“Custódia”
Dores da paixão
Em drama familiar, cineasta francês Xavier Legrand discute as várias razões que levam à separação de casal e as consequências para os filhos.
Publicado 31/07/2018 10:13
À moda dois filmes de suspense, o cineasta francês Xavier Legrand prefere começar este “Custódia” pela decisão final da juíza (Saadia Bentaieb). Embora a magistrada tenha se decidido pela guarda-compartilhada dos dois filhos do casal, a sensação de Antoine (Denis Menochet) é de derrota. Sua agora ex-companheira Miriam (Léa Drucker) deixa o Tribunal com a impressão de que a relação entre eles está encerrada e não mais serão um casal. O espectador, porém, fica com a sensação de que lhe faltam peças para montar este quebra-cabeça.
São estas construções que ditarão o ritmo e o desenvolvimento da história, através de uma tensa narrativa. Em sua estreia como roteirista e diretor, Legrand constrói um Antoine inseguro, que deverá compartilhar a convivência e a educação do filho pré-adolescente Julien (Thomaz Gioria) e readquirir a confiança da filha Josephine (Matilde Auneveox). Entretanto, mostra-se frustrado, sempre a descarregar suas mágoas no garoto. E se irrita quando ele liga para a mãe para lhe dizer que está tudo bem. Ao invés de os aproximar, seu comportamento afasta cada vez mais um do outro.
Contudo, à medida que a narrativa avança, Legrand introduz uma série de dúvidas na cabeça do espectador. Dentre elas a fragilidade em que Antoine se encontra por estar desempregado, morando no interior da França e agora abrigado na casa dos pais em Paris. A separação pode ter agravado seu estado psicológico e o levado a agir agressivamente com Julien. Em rápidas sequências, Legrand mostra o quanto Miriam contribui para esta instabilidade. Principalmente ao não se dispor a incentivar a boa convivência com seu ex-companheiro e os encontros de Julien com ele.
Legrand não julga seus personagens
A tendência do espectador, como sempre, é encontrar um vilão e a culpa naturalmente recai sobre Antoine. Ele a justifica ao expor instabilidade emocional e ódio, discutir com o pai Jöel (Jean-Marie Winding) e forçar Julien a ser confidente seu. Quer a todo custo saber como vivem os filhos. Onde vocês estão morando? É no conjunto habitacional? Me leve lá! Seu alvo, no entanto, é outro. Os prédios onde chegam dão uma imagem diferente de Paris e da riqueza francesa. Trata-se de subúrbio de classe média sem abastança, porém bem construídos.
Contundo, Antoine reage como se Miriam tivesse levado os filhos a morar em apartamento sem conforto e reduzido sua qualidade de vida. De novo a dualidade se impõe. Legrand mostra a um só tempo que além do choque, Antoine busca algo mais. E justifica o motivo de ter levado o espectador a desconfiar de Miriam. Ela tem namorado? Está morando com ele aqui?, insiste com Julien. De novo têm-se que se voltar ao início da narrativa no tribunal. A juíza não buscava decidir se Antoine ou Miriam era responsável pela separação, cuidava apenas de proteger os filhos do casal.
Ainda que Legrand não julgue o comportamento dos personagens, fazendo-os apenas agir, o espectador termina por tomar partido de um e outro. É uma boa construção dramática, pois o que ele diz é: não há apenas um motivo para a separação, ambos podem ter igualmente escorregado. Na sequência em que Antoine e Miriam se encontram e ele a questiona, há duplo sentido: I- por ela ter outro; II – por ele ser mais jovem do que ela. Por isto, o orgulho do macho aflora e ele fica ainda mais possesso. Entende-se, assim, o quanto ele a amava e se ressente da perda.
Antoine chora ao tentar se reconciliar
A partir daí, já na terceira parte do filme, sem abandonar o tema central deste drama familiar, ou seja, a separação de um casal beirando os cinquenta anos, Legrand o torna ainda mais eletrizante. Antoine, além de ser o descontrolado pai que não sabe reconquistar o filho e nem como se reaproximar da filha, vê-se agora como marido traído. Apesar disso, faz rolar lágrimas se penitenciando, pedindo perdão, como se isso o reconciliasse com Miriam e lhe devolvesse o carinho e o amor dos dois filhos. Beira o dramalhão, mas era seu único recurso para a reconciliação.
Legrand não foge inclusive ao espetáculo em grande estilo na sequência em que Josephine e o namorado entoam o canto de liberdade de sua geração. Enquanto isso, Miriam vive seu impasse entre Antoine e seu novo companheiro. Eis a contraposição entre seus pais e a garota que ao completar dezoito anos supostamente não mais carece da proximidade do pai, pois a mãe a ampara e lhe dá carinho e segurança. A ambiguidade construída aqui por Legrand aqui é mais sútil. Não só ela, Josephine, tanto Antoine, pai e filha, precisam do carinho um do outro para serem felizes.
A questão é que nenhum dos dois, nem o próprio Legrand levantam esta questão. Não sem razão, ela é um personagem-esteio de um quarteto de situações. O fato de eles não se encontrarem confirma o quanto Miriam interfere de um lado, Josephine se leva pela mágoa de outro, e o próprio Antoine, com seu rancor e fragilidade psicológica e material, não entende o quanto contribui para este distanciamento. Há entre eles outra razão: o fato de Miriam ter trocado Antoine pelo Jovem, aceito por Josephine. Não é diferente na vida real e o filme apenas a reflete na abordagem ficcional, construída por Legrand com poderosas e elucidativas e cruas imagens.
Filme reconstrói o cotidiano da mulher
Não bastassem estas construções dramáticas, cheias de suspense, Legrand foge ao moralismo e a penalização da mulher. Leva o espectador a entender as razões de Miriam e lhe dá o direito de se libertar. E, a partir daí, reconstruir sua vida com seus filhos e o Jovem. Insatisfeito, Antoine usa de extremo recurso para subjugá-la, guiado por primitivos instintos. Sua explosão de ódio, sem qualquer racionalidade, põe a vida da ex-companheira e do filho sob ameaça fatal. Dispara sucessivos tiros contra a porta do quarto em que eles se encontram, com descontrolada fúria. Tal irracionalidade demonstra quanto risco ela correu ao viver com ele.
Nesta bem construída sequência de Miriam e Julien presos no quarto, enquanto Antoine grita|: “Abra esta porta!” relembra a estruturada por Stanley Kubrick (1928/1999), em “O Iluminado (1980)”, quando o possesso Jack Torrance (Jack Nicholson) usa o machado para quebrar com extrema violência a porta do quarto onde estão sua companheira Wendy (Shelley Duvall) e seu filho Danny (Danny Lloyd). O clima a envolver ambos e ao próprio espectador é de puro terror. A diferença é que Kubrick tratava de ficção, Legrand, pelo contrário, procura reconstruir o enfrentado por inúmeras mulheres em seu cotidiano. Muitas, sem dúvida, não sobrevivem.
Há muito não se via uma fusão de drama familiar, suspense, violência e, indiretamente, a abordagem dos conflitos vividos pela mulher de forma tão criativa. O espectador deixa o cinema ciente de que é possível fazê-lo, sem se valer de citações ou diálogos feministas ou não. Precisa, além disso, de uma boa história com bons personagens e uma bem construída narrativa de forma a envolver e levar quem a assiste a se identificar com o que lhe é contado através de imagens. Não à toa, Legrand foi premiado com o Leão de Prata pelo Festival de Veneza 2017, como melhor diretor, e com o Leão de Futuro, como melhor primeiro filme. Um bom começo!
Custódia. (Jusqu`a ls Garde). Drama familiar. França. 2017. 93 minutos. Edição: Yorgos Laprinos. Fotografia: Nathalie Duran. Roteiro/direção: Xavier Legrand. Elenco: Denis Menochet, Léa Drucker, Thomaz Gioia, Matilde Auneveox, Jean-Marie Winding, Saadia Bentaieb,