“Dias de Glória”: Vergonha francesa

Diretor franco-argelino Rachid Bouchared relembra em seu filme o tratamento cruel dispensado aos 130 mil africanos do norte, incorporados ao exército francês durante a Segunda Guerra Mundial

O tratamento dado pelos países imperialistas aos povos colonizados é o tema central de “Dias de Glória”, belo libelo antiguerra do diretor franco-argelino Rachid Bouchered. Além de se submeter à dureza dos combates, do frio, das longas caminhadas e da falta de reconhecimento, sofrem preconceitos de toda natureza. Um deles, o cabo marroquino Abdelkader (Sami Bouajila), num instante de raiva, diz ao capitão Durieux (Benóit Giros), seu superior, que a bala do inimigo não diferencia os soldados no campo de batalha, mata-os com a mesma virulência. Outro, argelino Said (Jamel Debbouze), depois de ser humilhado pelo sargento pied noir (francês nascido na Argélia), Roger Martinez (Bernard Blancan), clama por sua morte, quando este se encontra ferido, sem poder reagir. Tanto ódio faz lembrar a máxima do escritor e político argelino Frantz Fanon, de que os povos colonizados têm o direito de se revoltar contra o colonizador, para se libertar de sua exploração e violência.


 



                
Mas é a ambigüidade que permeia este grande filme, que mescla cenas de guerra com momentos de confraternização e solidariedade entre os colonizados, e a paixão de um deles, Massaoud Souni (Roschdy Zem), pela francesa Irène (Aurélie Eltvedt). E mostra também como os oficiais franceses os manipulam para que combatam pelos ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, lema de Revolução Burguesa na França, e são por isto contestados. Eles formam o contingente de 130 mil africanos do norte, oriundos da Argélia e do Marrocos, em sua maioria, então colônias da França, que são levados para combater as tropas de Hitler na Europa. Para isto, são submetidos a treinamentos que incluem, sobretudo, a defesa de um país, que não é o seu. Inclusive cantam a “Marselhesa” e chamam a França de “pátria-mãe”.


 


               
Tratamento de segunda categoria aos africanos


               


Muitos se alistam não por estarem imbuídos de patriotismo, sim por verem em sua integração ao exército francês uma forma de escapar à miséria, caso de Said, ou de ganhar dinheiro, como Yassir (Samy Naceri), para o custear o casamento do irmão Labi. Só o cabo Abdelkader está ali por razões nobres, sem deixar de lado sua consciência de classe, que se manifesta de forma explícita durante o filme. Os demais são rostos e corpos que compõem a tropa de norte africanos, de maneira indistinta, recebendo tratamento de segunda categoria, tendo de se contentar com uma ração magra, diferente da fornecida aos soldados franceses. Não são, no entanto, indiferentes a sua condição de colonizados, reagem com virulência, numa corporação militar, cujo código é por demais draconiano.



               
Chama atenção o cuidado com que Bouchared conduz “Dias de Glória”. Esses africanos, embora em uniforme francês, não perdem suas características, sua cultura, mantendo parte de suas indumentárias. Têm a cabeça voltada para a África, salvo por Massaoud, devido à paixão sua por Irène. Mas, porquanto estejam ali na qualidade de soldados do exército francês, não são reconhecidos como tais. Massaoud, durante seus deslocamentos, envia cartas à sua amada, que não as recebe. E também Irène não recebe as que ele lhe remete. O Exército francês bloqueia a relação, amontoa as cartas, censura-as, fazendo com que ele, Massaoud, desconfie que Irène não o quer mais. Tão indigno quanto isto é ausência de qualquer possibilidade de um cabo, como Abdelkader, ascender na hierarquia militar francesa. 


 


             
Filme chama atenção para o que ocorre hoje


            


O que termina por comprovar que ali estavam apenas para defender uma pátria que não era a sua, sem reconhecimento algum de sua competência, bravura e fidelidade. E não era só por Abdelkader liderar a luta pela igualdade de tratamento aos soldados das colônias africanas, mas, principalmente, por ser este o tratamento que tanto ele quanto os outros recebiam dos colonizadores franceses. Bouchared, que concorre ao “Oscar de Melhor Filme Estrangeiro”(*) deste ano, representando a Argélia, deixa isto claro durante os 128 minutos de seu filme. Estende-se, porém, para além desta abordagem, que tem o mérito de chamar atenção para a necessidade de se respeitar às diferenças culturais e denunciar o preconceito ao árabe e ao muçulmano, fatos hoje tão comuns no Ocidente.



               
Ele, Bouchared, e seu roteirista Olivier Lorelle fazem um contraponto entre a situação dos africanos do norte durante a Segunda Guerra Mundial e sua condição de colonizados hoje. Mudou a forma de  exploração da riqueza e da mão-de-obra dos africanos (e, por extensão, dos demais povos do Terceiro Mundo). Antes ela era direta, feita via ocupação do território, hoje se dá através das multinacionais, que conservam a exploração da riqueza e da mão-de-obra, e lucram com os produtos gerados por sua força de trabalho. E isola toda uma cultura, chamando-a de bárbara, sectária e fundamentalista. O multiculturalismo, forma de isolar os povos, mantendo-os distantes das trocas e interinfluências, como se isso fosse possível, e tenta distanciá-los de uma vivência que afirma sua identidade. Bouchared, na seqüência em que Yassir e Labi entram numa igreja católica e este último tenta saqueá-la, o irmão o impede de fazê-lo e aponta a necessidade de se respeitar à fé do outro.


 


            
Propósitos da burguesia não mudou em 50 anos
             
            


“Dias de Glória” é, assim, um filme que trata da Segunda Guerra Mundial com os olhos voltados para a atualidade. Chega num momento em que filmes de guerra entram em cartaz, abordando o mesmo período: “A Conquista da Honra” e “Cartas de Iwo Jima”, ambos de Clint Eastwood, ou, a exemplo de “Caminho para Guantánamo”, de Michel Winterbotton, questionam a ocupação do Iraque pelos Estados Unidos e denunciam as torturas nos campos de prisioneiros no Iraque, e em Guantánamo, em Cuba.



             
São obras que, direta ou indiretamente, cumprem importante papel na conscientização do público ao tematizar o absurdo da guerra, promovida pelos países imperialistas. Com a vantagem de reforçar a análise de que a forma de exploração pouco ou nada mudou nas intenções da burguesia de manter sob controle as riquezas naturais ou os mercados de outros povos.



                
As fileiras de soldados em seus deslocamentos por estradas e campos, atestam a fragilidade humana. Muitos mais quando confrontadas em combate. Milhares deles diante dos canhões, foguetes, obuses e granadas do inimigo se reduzem a seres inofensivos. Os deslocamentos remetem, no entanto, às belas tomadas do hoje esquecido “Os Vitoriosos”, do diretor norte-americano Carl Foreman. Os soldados se movimentam de um lado ao outro do front feito zumbis sem perspectivas de vida, loucos para a guerra tudo acabar.


 
                 
Filmada em grandes planos, a marcha dos soldados reflete, em “Dias de Glória”, o avanço para o desconhecido. A qualquer momento pode surgir o inimigo e sonhos e sofrimentos terem um fim. Situação por demais absurda, que, no entanto, sintetiza as agruras da guerra, cujo sentido não deve ser buscado nela em si, mas no que a engedra para a manutenção ou conquista de território, posse de riqueza ou simplesmente o poder. E, principalmente, a quem ela serve: aos capitalistas, de forma direta, materializados hoje no complexo industrial-militar.


 


                  
Soldados africanos mostram bravura


                 


“Dias de Glória”, além de ensejar esta leitura, tem seqüências espetaculares. Com maestria, Bouchared coreografa as cenas de combate, os deslocamentos dos personagens de um cenário a outro, em posições que a câmera permite ao público ter a sensação de estar no local da ação. Os quatro soldados árabes, negros, estão sós, abandonados à própria sorte. Qualquer descuido lhe será falta. Não há, por outro lado, como recuar: a batalha é para eles a garantia de que são capazes de defender a área da Alcácia que lhes foi confiada por seu comandante (Antoine Chappey), proteger os habitantes da aldeia, derrotar os alemães, mas, sobretudo, ter a certeza de que podiam sair vitoriosos do combate. Para o público não há como não ficar eletrizado pela situação e desejoso do sucesso daqueles homens, que aprendem a ser combatentes para além de serem soldados.



                
Esta seqüência dá a Bourchered a oportunidade de estruturar as seqüências finais. O trai, no entanto, o lugar comum do vasto cemitério, cheio de cruzes, com identificação na lápide. Um deslize compensado pela denúncia de que guerreiros da estatura do cabo Abdelkader, sobrevivendo aos duros combates, não teve reconhecimento à altura do governo francês. Seu quartinho num prédio de subúrbio, com raros móveis, dá a exata dimensão do tratamento que recebeu. Bouchered esclarece sua situação, informando que em 1959 foi aprovada uma lei que garantia pensão para ex-combatentes das colônias. Essa lei nunca foi cumprida, acabou ressuscitada no início deste século, mas nenhum governo se deu ao trabalho de quitar as pensões e os bravos soldados das ex-colônias francesas continuam sem receber o que merecem.


 


                
Lema da Revolução Francesa em xeque


                 


“Dias de Glória” torna-se, assim, uma obra para se ver pelo bom cinema e a coragem de Bouchared de lembrar um episódio da história da França, que é indigna de seu lema: ”Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, tema da “Trilogia das Cores” (“A Liberdade é Azul”, “A Fraternidade é Vermelha” e a “A Igualdade é Branca”), do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, que analisou a perda de sentido destes objetivos tão decantados pela burguesia francesa durante sua revolução, em 1789. A ocupação da Argélia (1830/1962) e do Marrocos (1907/1956) e os conflitos nos subúrbios parisienses em 2005 lhes dão razão. Ainda que a ocupação do Iraque não tenha tido seu adesão ou apoio, os cidadãos franceses, de origem africana, permanecem tendo tratamento de seres de segunda classe no território francês. Daí a oportunidade desse “Dias de Glória”, título brasileiro infeliz, uma vez que “Indigènes”, que significa “nativos”, traduz melhor o sentimento da época. E destoa do conteúdo do filme, pois os africanos não tiveram, diante dos combates e pela maneira como foram tratados, nenhum “dia de glória”.



                   


“Dias de Glória” (Indigènes). Drama. Guerra. Produção: França/ Marrocos/Argélia/Bélgica. 2006. 2h08 minutos. Roteiro: Olivier Lorelle, Raschid Bouchered. Direção: Raschid Bouchered. Elenco: Jamel Debbouze, Samy Naceri, Roschdy Zem, Sami Bouajila, Bernard Blancan.


(*) Os quatro atores, Debbouze, Naceri, Zem, Bouajila e Blancan, dividiram o prêmio de “Melhor Ator” do Festival de Cannes de 2006.

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