“Desejo e Reparação”: Más lembranças

Diretor inglês Joe Wright escorrega ao contar a história de uma frustração adolescente que se estende por toda a vida.

Em princípio, “Desejo e Reparação”, do diretor inglês Joe Wright, relembra dramas hollywoodianos dos anos 60 e 80, quando temas grandiosos ocupavam as telas. Dramas que transcorriam em meio a paisagens deslumbrantes, embalados por trilhas sonoras onde pontificavam acordes de violinos e piano. E por longas horas se acompanhava conflitos familiares, amorosos e sociais que mantinham o público preso às poltronas dos cinemas. Muitas vezes, como nos filmes de David Lean, tinham a luta de libertação (“A Filha de Ryan”) ou o colonialismo (“Passagem para a Índia”) a dificultar o encontro dos amantes. Lágrimas rolavam e, sem analisar a razão daquele sofrimento todo, saia-se do cinema com a sensação de que no final tudo se arranjara.



Em “Desejo e Reparação”, há muito dos filmes daquelas décadas. A começar pela história da adolescente, Briony Tallis (Saoirse Ronan/Romula Garai/Vanessa Redgrave), que delata o namorado de sua irmã e o lança nos campos de batalha da II Guerra Mundial. Os castelos, os campos, os fiordes e as praias contribuem para esta visão. Menos por um detalhe: a grandiosidade se perde em meio a uma história que se desenrola num vai-e-vem de flashbacks, que o espectador mais atento pode tomar como o transcorrer da história, mas que, no final, irá revelar as fagulhas de memória de Briony já na terceira idade. Não que este tipo de recurso técnico, se usado com eficácia não possa render bom encadeado (veja “O Paciente Inglês”, de Anthony Minghella), mas caso não o seja o resultado pode ser frio e distanciado como ocorre em “Desejo e Reparação”.



Focos narrativos não orientam espectador



Na primeira parte do filme, quando os personagens ainda estão sendo apresentados, vê-se a garota Briony, de 13 anos, no alto da janela, detrás das cortinas, espiando as brincadeiras nada ingênuas da irmã Cecília (Keira Knightley) com seu namorado Robbie Turner (James McAvoy) na grande fonte logo à entrada do castelo habitado por sua família. Ela, uma adolescente, detém-se na maneira como a irmã manipula as emoções do rapaz, serviçal no castelo, mas que goza da simpatia da família e, notadamente, de seu pai, industrial. Percebe-se que há algo para além daquele espreitar, espécie de desejo que brota a cada olhada. Principalmente nela, cujas tendências artísticas se revelam na peça “Arabela em Apuros” que escreve para apresentar ao irmão Paul (Benedict Cumberbaltch) prestes a regressar de longa viagem. E sua ingenuidade é mesclada à incipiente malícia e a pouco equilibrada curiosidade.



Porém esse despertar do desejo ganha contornos pouco definidos no início do filme. Suas rusgas com a irmã Cecília, rival direta pelo coração de Robbie, não o clareiam. Se ela é uma artista em formação e fica atenta às “brincadeiras” da irmã com o namorado, isto pode ser entendido mais como uma curiosidade adolescente do que uma forma de se interpor entre ambos. Isto porque o centro de suas atenções, naquele momento, são a peça e a chegada do irmão. E Robbie sendo um serviçal, portanto de outra classe (na Inglaterra essa tipificação ainda conta – e muito), sua fixação pode ser entendida como discriminação, dado ao status da família. E a forma de Joe Wright expô-la contribui muito para esta impressão, pois os focos narrativos se deslocam com muita rapidez e o espectador não se prende a nenhum deles. Quando desvia a atenção dele, espectador, para a tensão sexual que poderia existir desde o início, o faz como se aquilo fosse motivado apenas pelo acaso.



Filme se transforma na história de uma frustração



Briony surpreende a irmã com Robbie, numa relação íntima, e não se sente perturbada, pelo contrário, fica curiosa. O desfecho dessa seqüência que definirá todo filme vem de uma forma fria e sem as construções que se espera de cena semelhante, ainda mais quando o roteirista é Christopher Hampton (“Ligações Perigosas”), tarimbado dramaturgo e roteirista inglês. É a seqüência que define a vida de Briony, que transforma o filme na história de uma frustração, mais do que na história de uma delação. Os grandes planos, os sutis fluxos de memória em nada contribuem para o que vem a seguir: a sua vingança por ter sido traída pela irmã que ousou roubar-lhe a sua paixão adolescente.



Mesmo o fato criador dessa vingança vem sem o encadeado que o justifique: apenas alguém diz que os gêmeos, primos de Briony, Jackson (Ben Harcourt) e Pierrot (Jack Harcourt), tinham sumido, e todos que se encontravam na casa, inclusive o irmão Paul e o amigo,  Danny Hardman (Alfie Allen) também burguês que ele trouxe, saem a procuram dos dois garotos. Briony, que se desviara dos demais, termina por flagrar uma cena que lhe permitirá vingar de Robbie por “tê-la traído com a irmã”. A confusão já estabelecida em sua cabeça contribui para que ela leve adiante uma reação (não um plano), que resultará no fardo que irá carregar vida afora. Então, a dupla Hampton/Wright constrói três centros de ação, que não se equilibram, pois não lhes é dada continuidade, e não se sabe, em princípio, se transcorrem em tempo real ou se são fruto da mente da frustrada Briony, que custa a ressurgir.



Critica de soldado inglês à França remete ao Iraque
             


Às vezes, nesse vai-e-vem, Hampton/Wright incluem seqüências da relação entre Robbie e Cecília, para mostrar que a paixão de ambos continua. Muito pouco para definir real continuidade. Restam as caminhadas sem rumo de Robbie e dois companheiros, soldados ingleses, pela França ocupada pelas tropas hitleristas. Sua caminhada parece sem sentido, eles não têm objetivo, não informam se estão perdidos, desgarrados de seu regimento ou apenas procuram seus inimigos. Quando encontram as tropas inglesas a elas não se unem, continuam a perambular, entre soldados que entoam canções contra seus oficiais. É nessa caminhada sem sentido aparente que surge uma frase que define não o conflito de grandes proporções ocorrido de 1939 a 1945, mas os tempos atuais.



Um dos soldados pragueja contra os franceses dizendo que eles são mal agradecidos, porque eles, ingleses, estão ali para libertá-los e eles não os tratam bem. Remete à voz do novelista inglês Ian McEwan, que apóia a invasão do Iraque liderada pelas tropas americanas e inglesas, e em cuja obra, “Atonement” (“Expiação”), se baseia o filme. Dá para entender o recado: os franceses na II Guerra Mundial, como os iraquianos hoje; deveriam estar satisfeitos com a ocupação, porque esta, supostamente, os “livrou de Saddan Hussein”. No entanto, a Inglaterra teve a derrocada de seu império justamente no período entre as duas guerras, tendo-a encerrado no pós-II Guerra. E hoje serve de fiel escudeira dos EUA. Tanto um como o outro se atolaram no Iraque e não há grandiosidade ou redenção nesse torpedear de uma nação soberana, com o sacrifício de milhares de vidas.



Centro do filme é uma mentira



Para configurar ainda mais as contradições de “Desejo e Reparação” e a ocupação do Iraque, o centro de ambos é uma mentira, uma denúncia vazia de algo que não ocorreu. No caso do Iraque, já ficou comprovado que o Governo de Saddan Hussein não tinha um arsenal de arma química, e no de Briony, que sua delação revelou-se vazia. Este entrecho do filme, porém, não é explicito. Wright/Hampton/McEwan não o levam adiante. Ficam no ir-e-vir, numa projeção que não se revela de início. E também não se fixam  na paixão de Cecília, que seria seu segundo centro de ação, por Robbie, que na segunda parte surge como já observado, em poucas seqüências. Preferem retornar à Briony na juventude (Romula Garai), enfermeira voluntária num grande hospital que socorria soldados mutilados nos campos de batalha.



Nessas seqüências, o filme cresce; todo o encadeado ganha sentido. O centro da ação não é a relação Cecília/Robbie, mas as conseqüências de seu ato. Como ela convive com a frustração de não ter conseguido atrair para si o amante da irmã, ainda que fosse apenas uma adolescente de 13 anos? Ela não se debate ou se martiriza, tão só projeta situações em que fica diante da irmã e dele. Busca desta forma a expiação de seu erro através da criação literária, fazendo Cecília e Robbie humilhá-la. Numa das cenas, ele lhe diz que não sabe se a joga escada abaixo ou se a esbofeteia. Ela não reage, aceita resignada à ameaça. A culpa emerge, assim como também a prisão em que ela – a culpa – a colocou durante sua existência. Não tem mais vida própria, só a incerteza, a vontade de expiá-la. Ainda assim, sua carga não envolve o espectador, não emociona, não o leva a torcer por ela ou odiá-la. Porque não há vivência, sofrimento, apenas a dissertação literária, em que remonta os fatos e os põe sob a perspectiva da expiação, sem que tenha que se confrontar com Robbie e Cecília, objetos de sua culpa.



Delação adolescente fixa a visão adulta da personagem



Talvez temendo cair no melodrama (drama com música) ou mesmo no dramalhão (drama levado ao extremo, ao ridículo), Wright tenha procurado mais a razão do que a emoção. Mas a situação requer emoção, carga dramática que torne o expectador cúmplice de Briony e perdoe seu deslize adolescente. Essa carga, no entanto, vem nas seqüências finais, quando o trio Wright/Hampton/McEwan decide fechar todas as janelas abertas ao longo da narrativa. São chocantes as revelações. Briony agora tem o rosto idoso de Vanessa Redgrave, cheio de nuances, voz com entonação que passa toda a frustração de uma vida. Uma mulher que passou a vida carregando uma frustração que começou na adolescência.



Compreende-se que estivemos prisioneiros da memória, da compreensão de que a adolescência (sem clichê) determina o que seremos na idade adulta. Aqui pesa o conflito de classe, a impossibilidade de uma união duradoura entre a burguesa, com tendência aristocrática, Cecília, e o proletário Robbie. Há na relação entre eles um quê de proibido, de uma barreira que os impede de serem felizes. Briony, adulta, resolve-o, mostrando-os numa casa paupérrima; a irmã em trajes pobres, Robbie em roupas proletárias. Um toque romântico, numa situação limite entre classes antagônicas. Triste. O olhar da adolescente Briony para a janela, a irmã e o agora cunhado abraçados, traduz estas impossibilidades. Ela mesma, diante do entrevistador para falar sobre o livro em que conta sua frustração, mas não a redime ou expia sua culpa, não se contém. Comprova o quanto ambos estavam distantes, tanto pela idade quanto pela classe.



David Lean tratou de tema igual com mais contundência


 


“Desejo e Reparação”, assim, não retoma as narrativas nem a contundência dos filmes em que conflitos da mesma natureza assumem grandes proporções. Distante está de tema semelhante tratado por David Lean em “Passagem para a Índia”, baseado no romance do também inglês E.M. Foster. Ali também há a acusação de uma tentativa de estupro, feita pela burguesa Adela (Judy Davis) contra o médico indiano Aziz (Victor Banerjee), durante uma viagem às cavernas de Marabar. O que provoca revolta popular, quando chega aos tribunais. Lean é contundente, consegue mesclar desejo, conflito racial e colonial, a partir do comportamento reprimido de Adela.



No entanto, em “Desejo e Sedução”, quando o conflito surge é para atestar o quanto Wright se distanciou da contundência do tema do estupro; mesclado à luta de classe. Sua abordagem é por demais contida. Depois, seu estilo acadêmico, abrandado pelos flashbacks, não rende o esperado e deixa a história de uma frustração adolescente como indicação do que poderia ser um bom filme nas mãos de um diretor que soubesse explorá-la.



“Desejo e Reparação” (Atonement). Drama. Inglaterra. 2007. 130 minutos. Roteiro: Christopher Hampton, baseado na novela de Ian McEwan. Direção: Joe Wright. Elenco: Keira Knightley, James McAvoy, Romula Garai, Saoirse Roman, Brenda Blethyn, Vanessa Redgrave.

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