Flores Raras

Reforçando a ideia de que o amor fala todas as línguas, um filme de 2013, dirigido por Bruno Barreto, narra a relação entre mulheres provindas de mundos culturais bem diferentes

Cena do filme "Flores Raras" I Foto: Reprodução

No contexto mais amplo das lutas de enfrentamento dos preconceitos e discriminações dirigidos contra a comunidade LGBTQIA+, o 29 de agosto destaca sua relevância: é o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. No Brasil, a data quer mostrar ao país que – como diz a música – toda forma de amor vale amar, como aquele que brota entre duas mulheres, em sua dignidade e sensibilidade, e, simultaneamente, denunciar e combater o preconceito, a misoginia, as violências, o machismo contra as mulheres lésbicas. Reforçando a ideia de que o amor fala todas as línguas (1), um filme de 2013, dirigido por Bruno Barreto, narra a relação entre mulheres provindas de mundos culturais bem diferentes.

“Flores Raras” registra a bela história do amor entre uma paisagista e urbanista brasileira – Lota de Macedo Soares (Glória Pires) – e a célebre poetisa norte-americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto). A atriz brasileira e a australiana reproduzem vividamente, e também sofridamente, a trajetória dessa relação, que vai de 1951 a 1965, e que se passa, sobretudo, em cenários de Petrópolis e do Rio de Janeiro nos anos 50 e 60, incluindo alusões ao golpe militar de 1964.

A película foi baseada no livro “Flores Raras e Banalíssimas”, de Carmem L. de Oliveira, que realizou vasta pesquisa de materiais publicados naquela época, bem como produziu inúmeras entrevistas em forma de depoimentos. O livro foi lançado pela editora Rocco em 1995 e já está com várias reimpressões. O resultado desse trabalho é uma história rica e comovente envolvendo pessoas que tiveram papel relevante na história do Brasil como o governador da então Guanabara Carlos Lacerda e o paisagista Roberto Burle Marx. Lacerda, além de deputado federal e governador, foi escritor. Teve uma trajetória política diversa: foi militante da juventude do Partido Comunista do Brasil, seguindo passos de seu pai, o escritor Mauricio de Lacerda; dirigiu a Aliança Nacional Libertadora (que respondeu pelo levante de 1935); rompeu com o Partido em 1939; foi duríssimo opositor dos governos de Vargas, Juscelino, Jânio Quadros e João Goulart; apoiou o golpe de 1964 e em 1966 rompeu com os militares ditadores; passou à oposição e buscou formar Frente antiditadura com Juscelino.

Elizabeth Bishop, uma das mais prestigiadas poetisas dos EUA, visita o Brasil a convite de Mary (Tracy Middendorf ) no começo da década de 50. Mary era companheira de Maria Carlota, chamada apenas de Lota, filha de família aristocrática, então vivendo em luxuosa casa nos arredores de Petrópolis. A arquiteta de início acha Elizabeth tímida, arredia, esquisita, que recusa o vinho no jantar, mas recolhe-se para beber às escondidas seu uísque no quarto de hóspedes. Porém, aos poucos, as duas vão descobrindo os cativantes atrativos uma da outra e começam um forte romance que provoca ciúme em Mary.

Elizabeth Bishop e Lota Macedo Soares I Foto: Reprodução/Correio24horas

O que seria uma visita de poucos dias vira uma coexistência de 15 anos na casa de Petrópolis intitulada de Samambaia (2), envolta por mata atlântica, montanhas e rios. Em uma entrevista ao jornal Correio da Manhã, Elizabeth afirmou: “Tudo começou quando experimentei um caju, fruta tropical que achei muito curiosa. Sofri uma violenta alergia ao sumo ácido, a ponto de perder o navio que me levava numa viagem pelo litoral da América do Sul. Depois, os brasileiros foram todos tão bondosos e simpáticos comigo que fui ficando… até hoje” (https://medium.com/roteirosliterarios/elizabeth-bishop-no-brasil-parte-1-3207bba42086Correio da Manhã, de 13 de dezembro de 1964).

O nome “Flores Raras” designa bem as personalidades das duas mulheres, uma mais introspectiva, a outra, determinada. Glória Pires desempenha papel de uma mulher firme, decidida e controladora na vida amorosa e profissional. Pressionou o então governador Carlos Lacerda, idealizou e acompanhou a construção do Parque do Flamengo, pensando-o como um grande centro de convivência do Rio, capital do então estado da Guanabara, com isso impedindo que a região se tornasse objeto de cobiça de grandes empreiteiras construtoras de mais prédios. Já Miranda, interpretou bem a tímida Elizabeth, que se mostra insegura, sempre com medo de perder o que conquistou. Na vida real, a poetisa, com um ano de vida, ficou órfã de pai e, quando era uma menina de cinco anos, teve sua mãe internada à força em um hospital psiquiátrico, tendo que ficar aos cuidados de avós paternos e maternos.

Elizabeth tem períodos depressivos, utiliza constantemente de álcool, o que mais de uma vez é exibido no filme. Ela traduz em poesia sua enorme sensibilidade e solidão existencial. Assim, a grande marca do filme é desenvolver momentos de ternura e muita alegria, alternados de outros de frenética paixão, mas sem jamais ceder a recursos apelativos, justamente para trazer ao primeiro plano as comoventes singeleza e delicadeza entre as duas protagonistas.

A tela induz nostalgia, ao lado da fotografia estonteante de Petrópolis, onde Lola vive em enorme casa por ela mesma idealizada. A trilha sonora impecável resgata clássicos da bossa nova das décadas de 50 e 60, misturados a ícones do jazz americano.

Sem se esquivar do pano de fundo com a política da época, a produção mostra Lota e Elizabeth em posições diferentes quanto a 1964. Em um jantar, pouco depois da quartelada, Elizabeth recebe homenagens pelo prêmio Pulitzer, ganho em função de seu livro “North & South – A Cold Spring”. Ela aborda suas impressões sobre a sociabilidade brasileira, demonstra-se crítica ao golpe e contrariedade diante da naturalidade com a qual agem os(as) participantes do jantar, entre esses, diversos políticos brasileiros, como o próprio Carlos Lacerda. Mesmo sob o olhar discordante de Lota, Bishop faz uma fala, citando Tom Jobim: “O Brasil não é para iniciantes”. E continua: “Como podemos viver em um país que os selos não colam, os sabonetes derretem antes mesmo de os utilizarmos, rios correm muito depressa para o mar? Eu queria entender essa alegria insustentável que os brasileiros têm, essa urgência constante para celebrar (…) e tem sua melancolia, seu drama, seu flamboyant. Para uma norte-americana como eu, isso é desproporcional, é… excessivo. Então, quando acontece o golpe militar e vocês perdem sua liberdade… eu vi, eu estava lá. Vocês foram jogar futebol na praia. Quanto mais você fica em um lugar, menos você entende esse lugar. De qualquer jeito, obrigada por terem vindo. Se divirtam, oh, eu sei que irão.”

Cena do Filme “Flores Raras” I Foto: Reprodução

Há uma cena que incomoda muito, hoje, depois do advento do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e de normas regulando adoção. Mary desejava muito ter uma criança. Lota vai a uma casa no interior e ali compra um bebê de pouca idade para presentear a Mary. É chocante imaginar que esse tipo de comércio foi largamente utilizado em nosso país, uma reprodução do Brasil colonial, atendendo interesses daqueles que não poderiam gerar biologicamente seus próprios filhos em detrimento da família biológica com vulnerabilidades econômica e social. Famílias nesta condição, pela ausência ou omissão do Estado, abdicavam de um ou mais filhos com a justificativa de que estariam melhor com uma família rica. Registre-se que a adoção somente se tornou um processo mais amplo e justo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, pois esse documento garante aos filhos adotados os mesmos direitos de filhos legítimos. A conquista do ECA, em 1990, é um marco na história dos direitos humanos no Brasil, resultado da luta dos movimentos sociais, dos operadores do direito e diversas categorias profissionais, que garantiu o asseguramento à criança, ao adolescente e ao jovem a absoluta prioridade. Em nosso país, com uma população de 210,1 milhões de pessoas, dos quais 53.759.457 têm menos de 18 anos de idade (estimativa do IBGE para 2019), mais da metade de todas as crianças e adolescentes brasileiros são afrodescendentes e um terço dos cerca de 820 mil indígenas do País é criança. São dezenas de milhões de pessoas que tem seus direitos violados.

Não há omissões de Bruno Barreto quanto ao contexto histórico político da época que se propôs filmar, inclusive porque suas duas personagens tiveram algum envolvimento real com esse contexto. Mas sua preocupação fundamental com o filme não é debater ideologia ou política. É, sim, principalmente, expor aos olhos de milhões que veem TV e vão ao cinema a candura e a beleza do afeto lésbico. O que certamente é valioso para atender ao objetivo de uma data como o 29 de agosto.

A poesia (3) de Elizabeth Bishop atravessa todo o filme. Citamos seu poema, que abre a primeira cena, e diz: “A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério”.

  • Filme: “Flores Raras”
    Duração: 1h 44min
  • Genero: Drama, Biografia, Romance
  • Direção: Bruno Barreto
  • Roteiro: Carolina Kotscho, Julie Sayres
  • Elenco: Glória Pires, Miranda Otto, Tracy Middendorf
  • Disponível no serviço de streaming da Globoplay

(1) Uma referência à campanha desenvolvida pelo Conselho Federal de Assistentes Sociais – CFESS em 2009: O amor fala todas as línguas Assistente Social na luta contra o preconceito. Registra que a luta pela livre orientação e expressão sexual é uma questão política porque questiona a imposição da heterossexualidade como norma. “(…) Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além” (Paulo Leminsk) http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/195

(2) Construída entre 1951 e 1953, rendeu ao então jovem arquiteto carioca Sergio Bernardes (1919-2002) idealizador da casa (com a participação de Lota) o prêmio da 2ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, em 1954. https://casa.abril.com.br/casas-apartamentos/conheca-a-primeira-casa-a-usar-cobertura-metalica-no-brasil/

(3) Artigo publicado na Revista Científica Semana Acadêmica, com o título: Ida à Padaria retrata que: “O discurso implacável de Elizabeth Bishop aponta que a poeta estadunidense, ao poetizar o espaço brasileiro, posiciona-se de forma que soa colonizadora, reproduzindo o olhar de superioridade do colonizador sobre o colonizado e seu espaço¨. https://semanaacademica.com.br/artigo/ida-padaria-o-discurso-implacavel-de-elizabeth-bishop.

Referências:

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