Existe uma epistemologia bolsonarista?

o Capitalismo pode ter encontrado no Brasil do século XXI o ambiente propício para implantar o Estado ultramínimo, considerando o contexto da revolução 4.0 e da ameaça comunista vinda do Oriente.

Bolsonaro e o guru do bolsonarismo Olavo de Carvalho

Maquiavel é um autor que marcou muito minha vida. Talvez, por causa disso, eu sempre recorro a ele quando o assunto é Filosofia Política ou Ciência Política. Faço isso não por entender que ele tem a resposta para tudo, mas, principalmente porque ele me auxilia a encontrar uma explicação racional para o fenômeno político.

Como se sabe, Maquiavel defende que o bom governante, além de ter virtù (virtude), requer controlar a fortuna, por mais que tenha ciência de seu caráter imprevisível. De igual modo, o governo virtuoso, além de agir considerando a volatilidade dos humores e recorrer a História como fonte para a ação, precisa, quando for conveniente, fingir-se de louco.

No Discorsi, Maquiavel cita que Brutus, conhecido por sua sabedoria e prudência, precisou simular um louco para agir, de forma virtuosa, diante de determinadas situações, principalmente se elas coloquem em risco a segurança e a liberdade do povo.

A originalidade de Maquiavel reside no que a literatura especializada convencionalmente chama de realpolitik, visto que o florentino é tido como o precursor dessa tradição na Ciência Política.

Faço esse pequeno preâmbulo para expor a seguinte percepção. Muitos afirmam que Bolsonaro (sem partido) é louco, insano e que seu governo é composto por lunáticos, malucos, fundamentalistas e olavetes. Há, inclusive, quem afirme que Bolsonaro é um psicopata. Os mais sensatos afirmam que o presidente, sob a tutela dos militares, faz parte de uma seita. Com variações, esta tem sido a tônica dada por muitos cientistas, jornalistas e profissionais da Filosofia que atuam no campo da Política.

Há, no meu modo de ver, uma quantidade exagerada de análises psicológicas em torno da sanidade mental do presidente e de sua equipe ministerial, movimento que tem impedido compreender a realidade além da superfície. Não quero negar a eficácia da Psicologia e suas ramificações como instrumento de análise social. Entretanto, penso que o buraco é mais embaixo.

O que quero afirmar é que existe uma epistemologia predominante no governo federal, distinta da que estamos acostumados a analisar os fatos, o que tem causado muita estranheza por parte da população. Em outros termos, há uma lógica que impera nas ações do bolsonarismo, e é justamente as bases conceituais dessa lógica que pretendo descrever.

A cultura ocidental é herdeira, nos mais variados sentidos, do Iluminismo. Segundo os iluministas, a razão esclarecedora é capaz de conhecer tudo e todos, graças ao processo que envolve descobertas científicas, desenvolvimento econômico e arranjos políticos que, grosso modo, permitam o bem-estar de toda população. Soma-se a estes fatores, o esclarecimento e a liberdade dos indivíduos, que, vivendo em sociedade, guiarão as próprias ações de acordo com a reta razão.

Norberto Bobbio, no livro A era dos direitos, desenvolve uma argumentação em torno das conquistas de direitos que a Humanidade teve nos últimos séculos. Para o filósofo italiano, a era dos direitos começa no início da Modernidade, com as primeiras revoluções burguesas, passa pela primeira Declaração dos Direitos do Homem e chega ao cume com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano de 1948.

Como tem sido a marca da história humana, seu desenvolvimento não se deu de forma linear, onde os fatos aconteceram de forma progressiva e sucessória. Além dos inúmeros reveses, a exemplo da morte de milhões de pessoas nas duas grandes guerras mundiais, a consolidação e ampliação dos Direitos Humanos, desde a adoção das políticas neoliberais nos anos 1970, tem vivido impasses mundo afora.

O fato é que a era dos direitos tem como fundamento epistemológico os ideais do Iluminismo, e é em um caminho distinto a esse, não necessariamente oposto, que o bolsonarismo tenta pôr em prática. Por isso que muitas pessoas estranham as atitudes do presidente, achando-as fora da curva na normalidade. Isso ocorre, repito, devido ao fato de a epistemologia bolsonarista ser distinta da que estamos habituados a praticar diariamente.

Ora, percebe-se que o bolsonarismo tem apresentado um ímpeto contrário aos valores hegemônicos. Por isso que nega a relevância de organismos internacionais, como a ONU e OMC, passando pela liberdade de imprensa, até chegar nos movimentos sociais. Para o bolsonarismo, grosso modo, estas instituições são globalistas, herdeiras do ideal Iluminista.

Ouso afirmar que o Brasil pode estar passando por uma experiência governamental de novo tipo. Essa nova configuração representa, provavelmente, uma nova etapa no desenvolvimento do Capitalismo, movimento que eu, particularmente, tenho dificuldades para afirmar algo a mais.

Como não tenho lucidez suficiente para fazer afirmações contundentes, vou ficar no campo da especulação. Desse modo, do ponto de vista econômico, essa nova configuração nos revela que o Capitalismo é (trans)nacional, trans por conta da financeirização da economia mundial, perpassando todos os países do mundo, e nacional porque nega o sentido cosmopolita da globalização.

Por falar em Capitalismo, Lenin, no texto intitulado Imperialismo, fase superior do Capitalismo, caracteriza o imperialismo nos seguintes termos: 1) É o período onde há a existência de monopólios na produção; 2) O capital bancário funde-se com o industrial; 3) Os capitais são exportados, transitando entre as nações; 4) Forma-se associações internacionais de capitalistas com o intuito de partilhar o mundo entre si; 5) A partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas, propiciando o ressurgimento do colonialismo. (LÊNIN, 1981, p.641)

No entanto, embora as linhas gerais do imperialismo persistam, o que Lenin não previu foi a revolução industrial 4.0 e os impactos que ela traria ao modo de produção e acumulo do Capital. Um dos efeitos é a atomização nas relações trabalhistas, fazendo com que as pessoas convertam sua personalidade física em jurídica. Marilena Chauí identifica que esse fenômeno econômico permite aos indivíduos empreendam, ainda mais se tiver um aplicativo para intermediar a relação com o consumidor. É o que ela chama de empreendedor de si mesmo, ou, se preferir, o alargamento do proletariado, sendo que agora numa condição precarizada no que se refere à relação trabalhista.

No caso da grande indústria, aquela conhecida e analisada por Marx e Engels em suas obras clássicas, ela cada vez se automatiza, impactando na diminuição do proletariado fabril. Este mesmo fenômeno da mecanização tem ocorrido no campo, expulsando o “boia-fria” das grandes plantações.

Além disso, nos deparamos com o avanço econômico da China e o respectivo impacto na geopolítica internacional. A impressão que se tem é que a China comunista, no início do século XXI, tem força política, econômica e cultural para contrapor-se às potências capitalistas, a exemplo dos EUA.

Não custa lembrar que o golpe cívico-militar de 1964 se deu, entre outros fatores, devido a ameaça comunista, e que boa parte dos militares que ocupam cargos relevantes no governo federal foram formados de acordo com a Doutrina de Segurança Nacional.

Feito esta tentativa de delimitação, retorno ao eixo central do presente texto, identificar os vértices epistemológicos do bolsonarismo. Antes, porém, ressalto que eles se cruzam, se moldam de acordo com as circunstâncias e estão em pleno desenvolvimento. São eles: 1) O ultraliberalismo de Robert Nozick; 2) A Filosofia Política de Calvino; 3) O que Achille Mbembe identifica por necropolítica; 4) Herança do integralismo; 5) O conceito hobbesiano de medo.

Há a relação entre Ciência e pseudociência no bolsonarismo. Como temos visto, tem sido cada vez mais constante a negação dos princípios da Ciência Moderna, tão preconizados por Galileu, Bacon e Descartes. Como é um assunto que não possuo condições para expor, de forma correta, opto apenas em citá-lo, deixando aos pesquisadores da Filosofia da Ciência, se julgarem pertinente, desenvolvê-la.

O ultraliberalismo do filósofo Robert Nozick é, talvez, o principal elemento teórico do governo Bolsanaro. Mais radical, do ponto de vista econômico, do que o neoliberalismo, os ultraliberais defendem o Estado ultramínimo. O pressuposto fundamental do ultraliberalismo é que a liberdade individual e a propriedade privada precisam ser preservadas, a todo custo.

No âmbito econômico, Nozick critica o Estado interventor ou qualquer ação de caráter distributiva, através de políticas públicas executadas com os recursos arrecadados mediante impostos. Nesses termos, o Direito redistributivo, alicerce jurídico fundamental para a efetivação dos Direitos Humanos, é nocivo a liberdade individual.

Como diz Nozick, “Que o Estado mais amplo violará os direitos das pessoas de não serem forçadas a fazer certas coisas, e que não se justifica; e que o Estado mínimo é tanto inspirador quanto certo.” (NOZICK, 1991, p.09)

Para Nozick, qualquer intervenção estatal, ainda mais se tiver o caráter compulsório, limita a liberdade individual. Por exemplo, quando o Estado garante educação gratuita para todos, ele está ferindo a liberdade individual. No caso, os responsáveis deveriam escolher livremente onde e quanto pagar pela educação das crianças e adolescentes. Assim, pode-se estender esse exemplo para os demais tipos de serviço, como saúde, preservação do meio ambiente, transporte, habitação, etc.

A dinâmica dele é simples, em vez de o cidadão transferir recursos para o Estado através dos impostos, para que o Estado possa prestar serviços públicos para todos, é melhor cada indivíduo ficar com o dinheiro para escolher, livremente, serviços que atendam aos próprios interesses.

O Estado mínimo deve, portanto, atuar em duas frentes. A primeira é garantir a preservação da propriedade privada, através de contratos e normas. A outra preocupação dirige-se à segurança pública. Por mais que admita a contratação de serviços privados para atuar na área, o Estado deve ter mecanismos que preservem a vida dos indivíduos e da propriedade privada.

O segundo alicerce teórico do bolosnarismo pode ser encontrado na Filosofia Política de Calvino. Como se sabe, o teólogo suíço protagonizou, junto com Lutero, a reforma religiosa no século XVI. Ele, por exemplo, defendeu o caráter laico do Estado, muito embora reconhecesse o papel da Religião para a constituição de indivíduos moralmente corretos.

No livro chamado Sobre o governo civil, Calvino expõe a defesa separação entre Estado e Religião, sendo favorável a constituição do Estado laico. No entanto, poder civil e eclesiástico se entrelaçam, cabendo à doutrina da obediência da comunidade guiar esta relação e a Deus estabelecer a fonte do mundo celestial.

O objetivo do governo secular, entre outros, é beneficiar e proteger o culto a Deus, defender a doutrina divina e harmonizar a vida entre os indivíduos a ponto de moldar a justiça civil. Nesse sentido, o magistrado civil, indivíduo responsável para defender as leis, é legitimado, também, pelas Sagradas escrituras (Êxodo 22,8 e Salmos 82, 1.6), configurando-se no representante de Deus na Terra. Grosso modo, os magistrados são ministros de Deus para nosso bem. (Romanos 13,4)

É bom destacar dois fatos, no mínimo, curiosos. Calvino legitima a guerra e o uso das armas com a seguinte expressão: “Não há nada que impeça o magistrado de defender seus súditos.” (CALVINO, 1995, p.103). De igual modo, deve-se acatar as ações do magistrado, já que isso é uma ação delegada por Deus, portanto, devemos estar sujeitos a ele não somente pelo castigo, mas também pela consciência.

Percebe-se, portanto, que essa comunidade que se forma, alicerçada nos preceitos políticos de Calvino, é uma espécie de república calvinista e que funciona como antessala da vida celestial, onde os indivíduos são testados para viverem, ou não, eternamente.

O terceiro pilar epistemológico do bolsonarismo é o conceito de necropolítica, caracterizado pelo filósofo africano Achille Mbembe. Com isso não quero dizer que Mbembe é teórico bolsonarista, pelo contrário, o que pretendo é afirmar que o governo de Bolsonaro tem na necropolítica um de seus pilares conceituais.

Necropolítica é a “expressão máxima da soberania que reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode e quem não pode morrer.” (MBEMBE, 2015, p.123). Para o filósofo camaronês, “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania.” (MBEMBE, 2015, p.123). O exercício da soberania ocorre quando o controle sobre a mortalidade e a definição de quem vive é exercido, de acordo com o que importa ao mundo.

Dessa forma, a estrutura social é constituída de tal modo que os corpos são controlados e descartados de acordo com sua utilidade, e o poder é exercido no sentido de selecionar os detentores desses corpos. Achille Mbembe identifica os negros como as principais vítimas da necropolítica, o que no Brasil pode ser associado à condição social e econômica mais vulnerável.

Em outros termos, o cerne da necropolítica é que uma vida vale mais do que a outra, e quem não tem valor deve ser descartado.

Outro aspecto teórico que deve ser considerado quando se fala em uma suposta epistemologia do bolsonarismo é o legado do Integralismo.

Antes, contudo, faço a seguinte ressalva. Manifesto minha discordância, de forma parcial, da análise que afirma que estamos diante da implantação do Estado fascista no Brasil, similar ao que se proliferou na primeira metade do século passado, principalmente na Europa. Faço essa observação motivado pela ideia que vou expor agora.

Hélgio Trindade, no livro Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30, caracteriza bem a faceta tupiniquim do fascismo. Para ele, os integralistas defendem que Deus dirige os destinos do povo e que o valor do homem deve ser avaliado pelo “seu trabalho e seu sacrifício em favor da família, da pátria e da sociedade.” (TRINDADE, 1979, p.200).

Por outro lado, os teóricos integralistas compartilham a ideia de que a evolução social se faz por rupturas, destruindo o equilíbrio existente da sociedade em crise. É a ideia de revolução, “passagem definitiva de um certo equilíbrio social, que não mais poderá ser mantido, para um novo equilíbrio.” (TRINDADE, 1979, p.205).

A última ideia que quero destacar do Integralismo é sua rejeição ao cosmopolitismo, por entender que uma sociedade cosmopolita coloca em risco o Estado nacional. Nada mais propício para combater, no âmbito do bolsonarismo, a globalização e as instituições globais.

O último vértice epistemológico do bolsonarismo é o conceito hobbesiano de medo. Como se sabe, para Hobbes, o homem não é naturalmente mau ou bom, mas é um ser passional, com desejo de poder, o que coloca em risco, entre outros aspectos, a vida. Para que ela seja preservada, o contrato social é estabelecido. Assim, cada indivíduo abre mão de parte da própria liberdade, transferindo-a ao soberano o poder para preservar a vida. Hobbes argumenta que os integrantes uma sociedade política, a que celebra o contrato, deve obediência a uma única pessoa, o soberano.

O pano de fundo do contratualismo hobbesiano é o medo. É ele, por exemplo, que faz com que os indivíduos transfiram o poder político ao soberano, por conta do receio de perder a vida. A escolha da figura bíblica do Leviatã não é aleatória. O soberano, dotado de poderes absolutos, impõe medo àqueles que pensam em transgredir os termos estabelecidos no contrato social.

Essa prerrogativa do soberano implica, por conseguinte, em manter os súditos temerosos, não entrando em conflito com outrem, a exemplo do que acontecia no estado de natureza. Por causa do medo, o indivíduo se torna bem-comportado, o que implica que não terá problemas com o soberano e permite, ao Estado, a possibilidade de constituir uma vida mais feliz e confortável aos súditos. (RIBEIRO, 2001p.71)

O Estado ultraliberal, o papel do magistrado na relação entre sociedade civil (Estado) e religiosa, o controle dos corpos (biopoder) através da necropolítica, o legado do Integralismo e o caráter absoluto do Estado hobbesiano compõem os vértices do que denomino de epistemologia do bolsonarismo.

Em outros termos, o Estado ultra-mínimo, preocupado apenas em preservar a propriedade privada e, minimamente, a vida, o magistrado civil como um ser predestinado e enviado por Deus para governar, a possibilidade de o Estado escolher quem vive e quem é descartável na sociedade, o proto-fascismo e o exercício do poder de forma soberana, utilizando o medo da ameaça comunista e da volta da corrupção, como instrumento de dominação política são os traços marcantes da racionalidade que gira em torno do governo Bolsonaro (sem partido).

Estamos diante de um governo que avalia ser um enviado celestial, que conta com o apoio ideológico de uma massa de seguidores. Um governo que está disposto a fazer uma revolução cultural e politica, que usará os mais variados instrumentos de coerção e de repressão para eliminar quem não tem utilidade ao seu ideal de nação. Além disso, o Capitalismo pode ter encontrado no Brasil do século XXI o ambiente propício para implantar o Estado ultramínimo, considerando o contexto da revolução 4.0 e da ameaça comunista vinda do Oriente.

Eu não sei se Bolsonaro e seus filhos têm ciência das teorias que acabo de citar. Suspeito que não. Entretanto, quem circula em torno do presidente sabe muito bem por onde caminhar. Enquanto isso, em vez de encarar a realidade e disputar a opinião pública, os setores que dão materialidade a era dos direitos em nosso país preferem perder tempo e energia rebaixando o debate político com adjetivos descabidos. Até quando?

Referências

CALVINO, J. Sobre o governo civil. Tradução Hélio de Marco Leite de Barros e Carlos Eduardo Silveira Matos. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

LÊNIN, V.I. Obras escolhidas. t.1. Lisboa: Avante, 1981.

MBEMBE, A. Necropolítica. In.: Revista Arte & Ensaios, n.32, dezembro, 2016. Rio de Janeiro.

NOZICK. R. Anarquia, Estado e Utopia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

RIBEIRO, R.J. Hobbes: o medo e a esperança. In.: WEFFORT, F.C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2001. v.1.

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