“Diário Perdido”: Paralelos de gênero
Diretora francesa Julie Lopes-Curval mostra como a liberdade de escolha da mulher mudou em 50 anos
Publicado 15/04/2010 21:49
Talvez uma das grandes dificuldades da dramaturgia moderna, seja discutir a relação a dois sem cair no lugar comum da família, da ruptura, da culpa ou da solidão. Do viver junto como condição de a mulher ter filhos ou de ter o parceiro para ajudar a criá-los. Estas questões têm hoje a realidade a desmenti-las. A diretora francesa Julie Lopes-Curval ao mesclá-las neste seu “Diário Perdido” consegue escapar a estas armadilhas, sem negligenciar a necessidade de colocá-los como parâmetros para sua negação.
Esta surge em meio ao impasse engendrado pela gravidez da jovem Audrey (Marina Hands), quando sua carreira começa a deslanchar numa grande empresa canadense. E encontra aberturas para as diversas trilhas que vão, aos poucos, indicando as saídas, sem forçar a via conservadora do viver juntos para sempre.
Numa sequência que mostra as intenções da diretora, Audrey discute com o namorado canadense, Tom, o que fazer para salvaguardar a relação e se teriam maturidade suficiente para ter o filho em princípio de gestação. Chegam à conclusão de que são incapazes de definir o que aconteceria depois do nascimento da criança. São francos um com o outro e se a discussão não chega a bom termo, também não descamba para acusações mútuas. São seres reais, não modelos para impor a visão cristã, conservadora, da relação a dois que deve terminar em casamento.
Quando fica só com as escolhas postas pela gravidez, Audrey se revela moderna, à altura da mulher atual, sem culpas ou dilemas. As lágrimas que rolam são mais pelo tipo de realidade que a criança irá encontrar e pelo que fará para equacionar o trabalho com sua criação. Mesmo que sem a ajuda de Tom, que apontado por ela como incapaz de cuidar criança, se dispõe a tentar. Então, tê-la ou não se torna fato corriqueiro para uma jovem do Terceiro Milênio.
Audrey faz arqueologia familiar
Andrey se vê às voltas com estas questões em meio ao confronto com a mãe Martine (Catherine Deneuve), que a trata com frieza. Ambas escondem seus segredos. Lopes-Curval usa narrativa circular, centrada na memória, na escavação do passado, para desvendá-los. Uma arqueologia familiar, feita em torno da casa onde viveram Gilles (Jean-Philippe Écofrey) e Louise (Marie-José Crose), avós de Audrey e pais de Martine. Vivendo nela agora, Audrey remodela os cômodos e escava o passado que tanto assusta e irrita Martine.
Esta esconde algo que Audrey gostaria de ver desvendado, o que trás mistério e suspense para o filme. O espectador então fica na expectativa de que ela consiga o que quer, e a diretora lhe dá pistas. Assim, esta subtrama serve mais para enfatizar as buscas de Audrey e a liberdade da mulher em ter suas próprias escolhas. Elas são reforçadas pelas tramas paralelas, a memória; a ação com Louise se passando nos anos 60 e a de sua neta em 2009.
Nesse vai-e-vem, o espectador passa a conhecer melhor Louise sobre quem recai todo tipo de acusação. Mas um artifício ajuda-o a entender afinal o que se passou. E a verdadeira Louise emerge para Martine e a própria Audrey, num paralelo entre a condição da mulher em diferentes épocas, na mesma cidade do interior da França.
O parceiro para ela, Louise, foi empecilho para que tivesse uma carreira, enquanto Audrey encontra outro tipo de homem, no ocaso Tom, para quem o trabalho dela não está em discussão. São épocas e homens diferentes: também o homem, para Lopes-Curval, evoluiu.
Audrey tem liberdade de escolha
Fato é que a liberação da mulher o impede de impor suas tendências, pois o papel dela mudou. Nos momentos em que Andrey está sozinha, caminhando pela praia, diante da prancheta desenvolvendo um projeto ou enfrentando a mãe, esta visão de Lopes-Curval fica clara. Quando Audrey precisa, como nas sequências com o garçom, usa sua liberdade de escolha e de parceiros. Não está presa como Louise aos ditames do marido, Gilles.
Os entrechos mais frágeis da narrativa talvez sejam as curvas de mistério e suspense. Elas surgem sempre que Audrey encontra Martine, sempre sisuda e rancorosa. Martine é o tipo de personagem que ao menor choque desaba, pois é mais frágil do que demonstra. Audrey com suas fragilidades é mais forte do que ela. E, às vezes, o espectador perde o centro da discussão, pois ele quer saber mais sobre o que aconteceu a Louise do que entender os paralelos traçados pela diretora/roteirista.
Fosse centrado nos paralelos entre a posição da mulher (Louise) no início dos anos 60 e em 2009 (Audrey), o mistério se esboroaria. Serve, no entanto, para demonstrar o quanto a mulher teve de se sacrificar para alcançar a liberdade que Audrey conquistou. Os diálogos de ambas, Louise e ela, através do fluxo de memória, ou colocadas na mesma cena, elucidam os paralelos e modernizam a linguagem cinematográfica. Um recurso que contribui para a ação avançar e fugir ao lugar comum. O que não é pouco.
“Diário Perdido” (Méres et Filles). Drama.França/Canadá. 2009. 105 minutos. Roteiro: Julie Lopes-Curval/Sophie Hiet. Direção: Julie Lopes-Curval. Elenco: Cathwerine Deneuve, Marina Hands, Marie-Josée Croze.