doloroso, mesmo quando há possibilidade de cura. Cada pessoa é singular na dor e no sofrimento. É sempre uma contradição para o sistema de saúde pública o fato da doença de cada um ser única, e do sistema ser universal, tendo como objetivo assegurar a saúde como direito de todos e dever do Estado. Como lidar, de forma igualitária, com tantas diferenças e especificidades de cada caso?
Quem já teve um filho, mãe, parente próximo, esperando por um procedimento médico no sistema público, e não desejou, pediu ou tentou “mexer os pauzinhos” para conseguir um atendimento mais ágil ou mais individualizado?
Quando eu li e ouvi sobre o episódio da reunião do Prefeito- bispo Crivella com os pastores, o oferecimento de passar na frente da fila das cirurgias de catarata, o “fala com a Márcia que ela resolve”, imediatamente me veio à mente as situações que vivi, por tabela, com meu pai na direção do INCa. Muita gente de esquerda, progressista, de ética inabalável, condenou o episódio e repeliu publicamente o bispo-prefeito nas redes. Alguns desejando e militando pelo seu afastamento por conta dos favorecimentos oferecidos. E de fato, não cabe defender o indefensável. Mas eu vi, entre os que criticaram o episódio do Crivella, pessoas que em algum momento já me procuraram pedindo ajuda para passar a si mesmo ou a alguém na frente, na fila do INCa ou em alguma outra fila.
E não se trata de comparar a situação de pacientes e suas famílias, movidos por dores e angústias em um sistema público de saúde deficitário, com a concessão de benefícios e facilidades a grupos específicos por parte de agentes públicos. São razões e objetivos completamente distintos. Mas o cerne da questão é o mesmo: a relação do cidadão e da sociedade com o Estado, no acesso a direitos básicos de cidadania. E neste ponto, grande parte da esquerda tem subestimado o imenso papel social que igrejas evangélicas neopetencostais cumprem hoje na base da sociedade, particularmente nas favelas e territórios populares da cidade do Rio de Janeiro, no sentido de mediar o acesso a direitos e criar laços de vínculo, escuta, afeto e inclusão.
Na ausência do próprio Estado, com o enfraquecimento do trabalho pastoral de base da igreja católica, o abandono progressivo da disputa destes territórios pelos partidos, sindicatos, movimentos sociais, criando certo contraponto ao controle pela força do tráfico e das milícias, lá estão os pastores e suas Igrejas provando que não existe espaço vazio na natureza nem na sociedade.
Para se realizar uma cirurgia de catarata, é necessário primeiro um diagnóstico médico que identifique a doença e encaminhe o paciente para o procedimento. É uma doença que acomete pessoas idosas. Não são poucos os idosos que perdem a visão progressivamente, passando anos nesta condição, sem se dar conta, ou sem condições mínimas de acesso ao próprio diagnóstico,que começa na própria casa, e na cabeça da própria pessoa, ao se dar conta – ou não – de que a visão está diminuindo. É aí que o pastor e a igreja passam na frente, ao dar uma atenção individualizada para aquela pessoa, marginalizada na família e na sociedade, e identificar nela necessidades e problemas de saúde, sejam físicos ou psicológicos. Que outra instituição realiza hoje esta mediação junto ao povo pobre de forma orgânica, sistemática e capilarizada no Brasil e em outros países?
Crivella é muito mais perigoso e nocivo pelo que ele encarna como projeto de poder de longo prazo do que por seus desmandos de alcalde desinteressado e inepto. Oferecer cirurgias de catarata e acelerar processos de obtenção de CNPJ e isenção de impostos para igrejas pode se configurar como crime de responsabilidade. Mas chega a ser coisa ingênua perto de negociações e facilidades que são oferecidas diariamente para bancos, empreiteiras e grandes empresas de comunicação, empresas de ônibus, etc.
O efeito reverso que toda esta história pode provocar no eleitorado popular e evangélico, com o qual as pontes e vínculos da esquerda são mínimos, e os dos pastores reunidos por Crivella são sólidos e estreitos, ainda não sabemos. Mas é possível supor que ao xingar e pedir o Fora Crivella, a estranha aliança formada pela esquerda da zona sul, a Globo e as famílias Marinho e Maia (a César, o que é de César) estejam reforçando junto a este eleitorado a imagem messiânica de um líder sensível à dor dos mais pobres, humilhado e ofendido, mas exaltado pelo Senhor. E assim seguimos, derrubando pontes e construindo abismos.