Entrevista: “Por que a China é um país socialista?”

Essa entrevista foi por mim concedida ao jornal-laboratório Contexto da Faculdade de jornalismo da UNESP (Universidade Estadual de Bauru). Reproduzo-a a seguir.

O período logo após a morte de Mao Tsé-tung foi marcado por muitas mudanças, tanto na área econômica como política. Qual foi a participação da população em tudo isso? E hoje? A população chinesa ainda tem voz em sua república ou somente os líderes do PCC são os responsáveis? 


 



EJ: Acredito que devemos, em primeiro lugar, nos questionar se o PCCh representa ou não o povo chinês ou melhor dizendo: qual a base social deste partido. A base social do PCCh é ainda majoritariamente camponesa. Por coincidência a política de Reforma e Abertura implementada em 1978 pelo veterano dirigente revolucionário Deng Xiaoping, teve na questão camponesa a sua primeira abordagem. Tal abordagem ao permitir a comercialização de excedentes agrícolas solucionou quatro questões básicas: a primeira de ordem política relacionada à recomposição do pacto de poder que elevou o PCCh à condição de partido dirigente da China em 1949. A segunda questão foi a solução da questão alimentar criando condições objetivas para o soerguimento de 400 milhões de pessoas à condição de consumidores. A terceira questão – de ordem econômica e relacionada com a liberdade de comércio – refere-se à formação de um mercado consumidor para produtos industrializados.
 
Numa opinião particular a solução da questão camponesa naquele momento foi o principal fator (ao lado do papel de Deng Xiaoping) do não-sucesso da contra-revolução de junho de 1989 na Praça Tiananmen em Pequim. A quarta e última questão é de ordem histórica: os camponeses chineses foram os principais atores históricos nas derrubadas de todas as dinastias chinesas. A última revolta camponesa do país levou o PCCh de Mao Tsé-tung ao poder. Portanto, a história comprova e os dirigentes do PCCh tem consciência que se não atenderem as demandas do povo chinês, a superestrutura de poder simplesmente se desmonta.


 


 
Não é a toa que Confúcio dizia que o poder na China “é delegado pelos céus, mas revogável pelo povo”. O fato de o PCCh continuar firme no poder é uma clara demonstração de que, com erros e acertos, o povo chinês confia nele.


 


 
O que sustenta o socialismo na China? Porque ainda não é considerado um país capitalista, apesar de toda abertura e movimentação de capital que existe?


 
EJ: De fato não tenho grandes “grilos” em caracterizar a China como um país socialista. Por quê?


 


1) Na China, o poder (que para Lênin é o essencial) é exercido por um partido comunista. O que determina a natureza política deste ou daquele regime é a composição de classe do poder e não, simplesmente, a natureza da base econômica;



 
2) Os meios estratégicos de produção estão sob controle do Estado. Este controle ao lado do planejamento, nas constantes observações de Engels, assegura ao poder popular condições de controlar os efeitos espontâneos das leis econômicas ao mesmo tempo em que utiliza a objetividade de tais leis ao proveito do homem permitindo – ao contrário do que se verifica no capitalismo – a construção consciente do processo histórico. Esta consciência da natureza do processo histórico e do funcionamento das leis do desenvolvimento é a explicação mais lógica para aqueles que se perguntam qual a receita do sucesso chinês e, consequentemente, explica por si só o fato de a China crescer tanto a tanto tempo (se fosse uma economia pautada pela anarquia da produção, ela estaria exposta às crises inerentes ao modo de produção capitalista);


 


3) Retomando a resposta do item um desta questão, a China como expressão de uma civilização que criou filosofias de cunho universal do nível do confucionismo e do taoísmo tem no marxismo-leninismo a ideologia oficial do Estado. A bandeira vermelha de cinco estrelas continua sendo hasteada diariamente nos quatro cantos do país e seu exército ainda é denominado de Exercito de Libertação Popular;


 


4) Os solos urbano e rural não são objetos de ação para fins privados, ou seja, são propriedade do Estado;


 


5) Os instrumentos cruciais do processo de acumulação (juro, crédito, câmbio e sistema financeiro) estão sob controle do Estado;


 


6) Faço uma aclamação pela análise histórica: mercado, movimentação de capitais, abertura de capitais, existência de propriedade privada, etc. não são sinônimo de capitalismo. Pelo amor de deus!!! O mercado como expressão da separação entre a economia doméstica e a economia de ganho já existe há pelo menos 5.000 anos. O mercado não pode ser reduzido, do ponto de vista teórico, ao “local onde a oferta e a procura se encontram”. O mercado é uma categoria histórica e como categoria histórica depende de condições objetivas e subjetivas para sua superação. Não é a vontade humana que vai determinar o fim do mercado. Até porque a vontade humana não está acima das leis da natureza. Já a propriedade privada, da forma como o senso comum a enxerga (sinônimo de capitalismo) não é correta. O capitalismo só se realiza com a tomada do poder pelos capitalistas. Na China, os capitalistas estão no poder? Ou melhor: quem permite a existência e determina os limites dos capitalistas na China? A resposta é fácil: o PCCh. Não podemos simplificar (forma de abordagem típica do a-historicismo característico do método liberal) a análise de um processo separando as variáveis econômica e política.


 


Finalizando a resposta, é bom que se diga, que o socialismo não é sinônimo de anti-capitalismo. Anti-capitalista é o caráter de nosso movimento político (afinal somos anti-exploração, anti-miséria, anti-pilhagem, etc.), e não a estrutura social da sociedade que desejamos. O socialismo é a superação do capitalismo, da mesma forma que os artesãos foram expressão do germe que culminou na superação do feudalismo pelo capitalismo. Exemplo desta opinião é a observação de Lênin para quem “a economia monetária foi a maior invenção do capitalismo e que, portanto, deve estar também a serviço do socialismo”.


 


 


Acredito que devemos de deixar de ter uma atitude religiosa para com os fenômenos sociais. Devemos ter uma postura mais científica de certas análises. Parece difícil para muitos perceber que o que diferencia o socialismo do capitalismo não é a forma como se dá o processo de acumulação, e sim basicamente, a composição de classes do poder e a apreensão do excedente econômico.


 



 


Nesta linha de raciocínio, é interessante a seguinte observação de Kautsky, (The Labor Revolution, 1922), onde se lê: “sem dinheiro somente são possíveis dois tipos de economia: a economia primitiva que adaptada às dimensões modernas significaria que o total da atividade econômica consistiria numa única fábrica sob controle central, que alocaria tarefas a cada empresa, recolheria todos os produtos obtidos e alocaria também, a cada empresa seus meios de produção e a cada consumidor seus meios de consumo. Esta economia redundaria numa sociedade carcerária, e no segundo tipo de economia possível sem dinheiro, porém muito idealizada em nosso meio: a 'economia natural' do socialismo”.


 


Infelizmente em pleno século 21 grande parte de nossos marxistas não percebeu tão elementar verdade. Há quem ainda acredite que o socialismo é extensão da vida modesta, simples expressada na “superioridade moral” da forma de vida camponesa.


 


 
A “esquerda” na América Latina se caracteriza por sua forte vocação nacionalista. Como é a esquerda chinesa?


 


EJ: Sim, a esquerda chinesa é sustentada não somente pelo marxismo-leninismo, mas principalmente por um forte sentimento de identidade e orgulho nacionais. A revolução chinesa de 1949 foi basicamente uma revolução de libertação nacional. Ainda hoje a ideologia que media a relação entre o povo chinês e o PCCh é o nacionalismo. Aliás, Mao Tse-tung está para os chineses como Simon Bolívar está para os latino-americanos.


 



 
Isto se explica pelo fato de enquanto para Marx o centro de gravidade da revolução estaria na França, Alemanha e a Inglaterra, Lênin ao perceber que a fusão entre o capital industrial e o bancário deu vazão ao imperialismo (Marx não viu o surgimento deste fenômeno). Esta anomalia do desenvolvimento capitalista (imperialismo) acirrou e tornou explosiva as relações centro-periferia ao mesmo tempo em que a classe operária européia era corrompida pelo nascente capital financeiro. Neste movimento de caráter mundial, na periferia a questão nacional fundiu-se-se às questões social e democrática dando origem a movimentos revolucionários, entre eles o PCCh e o PCV de Ho Chi Minh.


 


 
Por fim, volto a chamar a atenção para a centralidade da utilização da ciência histórica na análise de determinados fenômenos. Aos que, de forma superficial (forma fácil de fazer ciência), enxergam sinônimo entre o nacionalismo (existem grandes diferenças entre o nacionalismo na periferia e o nacionalismo expressado no centro do sistema) e o anticomunismo e acreditam no surgimento espontâneo do chamado “novo homem”, acho oportuna a caracterização elaborada pelo economista marxista brasileiro Ignácio Rangel (Recursos Ociosos e Política Econômica, 1980), para quem: “A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade única, para um ‘um mundo só’. Isto virá por si mesmo, à medida em que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes (…). Mas não antes disso. O ‘mundo só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos.”


 


 


Eu li em seu currículo que o título do seu doutorado é: “China: Economia Política da transição”. Como você define essa transição? Qual é o rumo dessas mudanças? No que a China se transformará?


 
EJ:
A minha proposta não é procurar saber no que vai redundar a experiência socialista chinesa, pois para mim a questão do “socialismo com características chinesas” já está há muito tempo resolvida. Acho, a propósito, que os chineses estão construindo uma imensa base material para a posterior consecução do que se convencionou de “socialismo plenamente desenvolvido”. Apesar de a esquerda religiosa acreditar que socialismo é sinônimo de “pobreza digna”, em nenhum momento nem Marx, nem Engels nem tampouco Lênin deram vazão científica e este imenso equívoco analítico.



 
Porém como marxista e materialista não me acho no direito de fazer previsões. Isto (previsão) prefiro deixar para nossos “videntes de plantão” (inclusive com títulos de doutor e ministrando aulas em grandes universidades e com uma arrogância de caráter feudal e autoritária). Porém, não podemos nos esquecer que a China é uma experiência socialista em meio a um mundo capitalista e onde o imperialismo ainda é amplamente hegemônico nos planos econômico, militar, político, social e principalmente ideológico.



 
Acho que em qualquer jogo de especulação não se pode ignorar fatos históricos: a China não é a URSS: ao contrário dos russos imersos em complexos de inferioridade, os chineses são senhores de si respaldados por uma civilização milenar, por uma cultura riquíssima de onde surgiram filosofias altamente civilizatórias, tolerantes e progressistas.
Numa civilização marcada por revoltas camponesas que derrubaram dinastias, é importante salientar que este espírito arredio do camponês chinês é força de pressão positiva sobre a superestrutura. Lembremos que ao contrário do camponês russo (historicamente um servo) o camponês chinês é agricultor livre a pelo menos 3.000 anos.



 
Com relação ao meu doutorado, o meu objetivo é provar que o sucesso da experiência de “socialismo de mercado” na China por si só serve de condição objetiva à retomada da discussão em torno da elaboração de uma “Economia Política do socialismo”. Elaboração esta abandonada desde a década de 1950.


 
 
Em outro momento me proponho a esclarecer melhor esta minha proposta.


 


 
Acabei não perguntando se você é filiado ao PC do B, mas tenho certeza que é muito próximo do partido. Então, como o Partido Comunista do Brasil vê as contradições sociais que existem na China? É aceitável “enriquecer algumas regiões para depois enriquecer todos juntos”?


 


Sou e com muito orgulho filiado do PCdoB desde 1991. Nosso partido não faz juízos de valor das experiências socialistas em curso. Apenas deixamos claro nosso apoio ao projeto de construção socialista em curso seja na China, em Cuba, na Coréia Democrática ou no Vietnã.



 
Eu – como “protótipo de cientista social” – particularmente enxergo de forma natural as contradições sociais chinesas até porque tenho consciência que o processo de desenvolvimento não é um “mar de rosas”, e sim um processo doloroso de solução de contradições que ao seu turno dão margem a outras contradições. Como a contradição é o motor primário do processo, não tenho o direito de ficar surpreso com as contradições chinesas. Devo apenas procurar saber se o governo está as enfrentando e a esta questão digo que sim; o governo chinês está as enfrentando. Como exemplo concreto serve a medida de abolir os impostos sob os camponeses que já duravam mais de 2.000 anos e serviu de motivo de muitas revoltas camponesas. Outros exemplos podem ser encontrados em vários artigos escritos por mim nos últimos quatro anos.



 
Já com relação à aceitação da tese exposta por Deng Xiaoping (“enriquecer algumas regiões para depois enriquecer todos juntos”), a própria história recente da China atesta sua justeza e meu livro (China: infra-estruturas e crescimento econômico, Anita Garibaldi, 2006. 256 p.) comprova isto: Durante 25 anos a China utilizou seu litoral como plataforma de acúmulo de capital e tecnologia que hoje permitem, sob o comando do PCCh, transferências de centenas de bilhões de dólares ao interior pobre do país. Para quem não sabe hoje o termômetro que permite auferir a grandeza do processo em curso na China não é mais o litoral e sim o interior do país.


 


 
Em sua opinião as políticas sociais chinesas estão corretas?


 


EJ: Desculpe o mau jeito, mas quem tem de julgar a correção das políticas sociais chinesas é o próprio povo chinês. Estaria cometendo um ato de diletantismo (característico da universidade brasileira: cada vez mais pobre e autoritária) se julgasse tais. Afinal não sou eu quem vive embaixo daquele grande pedaço de céu.
Atenho-me a afirmar que confio nos homens que ocupam o poder central na China. Vaticino ainda que enquanto Stálin criou um Kruschev, de Mao Tsé-tung surgiu um Deng Xiaoping.



 
Retornando, a resposta à sua pergunta será respondida pela história, que por sua vez, depende – para um bom termo – da capacidade dos dirigentes chineses em construí-la. Capacidade esta que desde o dia 1º de julho de 1921, ou melhor, mais precisamente desde 1934 (quando Mao Tsé-tung foi alçado à condição de maior proeminência do movimento comunista chinês) os comunistas chineses têm demonstrado.



 
E muito.

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