Doce canavial

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Correr pela trilhas dentro da plantação de cana-de-açucar, era uma aventura deliciosa. Uma sensação de liberdade indescritível. A brisa fresca da manhã açoitava o verde e o barulho das folhagens embalavam nossos passos de meninas na exploração do novo. Apenas o verde e o azul da nossa cobertura, um céu aberto infinitamente protetor, testemunhavam nossas travessuras infantis. Brincadeiras de crianças perdidas dentro da proteção paternal num espaço de atração irresistível.

Duas crianças corriam sem se preocupar com o rumo, e sem se preocupar com o tempo, alimentadas apenas pelo cheiro doce do canavial. Esse era como um ritual que acontecia sempre aos domingos cedinho quando meu pai ia ao sítio.

Penso na sensação de liberdade e no prazer imenso de correr, correr e correr até cansar e depois deitar nas palhas de cana-de-açucar ainda molhadas do orvalho da manhã, enquanto recuperávamos o folêgo, o vento silencioso nos acariciava trazendo o cheiro do dia que começava.

Um certo dia durante o passeio das crianças, que às vezes estavam em grupo maior com amigas, ou grupo de quatro irmãs, ou simplesmente as duas maiores, como foi o caso neste domingo em especial: Conceição e eu sufocadas de tanto correr, nos deparamos com um homem com um facão na mão. As palavras transformaram-se numa algaravia e o silêncio de alguns segundos, pareceram séculos. O céu perdeu a cor e a escuridão caiu sobre o tempo. Duas meninas abraçadas no meio de um terreno desconhecido perderam o chão. O único jeito foi gritar e daqueles pulmões tão pequenos sairam gritos de socorro que foram ouvidos a léguas de distância.

Num piscar de olhos o pai já estava ao lado, tentado calar o choro desesperado até então reprimido das pequenas. E o trabalhador que quis gentilmente cortar um pedaço de cana para as crianças tentava se desculpar pela confusão criada.

Voltamos inúmeras vezes a correr pelas veredas do caniçal da Goiabeira, este era o nome do sítio, mais a sensação já não era a mesma, era como se alguns olhos nos seguissem. Uma sombra sempre presente tirou o brilho de nosso passatempo preferido. E o doce canavial já não era o nosso espaço sagrado.O sentimento de liberdade violada quebrou a nossa confiança e as brindadeiras ficaram sem graça.

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