Déficit, dívida e decadência dos EUA

Ao lado dos tremores que vêm abalando as bolsas de valores mundo afora no curso das últimas semanas, uma notícia importante e igualmente preocupante sobre o atual estado de saúde da economia dos EUA foi divulgada na quarta-feira passada (14/3) pelo Depart

As estatísticas contêm uma novidade que evidencia o agravamento e sugere uma mudança de qualidade na composição do déficit. É que, pela primeira vez desde 1929, também o resultado líquido dos investimentos fechou no vermelho. Isto significa que o valor total da mais-valia (lucros de todas as modalidades, inclusive juros) extraída pelas transnacionais ianques no exterior ficou abaixo (no caso, em US$ 7,3 bilhões) dos rendimentos auferidos e repatriados pelos investidores estrangeiros no interior dos Estados Unidos.


 



Um fato inédito



 


Conforme notou o jornalista Martin Crutsinger numa interessante reportagem sobre o tema (publicada em 15/3 no jornal Valor Econômico e que, aqui, será citada mais de uma vez), o déficit na balança dos investimentos é um fato inédito para o “império” (se levarmos em conta que a hegemonia americana só foi institucionalizada após a 2ª Guerra Mundial). Isto tende a conferir ao desempenho da conta corrente uma relativa autonomia em relação ao saldo negativo do intercâmbio de mercadorias, do qual na verdade constitui o resultado histórico.


 



Doravante, é possível e provável que o rombo nas transações correntes continue crescendo mesmo se o déficit comercial recuar, já que a contabilidade dos lucros envolve centenas de bilhões de dólares. O fato inédito reflete a evolução (em médio prazo) do fabuloso passivo externo dos EUA, que ao longo do tempo deixaram de ser uma potência credora e exportadora de capitais (em termos líquidos) para conquistar o status nada invejável de maiores devedores do planeta.


 



Nas palavras do jornalista Crutsinger, que traduz a interpretação de alguns economistas americanos, “o resultado (dos investimentos) ficou negativo por causa do grande número de ativos americanos que foram transferidos para mãos estrangeiras ao longo das últimas três décadas, para pagar a importação de automóveis, vestuário e produtos eletrônicos que os consumidores americanos adoram comprar.”


 



Retrato da decadência



 


O gráfico abaixo, transcrito do jornal Valor, revela que o déficit em conta corrente cresceu de forma ininterrupta como proporção do PIB norte-americano durante os últimos cinco anos, alcançando 6,5% no ano passado. Qualquer outro país do mundo já teria quebrado se tivesse uma performance semelhante neste terreno. A força da economia imperial e a posição especial que o dólar ainda ocupa no mundo conferem aos EUA o controvertido privilégio de se endividar além dos limites usuais. No entanto, é ingenuidade pensar que o rombo externo seja inofensivo, destituído de efeitos ou ainda que, como sustentam economistas e políticos ligados ao governo Bush, deva ser interpretado como um sinal de força e não de parasitismo e decadência.


 


Déficit em conta corrente





























 Ano


 Em % do PIB


 2000


  4,2 


 2001


 3,8


 2002


 4,5


 2003


 4,8


 2004


 5,7


 2005


 6,4


 2006*


 6,5



 Fonte BEA *valor data * preliminar



 


Ao contrário do que pode imaginar o senso comum, os impactos econômicos e políticos do déficit em conta corrente são extraordinários e não se limitam à economia americana. Por isto, quem busca compreender com maior profundidade a realidade internacional e as perspectivas econômicas do imperialismo estadunidense deve dedicar ao tema mais do que um olhar superficial e vulgar. É conveniente investigá-lo com espírito crítico e os métodos da dialética em vez da metafísica.


 



Ensinam os filósofos que a metafísica se caracteriza por separar e isolar o objeto da análise do seu meio ambiente, ao passo que a dialética, diferentemente, procura enxergar os fatos em suas mútuas e múltiplas conexões, determinações e interações. O déficit em conta corrente não é uma mera abstração contábil e não pode ser compreendido como uma coisa que se explica e se esgota em si mesma. Só poderemos entender o fenômeno focalizando suas relações com o parasitismo da potência hegemônica; a acumulação e expansão capitalista em nossos dias (nos EUA e em escala global); o desenvolvimento desigual das nações; a concorrência global; o protecionismo e a decadência do padrão dólar.


 



Através deste e de outros artigos (se conseguir tempo livre para tanto) pretendo compartilhar com leitores e leitoras (que tiverem paciência para refletir sobre assunto tão árido e maçante) algumas idéias acerca de tais relações, idéias que convergem para a conclusão de que o rombo externo (e o endividamento líquido que dele resulta) fornece um retrato fiel da decadência econômica dos EUA e dos impasses da (de)ordem econômica mundial ancorada na hegemonia do dólar.


 



Por enquanto, cabe assinalar que o déficit em conta corrente é a expressão financeira de perturbações (e desequilíbrios) mais graves no processo de produção capitalista no centro do imperialismo. Não encontraremos sua explicação numa suposta financeirização da economia, mas na progressiva perda de competitividade e de mercados pela indústria norte-americana, o que no fundo traduz a crescente desproporção entre renda e consumo, bem como entre as taxas de poupança e investimento na maior economia do mundo, sinalizando uma redução da taxa de acumulação doméstica.


 



Tudo isto transparece na análise da composição do déficit. De acordo com as informações do Departamento de Estado (reproduzidas pelo “Valor”) “em 2006 como um todo, os EUA tiveram um déficit no setor industrial de US$ 836 bilhões, um superávit no setor de serviços de US$ 70,7 bilhões e um déficit nos fluxos de receita de US$ 7,3 bilhões”. Além disso, computaram-se US$ 84,1 bilhões em uma categoria conhecida como transferências unilaterais, constituída basicamente pelas remessas efetuadas por trabalhadores (as) imigrantes (sobretudo latino-americanos) dos EUA para seus países de origem.


 



As estatísticas indicam o primado da produção sobre as finanças. O déficit externo é, em primeira e última instância, o reflexo financeiro da decadência industrial, da qual o endividamento externo líquido e a assombrosa necessidade de financiamento externo do “império” (que consome 80% da poupança global, segundo estimativa do economista Paul Vocker, ex-presidente do banco central estadunidense) são meros resultados.

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