Dez anos sem a presença inspiradora de Álvaro Cunhal

Neste 13 de junho o movimento comunista completa dez anos sem a presença inspiradora de Álvaro Cunhal, este que foi simultaneamente militante e dirigente comunista, artista e intelectual, um arquétipo do político em ação, tal qual a definição de Gramsci. Cunhal foi, ao lado de outros grandes nomes do século XX, uma expressão viva do militante comunista que buscou integrar, permanentemente, teoria e prática.

Em seus inúmeros artigos, livros e pronunciamentos, Cunhal demonstrou o completo entendimento da unidade necessária entre teoria e prática, refutando sempre a separação entre “pensamento” e “ação”, entre “intelectuais do partido” (a quem se confia a teoria) e “militantes do partido” (que fazem o trabalho político prático pensado pelos intelectuais), que nada mais é do que a continuação da divisão social do trabalho da sociedade burguesa dentro do partido. Já escrevi, por ocasião do centenário do camarada Álvaro Cunhal, um artigo com notas sobre sua biografia e também apresentei, em outro artigo, algumas questões bastante atuais da obra “O Partido com Paredes de Vidro”. Mas não é possível esgotar em dois pequenos textos toda a profundidade da contribuição desde camarada, há ainda muito o que aprender com seu legado.

Para render-lhe mais uma homenagem nessa data em que se completam dez anos de seu desaparecimento, penso ser de grande valia relembrar seus apontamentos sobre as “seis características fundamentais de um Partido Comunista”, tema tão caro ao camarada português e que foi objeto de parte de um seu pronunciamento durante a conferências “Validade e Atualidade do Marxismo”, organizada pela fundação uruguaia Rodney Arismendi, em Setembro de 2001 (e que pode ser lida em: http://resistir.info/portugal/seis_caracteristicas.html).

Antes é preciso entender por que era tão central, em seu pensamento, a organização e o cuidado com o Partido. Cunhal defendia que, ainda que o capitalismo tenha demonstrado imensa capacidade de se renovar e expandir no final do século XXI, seguirá, por sua própria natureza, corroído por contradições e problemas que não consegue transpor e que há forças que se opõem que resistem as quais, mando forças, podem impedir os objetivos do imperialismo. De acordo com Cunhal, essas forças são:

a) Os países que, com os comunistas no poder, insistem no objetivo de construir uma sociedade socialista, embora por caminhos muito diferenciados.

b) O movimento operário, nomeadamente o movimento sindical.

c) Os partidos comunistas e outros partidos revolucionários, lutando com confiança e coragem.

d) A resistência potencial de países capitalistas atualmente dominados e explorados pelo imperialismo, com perda efetiva da sua independência nacional.

e) Novos movimentos nacional-libertadores.

f) Movimentos em defesa do meio ambiente, contra o poder e as decisões dos países mais ricos e diretamente contra a “globalização”.

Essas forças, que são fundamentais para colocar freios à expansão imperialista, precisam ser permanentemente reforçadas, ao mesmo tempo em que é necessário construir os caminhos para sua convergência. Cunhal alertava para o fato de que o imperialismo não se limita a atacar frontalmente, mas também atua para dividir as forças que resistem, para “mina-las por dentro, conduzindo-as a desistirem da luta, à autodestruição e ao suicídio”.

Ao mesmo tempo em que Cunhal defendia a busca por uma ação conjunta entre os diversos movimentos, preocupava-se com a clareza das ações e dos conceitos. A ideia de “esquerda” não seria suficiente para definir as plataformas comuns. Conforme ele, “na generalidade dos países, a palavra ‘esquerda’, no dicionário político contemporâneo, tem um significado impreciso, cheio de incógnitas, contraditório, objetivamente confusionista. Ao definirem-se partidos da ‘esquerda’ ou setores de ‘esquerda’, incluem-se com frequência nesse número, além de partidos da ‘extrema-esquerda’ anticomunistas, partidos socialistas e social-democratas que, na sua ação política, defendem e praticam uma política de ‘direita’”.

Cunhal destacava que, dentro desse amplo espectro de forças, mantém importância central o partido comunista, por seu projeto emancipatório e claramente anti-capitalista. O Partido Comunista, dizia, surgiu em contraposição ao velho e desgastado modelo de partido social-democrata. O "partido de novo tipo", expressão cunhada por Lênin, é sempre apresentado por Cunhal como o partido que se propõe a ser vanguarda da luta da classe trabalhadora em direção à revolução socialista e deve orientar-se pelos princípios da divisão da sociedade em classes, da luta de classes e ter clareza da natureza de classe dos governos. O partido deve orientar-se pela teoria marxista-leninista, sempre renovada, pois que as realidades espaço-temporais são também dinâmicas.

Para Cunhal a democracia estava entre um dos objetivos centrais da ação de um partido comunista. Porém essa democracia precisava ser qualificada, não sendo, necessariamente, aquilo que a burguesia entende por democracia e que é reificado por boa parte dos partidos e organizações de esquerda. Segundo ele “de um governo é necessário exigir simultaneidade e complementaridade das suas vertentes fundamentais. Não basta que um governo se afirme democrático. É necessário que de fato o seja. É necessário definir-se mais concretamente, em cada situação, a democracia pela qual se luta. Numa situação dada, num momento dado, pode, por exemplo, a luta pela democracia dar grande relevo à luta pelo reforço dos elementos de democracia direta e participativa a par da democracia representativa. As eleições são um dos elementos-base de um regime democrático, mas só assim podem ser consideradas se respeitam a igualdade e se são impedidos o abuso do poder, as discriminações e exclusões. Se estas condições não são conseguidas, as eleições tornam-se uma fraude, um grave atentado à democracia e um instrumento da monopolização do poder, por vezes em alternância, pelas forças políticas ao serviço do capital. Uma ´democracia avançada’, pela qual lutam alguns partidos, é definida como um regime democrático que proceda a realizações progressistas de caráter não capitalista (…) Seja desta forma ou de outra, definidos os objetivos da luta pela democracia num momento dado, os comunistas não podem estar, não querem estar e não estão isolados”.

A luta democrática deve, segundo seu pensamento, estar orientada para a construção do socialismo. E, quanto a esse caminho, “cabe aos partidos comunistas (e outros partidos revolucionários) defini-lo nas condições concretas dos seus países. Com convicções, com coragem e com a sua identidade comunista”.

Na intervenção de 2001, aqui em estudo, Cunhal fez um balanço da situação do movimento comunista no alvorecer do século XXI e destacou que o que chamamos “movimento comunista internacional” e os partidos que o compõem sofreram profundas modificações em resultado da derrocada da URSS e de outros países socialistas e do êxito do capitalismo na competição com o socialismo. Nessa esteira, “houve partidos que renegaram o seu passado de luta, a sua natureza de classe, o seu objetivo de uma sociedade socialista e a sua teoria revolucionária. Em alguns casos, tornaram-se partidos integrados no sistema e acabaram por desaparecer”.

Essa nova situação deixou vago um espaço que passou a ser ocupado por outros partidos revolucionários e movimentos, e hoje já não se pode dizer que o “movimento comunista” é composto somente por partidos de tipo marxista-leninista. Porém, segundo ele, “estes acontecimentos não significam que partidos comunistas, com a sua identidade própria, não façam falta à sociedade. Pelo contrário. Com as características fundamentais da sua identidade, partidos comunistas são necessários, indispensáveis e insubstituíveis, tendo em conta que assim como não existe um ‘modelo’ de sociedade socialista, não existe um ‘modelo’ de partido comunista”.

Não há um modelo, mas há características que são fundantes da identidade de um partido comunista. Cunhal cita seis questões que considera irrenunciáveis (aqui citamos com alguns cortes a intervenção de 2001):

1ª – Ser um partido completamente independente dos interesses, da ideologia, das pressões e ameaças das forças do capital, o que, em outras palavras, trata-se de uma independência do partido e da classe, elemento constitutivo da identidade de um partido comunista. Afirma-se na própria ação, nos próprios objetivos, na própria ideologia;

2ª – Ser um partido da classe operária, dos trabalhadores em geral, dos explorados e oprimidos (…). É essencial que o partido não esteja fechado em si, não esteja voltado para dentro, mas, sim voltado para fora, para a sociedade, o que significa, não só mas antes de mais, que esteja estreitamente ligado à classe operária e às massas trabalhadoras. A substituição da natureza de classe do partido pela concepção de um “partido dos cidadãos” (e aqui ele retoma a crítica que fez no início da intervenção à condução do PCUSS que redundou em sua liquidação) significa ocultar que há cidadãos exploradores e cidadãos explorados e conduzir o partido a uma posição neutral na luta de classes – o que na prática desarma o partido e as classes exploradas e faz do partido um instrumento apendicular da política das classes exploradoras dominantes;

3ª – Ser um partido com uma vida democrática interna e uma única direção central. A democracia interna é particularmente rica em virtualidades nomeadamente: trabalho coletivo, direção coletiva, congressos, assembleias, debates em todo o partido de questões fundamentais da orientação e ação política, descentralização de responsabilidades e eleição dos órgãos de direção central e de todas as organizações;

4ª – Ser um partido simultaneamente internacionalista e defensor dos interesses do país respectivo. Cada partido é solidário com os partidos, os trabalhadores e os povos de outros países. Mas é um defensor convicto dos interesses e direitos do seu próprio povo e país. A expressão “partido patriótico e internacionalista” tem plena atualidade neste findar do século XX. Pode, na atitude internacionalista, incluir-se, como valor, a luta no próprio país e, como valor para a luta no próprio país, a relação de solidariedade para com os trabalhadores e os povos de outros países.

5ª – Ser um partido que define, como seu objetivo, a construção de uma sociedade sem explorados nem exploradores, uma sociedade socialista

6ª – Ser um partido portador de uma teoria revolucionária, o marxismo-leninismo, que não só torna possível explicar o mundo, como indica o caminho para transformá-lo.

Essas reflexões de Álvaro Cunhal, assim com aquelas presentes em obras como “O Partido com Paredes de Vidro”, são dotadas de uma excepcional atualidade e costumam, em maior ou menor medida, “frequentar” os debates dos partidos comunistas sobre seu caráter e sua ação. Devem ser retomadas como inspiração cotidiana, aliadas à destacada importância que ele conferia ao estudo da realidade, tão importante quando a ação prática. Cunhal entendia que o partido comunista é, todo ele, um partido de ativistas e teóricos. Todos os membros do partido devem preocupar-se em tornarem-se conhecedores da teoria, assim como todos devem ser capazes de executar, na prática, as tarefas do partido. Um partido que não renova suas análises da realidade é um partido condenado ao erro e ao desaparecimento. Da mesma maneira, um partido que não cuida de seus princípios norteadores, que não proporciona democracia interna e possibilidade de crescimento teórico-prática ao conjunto de seus militantes, independentemente de sua origem, tende a perder-se na política burguesa.

Como ele disse, na intervenção que estudamos nesse artigo, “Ao longo do século XX, acompanhando as transformações sociais, novas e numerosas reflexões teóricas tiveram lugar no movimento comunista. Porém, algumas foram reflexões dispersas, contraditórias, tornando difícil distinguir o que são desenvolvimentos teóricos do que é o afastamento revisionista de princípios fundamentais. Daí o carácter imperativo de debates, sem ideias feitas nem verdades absolutizadas, procurando não chegar a conclusões tidas por definitivas, mas aprofundar a reflexão comum.”

Fundamental relembrar Álvaro Cunhal; imperativo honrar seu legado pela contínua reflexão de nossa prática militante e de nossa linha política.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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