Energia e a formação de uma economia continental na China (1)

A questão energética reveste-se de singular importância na atual quadra de transição à 3° Revolução Industrial no centro do sistema capitalista. Porém, e não independente da problemática internacional, cabe aos países periféricos uma formulação melhor ela

1. Introdução



Assim como nas anteriores viragens típicas das transições envolvendo o surgimento de novos paradigmas tecnológicos (máquina a vapor e motor a explosão), o mundo hoje, mais precisamente o centro do sistema capitalista, é testemunho de uma retomada das discussões acerca da necessidade de pesquisas sobre novas fontes de energia, indispensáveis tanto ao suprimento industrial, quanto ao ambiente global de reprodução humana. Os motivos são vários, mas podemos agregar aos já existentes a uma estrutura de demanda cada vez mais incompatível com a oferta cartelizada do petróleo, cuja pressão sobre o balanço de pagamentos de inúmeros países é mera expressão. Isso sem dizer do óbice que envolve o aquecimento global e suas conseqüências à espécie humana.



Por outro lado, pode-se dizer que convivemos com, talvez, 100% ou mais dos homens dedicados à ciência; homens esses que em nenhum momento da história foram contemporâneos – tanto nossos, quanto de si mesmos – e que à suas disposições contam com recursos materiais inimagináveis e capacidade de dar curso de suas elucubrações mediados por um planejamento estatal e privado cada vez mais milimétrico. O homem não cria problemas sem solução e os resultados satisfatórios no desenvolvimento de formas limpas e renováveis de energia (biomassa, etanol, eólica etc) dão conta desta histórica verdade.



Porém, amiúde a opinião esboçada acima, para um país periférico e continental como o Brasil, a discussão deve ser tratada em outro nível. Este debate deve partir do princípio, segundo a qual a questão energética, para nós, não é um fim em si mesmo e sim parte de um conjunto que envolve uma batalha de cunho político em torno de duas bandeiras-chave: o aprofundamento de nosso processo de industrialização e, como causa e efeito disso, da reimplementação de uma política de integração nacional. O que significa dizer em miúdas palavras, de redefinição de uma divisão social do trabalho onde novas oportunidades de desenvolvimento devem ser reabertas, incluindo regiões menos favorecidas economicamente, dando margem ao adensamento de cadeias produtivas em todo o território nacional e a inclusão no mercado de um grande contingente de pessoas.



Ampliando a margem à abstração, por outro lado o mundo assiste neste início de século ao advento da República Popular da China como a grande candidata a ocupar, num espaço de pelo menos três décadas, o posto de maior potência econômica no mundo e recolocar na ordem do dia a transição capitalismo-socialismo em âmbito mundial. Assim como o Brasil, a China é um país periférico de dimensões continentais. Diferente do Brasil, onde temos um Banco central alienígena detentor dos instrumentos cruciais do processo de acumulação (o câmbio, a política de juros, o crédito e o sistema financeiro) e um Ministério do Meio-Ambiente a serviço de outrem, na China o desenvolvimento econômico é fator primário à consecução de objetivos de largo alcance. 



Tendo como núcleo argumentativo os investimentos em energia hidrelétrica (incluindo Três Gargantas), em primeiro plano nossa idéia é de expor os pontos principais da estratégia de desenvolvimento da China e sua expressão no território, logo nosso objetivo com este artigo repousará, dadas as similaridades territoriais com o Brasil, na demonstração de como a China tem relacionado a solução de sua presente questão energética com a geração de renda e produto em pontos díspares de seu território, criando assim as condições objetivas à formação de uma economia de dimensões continentais em meados do presente século.



2. Desenvolvimento e território na China



Desde o final da década de 1970 quando Deng Xiaoping lança mão da política de Reforma e Abertura, a China tem experimentado um verdadeiro frenesi de crescimento econômico. Sua média de crescimento nos últimos 27 anos é de 10,1%, seu comércio exterior no período cresceu mais de 30 vezes e dentro de alguns anos passará ocupar o posto de segunda economia mundial, passando a Alemanha e o Japão e ficando atrás penas dos EUA.



A geografia do mundo tem-se transformado com a criação de um novo pólo irradiador de fluxos financeiros, econômicos, políticos e culturais crescentes, crescentes. Em tempos em que a ciência histórica deixou de ser a mãe de todas as ciências em detrimento de um liberalismo e seu cerne a-histórico, é mister admitir que tal aumento de influência advém não somente do nível de desenvolvimento citado, mas também pelo fato de o país ser o mais populoso do mundo (1,3 bilhão de habitantes), a civilização mais antiga (5.000 anos de existência) com institutos milenares como o mercado (3.500 anos de existência), o planejamento territorial (modo de produção asiático, 2.500 anos) e o concurso público (1.500 anos) e um Estado Nacional surgido antes mesmo da propriedade privada (2.500 anos) assentado sobre o terceiro maior em território (mais de 9 milhões de km2 de área) do planeta de onde surgiram propostas filosóficas tolerantes e civilizatórias (confucionismo e taoísmo) com dois séculos de antecedência às suas similares na Grécia Antiga com diferença de que na China, ainda, o confucionismo e o taoísmo são parte integrante da formação moral do povo, enquanto no Ocidente as propostas de Sócrates e Platão já há muito foram jogadas na lata do lixo da história (1). Tudo isso nos leva a crer que com um passado único, à China espera-se um futuro singular.



Seu dinamismo desenvolvimentista, expressão da fusão entre o Estado Revolucionário fundado por Mao Tsétung, com o Estado Desenvolvimentista absorvido das experiências do leste asiático por Deng Xiaoping (2) tem no desenvolvimento territorial uma síntese que não pode passar desapercebida, dado o fato de que a unificação do território econômico chinês, em andamento, se constitui no grande paradigma das relações internacionais neste século XXI, algo somente comparado com a transformação sofrida pelo mundo pós-unificação do território político e econômico dos EUA na segunda metade do século XIX. Unificação esta que se constituiu na principal condição objetiva à consolidação do capitalismo e sua atual forma financeira. Raciocínio semelhante vale à consolidação do socialismo e sua relação com a já citada unificação do território econômico chinês.   



2.1 A estratégia de desenvolvimento (agricultura e Zonas Econômicas Especiais – ZEE`s)



Em bem ao não-prejuízo do conjunto da análise, em face da desinformação reinante, é muito justo uma demonstração, mesmo que superficial, da estratégia de desenvolvimento do país em tela.



O fenômeno desenvolvimentista chinês se fez acompanhar por um espetacular dinamismo territorial, em fina sintonia com o tempo e o espaço. É fruto de uma estratégia de desenvolvimento, que apesar de não peculiar, ganha traços originais e contornos cada vez mais largos que vão desde a instalação das quatro primeiras Zonas Econômicas Especiais (ZEE`s) até o lançamento do Programa de Desenvolvimento do Oeste na primavera de 1999 (3).



O primeiro passo da governança chinesa tendo à testa o comunista de primeira hora e herói da Longa Marcha, Deng Xiaoping, foi o de solucionar a questão do abastecimento alimentar do país (via relaxamento de relações de produção), em simultaneidade com a permissão de cultivos marginais por parte dos camponeses chineses, que passaram a ter permissão de venda no mercado de excedentes em cereais, criando assim um mercado interno potencial a produtos manufaturados e recompondo o pacto de poder da revolução de 1949 (4). Abrindo parêntese, um passo político e de alta relevância à compreensão dos por quês da manutenção do status quo comunista em meio aos vendavais do final da década de 1980 e da ofensiva contra-revolucionária de Tiananmen em junho de 1989: a classe camponesa, responsável pela queda de todas as dinastias chinesas – e o centro de uma rebelião rural que levou o Partido Comunista de Mao Tsétung ao poder em 1949 –, estava do lado governo contra as citadas ondas reacionárias.



Ao colocar o relevo a dimensão dos aumentos das safras agrícolas em um curto espaço de tempo em comparação com um período anterior mais largo, a tabela abaixo sintetiza o sucesso da liberalização do comércio de excedentes agrícolas na China conformando, assim o primeiro e essencial passo no rumo de uma estreita harmonia entre a superestrutura de poder e a real base econômica do país:



TABELA 1: Quadro geral do aumento da produção agrícola na China em milhões de toneladas





Fonte: JABBOUR, Elias M. K. (1997): China: Desenvolvimento e Socialismo de Mercado: Potência do Século XX”. Trabalho de Graduação Individual. Departamento de Geografia da FFLCH. Universidade de São Paulo,  1997, p. 69.



O próximo passo foi a da instalação das ZEEs, de forma experimental, mas com forte apelo, não somente econômico, mas também político e estratégico. Falemos mais detidamente acerca deste empreendimento.



O sudeste asiático, notadamente Coréia do Sul e Taiwan, era exemplo vivo de como retomar o esforço comercializador chinês, obtendo assim divisas externas para seu projeto de modernização e reservas cambiais que viabilizassem no futuro (hoje) uma política de juros propícia ao crédito. As Zonas de Processamento de Exportações (ZPEs) coreanas e taiwanesas foram a inspiração para a instalação em território chinês das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) como plataforma de exportações, processamento de tecnologia externa e também verdadeiros laboratórios econômicos e sociais, nos quais as técnicas e habilitações capitalistas pudessem ser observadas e assimiladas (5).



Outra preocupação — e por isso as ZEE's contêm caráter estratégico — é atrelar essas zonas ao esforço de político de reunificação do país, enfim criar condições objetivas para o retorno de Hong-Kong, Macau e Taiwan ao seio da pátria. E a melhor forma encontrada para isso seria a institucionalização da política de “um país, dois sistemas” como formatação jurídica que coube a Hong-Kong e Macau, mas direcionada a Taiwan. Para isso as ZEEs deveriam ser o entrelaçamento do território chinês ao chamado mundo chinês do sudeste asiático — mundo chinês este com acúmulos de bilhões de dólares e dotados de técnicas de gerenciamento de produção de ponta no mundo.



Esse entrelaçamento se dá de forma que tanto o tempo (história) quanto o espaço (geografia) se encontrassem e formatassem síntese no território chinês. Assim as quatro primeiras ZEEs foram criadas (1982) em locais estudados e planejados de forma que a ZEE de Shenzen fizesse fronteira com Hong-Kong, a de Zhuhai com Macau, Xiamen em Fujian voltada para Taiwan e a de Shantou voltada para colônias chinesas no sudeste asiático.



Verdadeiras joint-ventures territoriais surgiram entre essas zonas e seus territórios-alvo, sugando investimentos externos de chineses ultramarinos que hoje correspondem a 62% dos IEDs na China, criando meios para a reunificação do país (via sucção econômica) e condições objetivas para o enfrentamento do desenvolvimento do oeste chinês em curso na atualidade.



2.2. A estratégia de desenvolvimento (as Empresas de Cantão e Povoado e a macroeconomia)



Outra determinante da estratégia de desenvolvimento chinesa – baseada na formação de um mercado interno capaz de abarcar um processo acelerado de industrialização – reside no surgimento e fortalecimento das chamadas Empresas de Cantão e Povoado (ECPs).



Tratam-se de pequenas e médias empresas de caráter coletivo (responsáveis pela invasão no mundo de camisas, gravatas, calças e tênis made in China, atualmente já produzem produtos de maior valor agregado como televisores, computadores e até aviões em joint-venture com a brasileira EMBRAER) e de capital intensivo absorveram a maior parte dos excedentes de mão-de-obra agrícola que voltaram assim suas atividades para setores ligados à indústria rural, comportando assim um caso sui generis de urbanização no mundo.



Para termos uma idéia, o número de empregados no setor primário sobre o emprego total da China na década de 80 decresceu de forma mais rápida do que o emprego rural sobre o total do país na década de 80. Em 1994, a primeira relação era de 54,3% e a segunda de 72,6% (6). Continuando, agora descrevendo o ambiente de incentivos e funcionamento deste tipo de empreendimento, as ECPs surgiram no âmbito da descentralização fiscal promulgada na China em 1982, viabilizando o recolhimento de impostos e reinvestimentos no nível da província e/ou região autônoma, numa clara diferenciação da planificação central dos tempos do “modelo soviético”. As ECPs operam fora da planificação central, socializando lucros e perdas no nível do ente municipal.



Sobre o crescimento destas empresas vale nos remetermos ao trabalho feito pelos economistas Susumu Yabuki e Stephen Harner (China’s New Political Economy, Boulder CO., Westview Press): em 1978 havia 1,52 milhões de ECP’s no interior da China, chegando a 23 milhões em 1996. Já pelo relatório de desenvolvimento do Banco Mundial (World Bank Development Report, 1996, Oxford University Press, New York), a porcentagem da produção das ECP’s no conjunto da produção industrial chinesa subiu de 13% em 1985 para 31% em 1984 – sua produção teve crescimento médio de 25% entre 1985 e 1996 e foi a responsável pela criação de 130 milhões de empregos entre 1980 e 1986.



Com relação à expansão da renda no campo, Singh anota que esta cresceu anualmente entre 1980 e 1988 em 9,6%, enquanto que nas cidades tal foi de 6,3% (7).



Estes dados nos deixam claro outra relação, que é a existente entre as reformas realizadas na China e àquelas realizadas na URSS: enquanto a URSS tratou de “reformar” industrias de bens de capital que pela sua complexidade tecnológica não abriga grandes contingentes de mão de obra, a China privilegiou em primeiro lugar a transformação e massificação de industrias que abrigassem grandes contingentes de trabalhadores que num processo imediato teriam acesso primário ao mercado consumidor.



Importante, essencial demonstrar é que toda essa base assentada na formação de um mercado interno e numa política agressiva em matéria de comércio exterior só pode ter fundamento lógico partindo do controle e manipulação, em prol dos interesses imediatos e estratégicos da nação chinesa, dos já citados instrumentos cruciais do processo de acumulação, permitindo assim que o Estado Nacional seja o grande timoneiro de um processo lento de regionalização interno (China continental) e externo (sudeste asiático), num planejamento de altíssimo nível e de causar surpresa aos políticos da tragédia neoliberal no Brasil e na América Latina. Vejamos só: a instalação de uma plataforma de exportações baseadas tanto no litoral (ZEE`s) quanto no interior do país (ECPs) foi parte de um todo que envolveu uma política macroeconômica que a partir de um câmbio fixo, subvalorizado, permitiu o acúmulo de superávits comerciais suficientes tanto para o financiamento de máquinas e equipamentos importados, quanto da formação de uma imensa reserva em moeda estrangeira, que por seu turno viabilizou uma política de juros atraente ao crédito, leia-se consumo interno.



Por outro lado o estrito controle sobre a conta de capitais dotou o Estado chinês de um mecanismo institucional que por si só serviu de indutor de investimentos externos produtivos em detrimento de investimentos especulativos, tornando-se nesse caso um dinamizador e não um amortecedor para o conjunto da economia (8). Ainda vale notar o alto grau de regionalização deste tipo de investimento na atualidade chinesa: 62% deles são provindos de chineses étnicos baseados no sudeste asiático (9). Eis a base macroeconômica de uma ambiciosa política de integração nacional e internacional.



Notas:



(1) Sobre interessantes e essenciais aportes acerca da formação social chinesa ler: MAMIGONIAN, Armen: “As origens sociais e naturais do povo chinês”. Revista de Geografia Econômica. Dossiê Ásia-China 1: Núcleo de Estudos Asiáticos do Depto. de Geociências do CFH-UFSC, Florianópolis, Edição Piloto, p. 15-35. Junho/ 2007 e JABBOUR, E. “Considerações gerais sobre o marxismo e a Ásia”. Princípios, São Paulo, n° 82, p. 25-30, jun-jul/2005.



(2) Expressão alcunhada por Manuel Castells no volume 3 de sua trilogia “Fim de Milênio” editada pela Paz e Terra em 1999.



(3) Sobre o assunto em pauta, além de nosso livro (China: infra-estruturas…) onde tratamos do estágio presente do processo que envolve a unificação
do território econômico chinês, indicamos a leitura de dois artigos do Embaixador Amaury Porto de Oliveira, a saber: OLIVEIRA, A. P. de: “A dimensão territorial do reformismo chinês”. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n° 125, p. 23-34, abr-jun/1996 e OLIVEIRA, A. P. de: “O salto qualitativo de uma economia continental”. Política Externa, São Paulo, V. 2, n° 4, mar-abr-mai/2003.



(4) Em nosso juízo, assim como Mao Tsétung apoiou-se nos camponeses pobres para levar adiante a revolução nacional popular de 1949, Deng Xiaoping apoiou-se na capacidade empreendedora milenar dos camponeses médios para levar adiante um novo tipo de acumulação socialista. Forma de acumulação – e transição – esta muito semelhante à enunciada por Marx (Considerações Históricas sobre o Capital Mercantil) e reiterada por Lênin (Prefácio à 2° Edição de O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia): a via revolucionária (da transição feudalismo-capitalismo) de transformação do pequeno produtor em empresário.



(5) JABBOUR, E.: “A modernização da China e a guerra comercial com os Estados Unidos”. In, JABBOUR: China: infra-estruturas e crescimento econômico. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.



(6) KOJIMA, R.: “Breakdown of China`s Policy of Restricting Population Movement”. The Development Economies, Oxford, V. 34, n° 4, p. 12-28, dec./1996.



(7) SING, A.: “The Plan, The Market and Evolutionary Economic Reform in China”. Unctad Discution Papers, New York, n° 76. p. 15-37, nov./1999.



(8) Sobre as características e diferenças dos investimentos estrangeiros em países como a China, o Brasil e a Índia, ler: SILVA, L. Acioly da: Brasil, Índia e China: o investimento direto externo nos anos noventa. Tese de Doutorado. Instituto de Economia, 2004, Universidade Estadual de Campinas.



(9) JABBOUR, E.: China: infra-estruturas e crescimento econômico. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006, p. 40.

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