“Eu me chamo Elisabeth”: Universo dos desprotegidos

O mundo infantil com seus fantasmas e sonhos são tratados com leveza  e habilidade pelo diretor francês Jean-Pierre Améris em obra que mostra as relações problemáticas de um casal burguês

Cheio de fantasmas e impressões infantis, “Eu Me Chamo Elisabeth”, do diretor francês Jean-Pierre Améris, passeia pelo universo da garota Betty, de 10 anos, com uma leveza surpreendente para os padrões do cinema atual. No campo, onde mora próximo ao hospital psiquiátrico onde trabalha o pai Régis (Stéphane Freiss), no interior da França, ela perambula pela floresta, faz de bicicleta o trajeto que a leva à escola e se vê, o tempo todo, diante de figuras que a assustam. Introspectiva, vivendo numa imensa mansão, ela divide com a irmã, Agnês (Lauriane Sire), as atenções dos pais, Régis e Mado (Maria de Medeiros), mas termina solitária, como a empregada muda, Rose (Yolande Moreau), que a entende, mas nem por isto deixa de se apavorar com suas escolhas. É, portanto, do universo infantil que trata o filme de Améris, baseado no romance da escritora Anne Wiazemsky.


 



O mundo de Betty é povoado de fantasmas, surgidos de suas impressões, do medo da perda dos pais, de ser largada em meio ao campo, sem ter para onde ir. Quando Agnês parte para uma temporada em Paris, ela fica entregue a seus temores. O receio de a irmã não regressar domina-a a ponto de voltar-se para o mundo interior. Assusta-se com uma boneca quebrada, de cujos olhos saltam formigas, teme a escuridão e as sombras projetadas pelos galhos das árvores. Ao retornar à mansão, depois de perambular pelo mato, sempre se defronta com uma porta entreaberta no alto da escada, sem que tenha coragem para descobrir o que há para além dela. É com estes elementos que Améris constrói seu universo interior, próprios de uma garota que se descobre em meio à crise conjugal dos pais e por ela se sente ameaçada.


 



Filme retrata as relações entre “o monstro” e a garota inocente


 



Mas, Améris não faz desses elementos um psicologismo barato. Eles são indicações do que virá ao longo do filme e da relação que Betty estabelecerá com Yvon (Benjamim Ramon), fugitivo do hospital psiquiátrico, dirigido por seu pai. Ambos sofrem com perdas afetivas, filiais, e se ampara um no outro para suportar a dor que se abate sobre eles. Betty é obrigada a se valer de vários estratagemas para driblar as atenções dos pais e manter Yvon a salvo dos perigos que o rodam. O que os faz iguais é serem carentes, vivendo num ambiente instável, hostil à sua condição de seres humanos, necessitados de maior compreensão. Principalmente no caso de Yvon, acusado de ter assassinado a mãe e, por isto, se retrai, entra em pânico quando é deixado às sós ou diante de objetos perfurantes.


 



Améris cria, assim, um filme em torno da relação entre “o monstro”, Yvon, e a “inocente”, Betty. E pontua-o com cenas em que a figura forte do rapaz; amedrontado pelo mundo hostil que o cerca, mostra um forte potencial para a violência. Espera-se, a todo instante, uma repetição da célebre seqüência de Frankenstein trucidando a criança, depois de acariciá-la, no filme homônimo, baseado no romance gótico de Mary Shelley. Mas Yvon, indefeso, angelical, entra em pânico toda vez que Betty entra com contato com ele. E passa a dele cuidar, torna-o seu cúmplice, seu amigo, em suas aflições e na transição para a adolescência. A ponto de se sentirem ameaçados, quando o pai e a polícia passam a procurá-lo. Ele é o “ET”, que deve ser protegido do ataque dos cientistas, para que sobreviva e possa ser aceito e tratado como um ser que a ninguém ameaça. Deve ser incorporado, enfim, ao cotidiano das pessoas comuns para cumprir seu papel como ente social.


 


 


Personagem busca refúgio em seu universo interior


 


 


“Eu Me Chamo Elisabeth” não deixa de percorrer um caminho inverso ao de muitos filmes que tratam do universo infantil e da relação entre seres tão diferentes entre si. Betty, em sua inocência, aos poucos nutre por Yvon fantasias reais. Quer protegê-lo do pai, em sua tentativa de encontrá-lo e voltar a interná-lo. Mas também o vê como sua primeira paixão, uma paixão adversa ao do adulto, quase uma brincadeira de quem descobre o segredo do amor. As cenas entre Yvon e ela não chegam às carícias, só abraços, às vezes ternos demais. E é numa conversa entre ela e a mãe, ao insinuar que vive uma paixão, que isto fica explícito. Ela não quer apenas protegê-lo, na verdade o quer para si. Améris deixa ao espectador a certeza de que há algo mais na ternura dedicada por ela ao frágil Yvon.


 



As fantasias infantis, no entanto, mantém-se presentes. Estão configuradas na insistência dela pelo cão, largado por Régis num canil. Junto com Yvon, ele completa seu universo até o desfecho, quando decide salvar seu protegido das buscas do pai. Este é retratado às vezes como amigo, às vezes torna-se irritável, agressivo. É parte da solução de seus problemas, mas também um de seus causadores. Ela vê seu ambiente familiar se desmoronar e decide construir o seu próprio em cima dos escombros deixados pelos pais. Sua tentativa não está livre da culpa, do temor de ser punida. Numa seqüência, depois de deixar Yvon na estrada que o tornaria livre, ela retorna à sua casa atravessando uma estrada cheia de figuras fantasmagóricas. Nada disso, porém, a faz retroceder. Até o instante final, ela procura ter seu próprio caminho, com seus próprios parceiros, ainda que emprestados a seu mundo pré-adolescente.


 


 


Faltou ousadia ao diretor para abordar a complexidade  das relações entre Betty e Yvon


 


 


Percebe-se, deste modo, que o ambiente familiar burguês, cheio de falsas expectativas, cria na mente da criança uma insegurança que ela procura compensar criando seu próprio meio. Um meio construído por seres desprotegidos ou largados à própria sorte. São os casos de Yvon; temeroso de ser reinternado, e do cão às vésperas de ser sacrificado. O mundo adulto é visto por Améris, a partir daí, como causador dos males que vitimam tanto a garota Betty quanto o jovem Yvon. A redenção de ambos vem na seqüência que redime toda a família dos percalços causados por ela mesma. Mesmo ao estilo um tanto gasto da altura e da vertigem, em que os papéis são trocados, eles se reconciliam. No entanto, faltou a Améris ousadia no tratamento dado à descoberta do amor por Betty e no modo como Yvon a ela se entrega. Afinal, há algo mais que inocência na relação entre ambos.


 


 


“Eu me chamo Elisabeth” (Je m´apelle Elisabeth). Drama. França. 2006. 90 minutos. Roteiro: Gyllaume Laurant e Jean-Pierre Améris, baseado no romance de Anne Wiazembsky.. Elenco: Sthephane Freiss, Yolande Moreau, Maria de Medeiros, Alba-Gaia Kraghede Bellugi, Benjamim Ramon.

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