Eu te disse
Se tem uma coisa que enfurece o Valdemar, esta coisa é o "Eu te disse" de Valdirene, sua mulher. Se quando estavam para casar, ele soubesse que o "Eu te disse" ia junto, jamais teria dito sim no altar.
Publicado 15/08/2014 16:04
Não é o fato do Valdemar ser um completo desastrado que faz dele o maior pagador de mico da face da terra. O que faz ele ser assim é o "Eu te disse". Se esta pequena partícula do idioma português não existisse, Valdemar jamais teria tentado, desesperadamente, quebrar o vidro do quando esqueceu as chaves dentro do carro e percebeu que sua mulher já se aproximava com aquela cara de quem ia realmente falar o que ele sabia que ela falaria. Ele também não iria simular um ataque cardíaco quando ela lhe perguntou por que estava ele se chocando contra o vidro do carro como um louco. Não, claro que não. Se não existisse o "Eu te disse" ele simplesmente chamaria um chaveiro que abriria o carro e eles poderiam ir embora tranquilamente todas as dez vezes que ele esqueceu as chaves na ignição. Simples assim.
O "Eu te disse" magoava o Valdemar profundamente. Estas palavras, saindo da boca da Valdirene, soavam como um atestado de sua incompetência. E, para não ouvir a mulher lhe repreendendo, o Valdemar faz de tudo para ela não perceber ou não ter conhecimento de suas desventuras. Como da vez em que saíram do carro, em uma rua íngreme e, ao se dirigirem para o restaurante, ele lembrou que havia esquecido de acionar o freio de mão. Improvisou uma desculpa, fez a Valdirene ir na frente e voltou para corrigir o erro. Até aí tudo bem, o problema é que a velha sensação de ser um completo incompetente veio como um tsunami quando, ao se aproximar do carro, percebeu que ele se movia lentamente e, antes que o pobre homem chegasse à porta do veículo, este já estava em uma velocidade que era impossível alcançá-lo. O que não o impediu de tentar. Ficou muito estranho para quem via de fora. Um sujeito completamente descontrolado correndo atrás de um carro sem motorista. Sua sorte foi uma cerca que, logo a frente deteve o veículo sem maiores danos. Depois foi só inventar uma desculpa para o fato de estar todo suado e dos novos arranhões no carro.
Sua vida não era fácil. A primeira vez em que Valdemar ouviu o "Eu te disse", foi no início de seu casamento. A resistência do chuveiro tinha queimado e ele se dispôs a consertá-la. Por diversas vezes a mulher o alertou sobre a necessidade de desligar a força elétrica antes do trabalho. Ele, concentrado em sua missão dizia que não esqueceria e, na hora do estouro lembrou que tinha esquecido. A Valdirene entrou no banheiro espumando "Eu te disse" por todos os poros e a última coisa que ela perguntou foi se ele estava bem.
A partir daí Valdemar resolveu que, para o bem do casamento, não ouviria mais o "Eu te disse" de Valdirene e passou esconder ou disfarçar sua falta de atenção. Aí começaram os homéricos micos.
Como da vez em que ele, tendo convidado a família da esposa para um churrasco em sua casa, se meteu a preparar e assar a carne. Todos pressentiram que aquele churrasco não ia cheirar bem. Mas, como de graça até injeção na testa e ônibus errado, a família foi. Na realidade, foram mais para ver a desgraça do que para comer.
Valdemar estava feliz, tinha se preparado para aquilo. Aprendeu a fazer churrasco com os maiores especialistas gaúchos por um site que ele pesquisou no Google. Estava pronto. Tudo correria bem, afinal, que dificuldade poderia haver em pegar a carne, pôr sal e jogar na grelha? Nenhuma! Nenhuma para uma pessoa normal, mesmo ela sendo um gaúcho. Para o Val foi preciso chamar os bombeiros.
Estava nosso amigo concentrado no churrasco, após brigar com o sogro que queria preparar a carne em seu lugar, quando o fogo cresceu mais do que o necessário. Sua mulher já havia lhe dito para afastar o álcool de perto da churrasqueira quando nosso desastrado personagem ao invés de jogar gotículas de água para amainar o fogo, despejou quase meio tubo de álcool sobre o carvão em chamas. O fogo foi às alturas. Como não tinha ninguém próximo, principalmente ninguém para lhe dizer "Eu te disse", Valdemar tratou de abafar o caso. Se alguém em sã consciência estivesse por perto teria logo segurado o Val e o amarrado em um lugar qualquer para ele não fazer o que fez. Pegou o pano mais próximo e jogou sobre a churrasqueira. Isto já teria sido um absurdo se não tivesse sido o pano encharcado com o álcool que ele mesmo deixou derramar no chão. O pano quase vira chamas quando nosso herói, astutamente, consegue segurar em uma ponta e atirá-lo ao chão. O problema é que o chão ainda estava com álcool e, como neste tempo seco as coisas ficam muito suscetíveis ao fogo, as labaredas pegaram geral. Quando sua mulher e a família chegaram ao local o Val estava com um espeto cheio de carnes na mão e o desespero estampado no rosto tentando retirar do fogo os restos do pano enquanto as madeiras da casa começavam a arder em chamas.
Chamaram os bombeiros e, depois de muito tempo, conseguiram encontrar o Valdemar preso no banheiro, com o espeto em punho gritando que se alguém dissesse "Eu te disse", ele espetaria mais carne.