De Sagarana para o palco

Enfim, Guimarães Rosa é levado ao teatro. Com o que há de melhor de sua obra, um ícone, no gênero, da literatura regional. A hora e vez de Augusto Matraga foi adaptada pelo dramaturgo André Paes Leme. Está sendo encenada por uma trupe de oito atores, da Sarau Agência de Cultura Brasileira.

No conto, o narrador, mesmo que oculto, imiscui-se com os personagens; inda que não assumindo o culto ao fatalismo, à sina da tragédia anunciada, inevitável. Na encenação, os trinta personagens da obra surgem e ressurgem no perfil corporal e na voz dos oito artistas. A performance não se circunscreve tão somente às falas; mostra-se também no discurso nar rativo, como nos entrechos de Rosa. Destaque para Ernani Morais no papel de Joãozinho Bem-Bem, Coronel Afonsão e Tio Nervoso; o ponto alto, porém, está na encarnação de Joãozinho Bem-Bem; por causa da tensa polarização com Matraga, por causa dos relinchos cavalares na voz. Nos relinchos, roça a hilaridade, não torna-se bufão; convence. Já o ator Pedro Gracindo não convence, fazendo as vezes do jumento que transporta Matraga, depois de despedir-se da negra “mãe Quitéria”, que curara suas feridas. Gracindo provoca o riso no público; e o momento é de tensão, do incógnito porvir de Matraga.

No papel de Matraga, Jackyson Costa não tem o porte físico da criatura de Guimarães Rosa, do que ela evoca nas páginas; no físico e na voz. Mas o ator convence na assunção do tenso perfil de Augusto Matraga, à espreita de sua “hora e vez.” Na lembrança agônica do sexo ativo, àquela altura remoto. Rosa assim a descreve: “E a força da vida nele latejava, em ondas largas, numa tensão confortante, que era um regresso e um ressurgimento.” Na altura em que os ex-capiaus de “Nhô Augusto” arremetem porretes nas suas costas, a densidade da violência desce do palco, tensiona o público; mesmo que os golpes sejam num trapo de tecido sobre um tronco, os gritos da vítima juntam-se à vindita dos agressores. As dores impressionam.< /span>

Faz falta a personagem filha de Matraga; porque é filha de Dionóra, que foge levando-a, para se “amigar” com “seu Ovídio.” A Rosa não escapou a pungência do futuro incerto da menina de dez anos, posto que “Seu Ovídio pegou a menina do colo de Quim (capiau sujeitado a Matraga), que nada escutara ou entendera e passou a cavalgar bem atrás.” A fuga de Dionóra não se anunciara, mas se entrevira na relação desigual, de dominação do marido sobre a mesma, porque “Nhô Augusto (…) Dela, Dionóra, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes.” Georgiana Góes não se mostra atriz robusta de dotes, mas exibe, insinua a fartura de “carnes”, objeto dos poucos desejos do marido saciado .

Toda a peça se enriquece com os versos cantados pelo elenco, a começar de Jackyson Costa com o violão anunciando o personagem, advertindo:

“Vida do outro é mistério

Sina da gente é segredo

Ninguém pode duvidar

Sertão virado do avesso

Sorte mudada no azar”

A morte e a vez de Augusto Matraga é mais que um conto, é a saga do conto.

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