“Fatal”: Armadilhas da maturidade

Na relação entre um maduro professor universitário e sua aluna, a diretora espanhola Isabel Coixet testa nossa capacidade de ver as barreiras da idade como algo normal na sociedade moderna.

De repente, em “Fatal”, da espanhola Isabel Coixet, percebe-se que a universitária Consuela Castilho (Penélope Cruz) contraria o perfil das jovens atuais, que preferem relacionamentos passageiros a comprometer seu futuro com o parceiro do momento. Ela, ao contrário, quer uma relação duradoura com o maduro David Kepesh (Ben Kingsley), professor e crítico literário, por quem se apaixona. As manobras deste, no entanto, a farão oscilar entre a admiração que nutre por ele e a incerteza de que o caso de ambos irá se prolongar. Enquanto, Kepesh, entrando para a terceira idade, hesita, mostrando ser Consuela mais um caso seu com uma aluna, não fosse a forte atração que ela exerce sobre ele. A ponto de não saber mais se rompe a barreira etária que os separa ou, enfim, entregar-se ao amor na maturidade. E, como se trata de uma adaptação do romance do estadunidense Philip Roth, “O Animal Agonizante”, a diretora Coixet procura equilibrar esta relação sem cair no clássico romance de sessentão com uma jovem descobrindo os percalços da paixão.


 


 


Principalmente porque Roth mantém a história nas dúvidas de Kepesh, na retenção de suposto comportamento juvenil no maduro professor e em seu temor ao fracasso, caso se entregue totalmente à jovem Consuela. Ela o admira por sua cultura, status e, por que não, certo charme, que ele não se furta em mostrar, tentando aparentar humildade. Na verdade, ele se exibe, fingindo auto-controle, enquanto Consuela busca embebedar-se de seus conhecimentos e experiência. Porém, Kepesh sabe dos limites de seu jogo de sedução, percebendo-se atraído por ela, por seu corpo, por seu olhar e certo ar enigmático dela, e se abre ao estar com seu amigo, o poeta George O´Hearn (Dennis Hopper), cheio de explicações, temores, que ao outro parecem infundados, porque o conhece e sabe que ele logo a deixará por outra. Mas, neste envolvimento todo há um terceiro personagem, que dimensiona os relacionamentos de hoje entre casais de qualquer idade.


 


 


Filme deixa antever que sentido da modernidade é “descompromisso”


 


 


Kepesh encontra-se com a executiva Caroline (Patrícia Clarkson), há vinte anos, em seu apartamento, sem que assumam, de fato, compromissos de casal. São relações furtivas, de transas e conversas, jantares e conversas. Dando idéia das possibilidades criadas pela modernidade nas relações a dois. Ambos sabem curtir a transição da maturidade para a terceira idade, e ela, em certo momento, diz que está envelhecendo. No entanto, ainda se mostra sedutora, faz comentários inteligentes e rebate as críticas dele ao filho Kenny (Peter Sarsgaard). Mas também não tem tempo para outras facetas do cotidiano de casais maduros e logo parte para outro compromisso de trabalho. E deixa ao espectador a certeza de que modernidade é isto: “descompromisso”. Coixet assume, desta forma, a idéia de Roth de que vivemos num mundo em que a encenação vale mais do que a realidade circundante. Cada um cria seu mundo e nele vive, tendo pouco tempo para as relações afetivas, dedicando-se mais à criação de um imaginário voltado para o trabalho, portanto circular, destituído de gratificação efetiva.


 


 


O ser humano submete-se, assim, a esta imposição numa sociedade que tudo transforma em mercadoria, inclusive as relações amorosas. Basta olhar em volta, na casa de Kepesh, para se ver que tudo ali mostra seu status, do piano à pintura, desta aos talhares e ao mobiliário. Cada coisa tem seu espaço e deste se estende à personalidade de quem o habita. Coixet o trabalha para fixar seu estado de espírito, sombrio, estruturado, entretanto possuído por sombras e áreas vazias, que se manifestam quando ele olha para a vizinha do prédio do outro lado da rua. Suas dúvidas e temores se multiplicam numa espécie de fluxo de consciência, usado por Coixet como narração em off. Ela, a diretora, se impregna do clima que se desdobra em cada instante em que Kepesh e a jovem estão juntos, sem apelar para um mundo distante do que ele vive; se trata, afinal, de Consuela sendo sugada para o mundo dele e não o contrário. Sem que a relação do maduro professor com a jovem mestranda caia no melodrama, embora os entrechos sejam marcados por sonatas de Beethoven e Bach. A relação entre ambos é, sobretudo, física, marcada por carícias e gestos cometidos, como convém numa relação deste gênero.


 


 


Câmera de Coixet não se intromete na ação de ciúme, Coixet consegue segurar seus espasmos. Mantém sua câmera numa distância suficiente para se possa perceber sua ira e a reação contida de Kepesh. Em nenhum momento, ela, a câmera, se intromete mais do que o necessário, contrariando a estética atual, de ela ser mais um personagem, não deixando  o olho do espectador seguir os personagens que realmente contam. Isto torna a narrativa mais ágil, com a ação se desenvolvendo no tempo certo, podendo ser acompanhada e sentida na medida exata. Mesmo o comportamento de Kepesch, ao ser posto em xeque por Consuela, disposta a tornar duradouro o relacionamento, não o faz decair. Ele luta para não ser checado, colocado numa posição de escolha. Prefere se retrair, ainda que ao custo da perda de alguém que o fez retroceder em suas hesitações. Na verdade, seu temor maior é se deixar amar e ser obrigado a corresponder. Daí sua recusa em se mostrar à família dela.


 


 


É quando cai-lhe a máscara, posta abaixo pelo filho Kenny, que enfrenta dilema igual ao seu, mas está disposto a assumir seus relacionamentos. O embate entre ambos mostra a diferença entre suas gerações. Enquanto o filho quer assumir suas responsabilidades, Kepesh prefere manter seu jogo, esconder suas emoções e não se deixar cair nas rédeas da paixão. Quer tudo sob controle. O filho lhe responde que esta é a diferença entre eles. Nenhum convence o outro. Até esta seqüência, o filme se equilibra, sem cair na pieguice, no drama derramado, e então escorrega no velho truque da doença fatal. Seria terrível para Coixet se deixasse isto acontecer. Mas aqui a doença serve para testar a capacidade de Kepesh em amar, não socorrer-se na juventude de Consuela para fugir às armadilhas da maturidade. Ela o testa, o provoca, e então o filme volta a se equilibrar. Caso contrário; estaríamos no terreno pantanoso de “Love Story”, em que as lágrimas roubam da reflexão o sentido da relação a dois.


 


 


Tempo pode ser medido entre nascimento e velhice


 


 


Enfim, “Fatal” dá uma chance àqueles que, estando na maturidade, a caminho da terceira idade, possam refletir sobre os percalços da paixão por um par mais novo. Kepesh, com seus gestos equilibrados, traduz como ninguém estas hesitações. Em certo instante, ele vê em Consuela o prolongamento de sua juventude que ficou para trás. Na atração que poderia ter se transformado numa relação efetiva caso não tivesse tido medo de se envolver a fundo com as mulheres que passaram por sua vida. Medo de se desnudar, de revelar-se fraco, diante de mulheres mais novas. Há mais encenação, descompromisso, que o jogar-se no escuro da construção a dois. E, para Kepesh, é mais difícil ainda dada à barreira da idade. E Roth/Coixet questionam isto. Afinal, o que é a barreira da idade? Pouco adianta contar o tempo; trata-se apenas de uma medida entre o nascimento e a velhice, quis lhe dizer Consuela, num dos raros instantes em que discutem o assunto, embora ele esteja o tempo todo sobrevindo. E só sexo não basta, deixa antever Coixet no diálogo entre o chocado Kepesh e a sofrida Consuela. Tem que haver algo mais.


 


 


Uma discussão interessante para um filme que se passa em ambientes fechados, deixando espaço para os personagens sobressaírem. E mesmo quando a ação se dá em ambientes ao ar livre – praia e bares com mesas em calçadas – a câmera de Coixet nunca se abre para o ambiente. Importa ali o que eles, personagens, falam e fazem. Quando George e Kepesh se abrem um para o outro, principalmente este, ela, a câmera, nunca presta atenção ao redor. O importante ali é o que irá influir no comportamento dele, Kepesh. Suas frases bem estruturadas, de crítico de arte rigoroso, cedem lugar às lágrimas, e temos um ser humano; um homem como qualquer outro, habitando o comedido intelectual. Um personagem distante do mundo real das contradições do universo da produção, nem por isto destituído de fortes ligações com aqueles que o habitam. No entanto, Kespesh pertence ao mundo da produção intelectual, cujas reações se pretendem comedidas e reflexivas.


 


 


Kepesh quer ser adorado sem corresponder


 


 


O que ele produz é conhecimento, algo voltado para o intelecto puro e simples. Portanto, suas emoções não podem, supostamente, ser derramadas. Com discussões, berros e diálogos que traem seus pensamentos. Tudo deve ficar subentendido. Um tipo de profissional que a tudo controla; inclusive a circulação de sua produção. Em dado momento, Caroline indaga a Kepesh se ele voltou a fazer crítica literária e ele lhe responde como se estivesse livre para  fazer ou não. É uma celebridade, portanto livre de obrigações com a produção ordinária. Daí também não ter a obrigação de assumir compromissos. Está acima disto. Quer se fazer adorado sem se esforçar em corresponder. Tem em conta que somente ele deve influir; não ser influenciado. Uma diferença e tanto, quebrada pela jovem, que é, para ele, tão só desejo. Ela está pronta para ser marcada por ele, com seu charme, suas nuances, toque de piano e experiência. Uma análise e tanto num filme onde brilham os atores e as palavras tão a gosto de Coixet (“A Vida Secreta das Palavras”).


 


 


Sai-se da sessão com a impressão de que as entrelinhas do filme dizem mais sobre os temores do envolvimento, seja lá a idade que for; e a produção intelectual que molda o comportamento de quem nela se envolve, tirando-lhe a capacidade de ser alguém com coragem suficiente para ir fundo no relacionamento sem medo de mostrar-se e sentir o peso de quem realmente se é. Ali caem as teorias, os jogos e a simbologia do produtor intelectual. Tudo nele, de repente, pode ser construído de estruturas desligadas do espaço real, permanecendo mais no campo das idéias, inclusive a inclinação para o desejo .Nota-se isto, na constante preocupação de Kepesh em como seria visto pela família de Consuela. Predomina a imagem, o estereótipo, do homem maduro tentando compensar sua “virilidade em decadência” com a juventude do sexo oposto. Quando, na verdade, existem outros fatores que contam nesta relação, tal como Consuela mostra-lhe no hospital.


 


 


A redenção vinda da mudança de parâmetros reforça a tentativa de Roth/Coixet de destituí-lo dos estereótipos provenientes de seu próprio mundo, em que as imagens, cheias de sombras, predominam sobre o mundo real. Ele só o compreende ao ser posto em xeque. Seu mundo bem construído, a partir de teorias, se desfaz, torna-se, inclusive, mais cordato e humilde em relação ao filho Kenny. Enfim, um libelo sobre a transição da maturidade para a velhice, pontuado pelo confronto entre a jovem que busca um relacionamento duradouro, num mundo de relações fugazes e superficiais, e a necessidade de a paixão ir além do objeto de desejo. Difícil não imaginar, entretanto, os percalços que uma relação desta terá ao ser posta em contato com a realidade cotidiana, que sempre fala mais alto que as estruturas literárias.


 


 


“Fatal” (“Elegy”). EUA. Drama. 2008. 103 minutos. Roteiro: Nicholas Mayer. Baseado no romance de Philip Roth, “O Animal Agonizante”. Direção: Isabel Coixet. Elenco: Bem Kingsley, PÇenélope Cruz, Peter Sarsgaard, Patrícia Clarkson.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor