“Entre os Muros da Escola”: reflexo da sociedade agonizante
Ao centrar seu filme nos conflitos entre alunos e professor, numa escola pública, o diretor francês Laurent Cantet traça o perfil da sociedade francesa em crise e sem solução para absorver imigrantes africanos, latinos e asiáticos
Publicado 03/04/2009 19:01
Pela freqüência com que o tema vem sendo abordado pelo cinema, o “filme de escola” tem se constituindo quase em um gênero cinematográfico. Assim, cada época tem seus filmes representativos, a começar pela obra-prima de Jean Vigo, “Zero de Conduta”(1933), sobre uma rebelião estudantil contra a estrutura opressiva da escola francesa. Outros, como “Sementes da Violência” (1955), de Richard Brooks, tratam da delinquência juvenil, problema que preocupava famílias e Estado naquela década. As abordagens evoluíram para questões mais complexas nos anos 60, com “Se” (1968), no qual Lindsey Anderson discute a revolta estudantil no contexto das lutas pelas liberdades civis e o movimento contra a Guerra do Vietnã. A própria década de 70 teve o seu filme emblemático, “Conrack” (1974), poética e libertária obra de Martin Ritt, em que o professor tira os alunos da sala de aula e os põe em contato com a natureza, como método pedagógico. A escola, por estas obras, era – e continua sendo – o microcosmo da estrutura capitalista, com suas fraturas, opressões e impossibilidades.
Nas últimas décadas, vários diretores usaram a sala de aula para traçar um perfil da sociedade atual, porém sem alcançar o impacto de seus antecessores. Dentre eles, John S.Smith, em “Mentes Perigosas” (1995), e Richard LaGravanese, em “Escritores da Liberdade” (2007), que deixam as quatro paredes para mostrar a vida familiar do estudante, seu embate constante nas ruas para fugir à armadilha do tráfico e suas dificuldades para encontrar seu espaço numa época dominada pela exclusão das minorias. O diretor francês, Laurent Cantet, do ótimo “Rumo ao Sul”, onde mostra a relação amorosa entre um afro-antilhano e uma francesa, mescla os vários contextos de seus predecessores para, em “Entre os Muros da Escola”, a partir da obra do professor François Bégaudeau, refletir sobre as relações de poder na escola deste milênio. Uma escola povoada de minorias, imigrantes, pobres, carentes de toda ordem, vivendo seu impasse.
Escola não transforma aluno em agente social
Existe, assim, o questionamento dos métodos pedagógicos, da autoridade do professor, das soluções e dos limites da própria instituição educacional. Ela evoluiu, a se basear nas abordagens dos filmes anteriores, das reivindicações de participação dos alunos em seus vários conselhos, principalmente o disciplinar e o curricular, para o diálogo maior entre alunos e professores, mas não tem onde corrigir suas deficiências, dada à crise vivida pela sociedade neoliberal, da qual é pilar importante. Precisa romper com esta estrutura para, então, tornar o estudante o ser realmente transformador da sociedade. Mostra desse impasse são as conflituosas reuniões do conselho disciplinar na escola pública e os desabafos e crises dos professores durante os intervalos das aulas. Algo, para além de seu entendimento, ocorre e eles não têm a solução. Se antes tinham de lidar com o mau comportamento do aluno, agora, além disto, se vêm às voltas a inadaptação de jovens imigrantes, pais divorciados, crises familiares e, principalmente, a natural contestação juvenil.
Como sempre as escolas abordadas pela maioria dos filmes aqui mencionados são frequentadas por estudantes de baixa renda, africanos, afro-descendentes, latino-americanos, asiáticos ou, como hoje acontece, o que resultou da fusão dessas etnias e segmentos sociais. Cada um deles com a característica própria de seu meio social e país de origem, igual aos africanos de “Entre os Muros da Escola”. Muitos, como a mãe do adolescente Souleymane (Franck Kelta), ambos malineses, não dominam a língua do país onde se abrigaram. Têm dificuldade de dialogar com as autoridades educacionais para explicar as dificuldades de adaptação do filho. O que requer estrutura diferente da existente para absorvê-los, enquanto professores e diretores perseveram na manutenção da existente por comodismo ou por integrar a classe dominante. Eles, os imigrantes, os pobres e as minorias que busquem formas de ser absorvidos pela estrutura burguesa, no caso francesa, em “Entre os Muros da Escola” – deixam eles entender.
Poder do professor é sempre contestado
Daí a aparente autoridade verticalizada reinante no filme, pois o poder simbolizado pelo professor François Marin (François Bégaudeau) é contestado há todo momento, não porque os alunos queiram substituir o método atual por outro, a exemplo de “Se”, apenas o questionam. Numa hora, a franco-afra Khounda (Raquel Reguliér) questiona as cobranças dele por não ter lhe entregue o trabalho de casa ou não querer ler o texto por ele indicado, ora é Souleymane querendo que o texto a ser lido fosse a letra de um rap. Daí também a postura de François de entrar no jogo deles e de outros, como o tunisiano Boubacar (Boubacar Thouré), que introduz a discussão das etnias na aula, e ele, François, parte para uma verdadeira troca de ofensas e imposições de autoridade. Chega um momento em que ele, professor, se nivela a seus alunos, mandando-lhe calar a boca ou mesmo partindo para a agressão pura e simples. Khounda se sente duplamente ofendida por ser mulher e imigrante africana, Souleymane por se tornar o centro da discórdia, embora seu comportamento desrespeitoso o leve a isto.
Então, o espectador percebe que Laurent Cantet, François Bégaudeau e Robert Campillo, roteiristas do filme, trouxeram para a sala de aula as profundas divisões da sociedade francesa atual, e por extensão dos EUA e da União Européia, cujo conflito está longe de ser resolvido apenas pela expulsão dos imigrantes, como quer o presidente Nicholas Sarkozy, ele próprio filho de imigrantes belgas. Existem os naturais, os imigrantes e os franco-descendentes, herança dos tempos imperiais da República Francesa, que persiste com as colônias antilhanas, africanas e latinas, ainda neste Terceiro Milênio. Os conflitos, como sempre, acabam na sala do conselho disciplinar, instância de poder maior na escola. Ali seus membros mais experientes se mostram perdidos, hesitantes, inseguros quanto à medida a adotar para punir o aluno rebelde. François, então, oscila entre o liberalismo e o autoritarismo, o pendor cristão e a necessidade de corrigir o aluno, na tentativa de ser este o mal menor, pois abre, no seu entender, a possibilidade de ele ser absorvido, enfim, pela estrutura educacional atual.
Estrutura política atual já não seduz estudante
A questão é que essa estrutura já não o seduz, nem está preparada para integrá-lo como estudante e imigrante, nem se fosse franco-afro. Mesmo com sua rebeldia, Souleymane toca na ferida ao sugerir que o texto se identifique com sua geração, com sua época, não sendo obrigado a se basear em visões, embora importantes, apenas de Émile Zola (1840/1902). Como africano e adolescente, ele tem outras referências. Um tipo de reivindicação que inclui o direito de conciliar sua cultura com a do país onde se abrigou, ainda que baseada na obra de um excluído em seu tempo, caso de Zola, agora absorvido pela classe dominante. Ele, no entanto, está confuso demais para articular suas ideias, reage de forma agressiva, indispondo-se com François.
Numa significativa demonstração dessas contradições, Cantet deixa o diálogo entre Souleymane, Boubacar e o antilhano Cherif (Cherif Bounaïdya Rachedi) fluir. Chérif reivindica para si a condição de francês por ter nascido numa colônia integrante da República Francesa. E enche os outros de falação sobre futebol, execrando o malinês e o tunisiano. Seu ídolo é o franco-argelino Zhidane, sobre o qual os outros concordam. E, embora estejam na França, suas identidades culturais afloram; cheias de referências africanas. François, que a tudo assiste, vê seu poder se esvair sem resistência à altura, tanto que durante a crise com Khounda e Souleymane sai à procura deles para se justificar e ao mesmo tempo cobrar deles desculpas por afirmações que podem comprometê-lo perante o conselho disciplinar da escola. Uma perda de autoridade significativa perante os alunos, que por outro lado não utilizam de seu poder no mesmo conselho para exigir as mudanças necessárias. Cantet os mostra desatentos; negligentes na reunião crucial para a permanência de Souleymane na escola.
As diversas pontas da estrutura não se encontram
Representantes dos alunos, que são; a francesa Louise (Louise Grinberg) e franco-latina Sandra (Esmerálda Quertani) se comportam como observadoras; não como quem tem direito a questionamento, a sugestões, até mesmo à contestação. Não são politizadas o suficiente para traçar novos rumos para o conselho, cobrar da direção da escola posições condizentes com as exigências do momento histórico. Louise é uma apagada aluna, embora elogiada e correta; Sandra é rebelde, dada a questionamentos deslocados, mas não passa disto. Ambas agem durante a crise entre François e os companheiros como simpatizantes dos representados, não como dirigentes que precisam mediar o diálogo entre partes antagônicas. São, por isto, vulneráveis às cobranças de François, que também age de forma desmedida, cobrando-lhes uma verdade insuficiente para reparar as fraturas de uma sociedade excludente.
Assim, as diversas pontas da estrutura se encontram em seu despreparo para superar o impasse. François Bégaudeau em sua obra, na qual é baseado o filme, não os concilia; tampouco no roteiro, feito a seis mãos com Cantet e Campillo. Falta objetivo claro aos estudantes, a exemplo dos rebeldes liderados por Malcon McDowell, em “Se”, que reivindicavam não apenas mudanças na escola, mas na estrutura educacional e, por extensão, no “sistema”, que na linguagem dos anos 60, era desembocar no Socialismo. Os rebeldes de “Entre os Muros da Escola” são rebeldes com causa, sem, no entanto, conteúdo político-ideológico, fato corrente nestes tempos de globalização e neoliberalismo agonizante. Cantet e seus co-roteiristas encontraram uma maneira de conciliar as mais diversas visões sem por abaixo a estrutura sócio-político-educacional: os alunos expulsos da escola pública têm uma segunda chance em outra escola. Resolve o impasse, cinematograficamente, ao não fechar as portas aos rebeldes, porém, na sociedade real o impasse permanece.
Cantet desliza ao centrar ação no jovem malinês
Embora, Cantet fuja ao espectro dos “filmes de escola” atuais, que não discutem a questão do poder, caso dos citados “Mentes Perigosas” e “Escritores da Liberdade”, centra por demais a ação em personagens afros, casos de Boubacar, Khounda e Souleymane. É como se ao centrar neles as contradições e deficiências da educação atual os identificassem como o problema da sociedade francesa. Principalmente em Souleymane, protótipo do estudante sem rumo. Ele é ríspido, mal educado, arrogante e indiferente ao sentimento dos outros, um deslocado, enfim. Tantos maus predicados em um personagem, sem a contraposição de um/a aluno/a francês/a; acaba por dar uma conotação racista à abordagem. Fica como se ele, Cantet, François Bégaudeau e Robert Campillo indicassem onde está o problema, quando, na verdade, a desambientação dos africanos e dos franco-afros, franco-latinos, latinos, franco-asiáticos, asiáticos, faz parte da excludente sociedade francesa atual, com fortes rastilhos de seus tempos de colonizadora, que, aliás, se estende até hoje às suas colônias ultramarinhas, como os próprios franceses as denominam.
O único personagem positivo, por assim dizer, é o jovem imigrante chinês Wey (Wei Huang), calado, frágil e simpático. Há forte simpatia por ele e solidariedade pelo dilema de sua família ameaçada de expulsão pelas autoridades francesas. Cantet equilibra questões geopolíticas e relações político-econômicas, porquanto as sociedades africanas, em sua multiplicidade de impasses, não reivindicam, supostamente, tratamento igualitário, por mais que uma obra de arte não seja um fórum diplomático, mas reflexo dos estágios sócio-político-econômicos das nações, com seus povos sofrendo as conseqüências das ações das potencias dominantes. No entanto, elas refletem a visão das camadas dirigentes e dos autores da obra de arte, no momento de sua criação, considerando, sobretudo, o momento histórico que sua sociedade atravessa. Com “Entre os Muros da Escola” não é diferente. Ao trazer para o centro da obra questões tão polêmicas, seus roteiristas, sem dúvida, optaram por uma linha dramatúrgica em que os imigrantes africanos são o centro da ação. E, ao fazê-lo, se detiverem por demais na figura do simpático, criativo e inteligente Souleymane que, na verdade, queria mesmo é ter um grupo de rap.
“Entre os Muros da Escola” (Entre Lês Murs). Drama. França, 2007, 128 minutos. Roteiro: Laurent Cantet, François Bégaudeau e Robert Campillo. Baseado no livro do professor François Bégaudeau. Direção: Laurent Cantet. Elenco: François Bégaudeau, Boubacar Thouré, Eva Paradiso, Esmeralda Quetani, Franck Kelta, Raquel Regulier.
(*) Palma de Ouro no Festival de Cannes 2008.