“Foi apenas um sonho”: sem direito à escolha

Ao tratar de um tema, ainda tabu no cinema, o diretor anglo-português Sam Mendes discute o direito da mulher a escolher entre suas perspectivas de vida e a entrega total à concepção e à família.

Numa época em que muito se indaga sobre projeto de vida, o sonho de Kate Wheeler (Kate Winslet) faz parte dos delírios que cada um de nós tem da vida, e, dependendo de nossa disposição, ousadia e coragem, até conseguimos realizá-los. Principalmente se estiver alicerçado em quedas e frustrações por carreiras em que não logramos êxito e, portanto, a nova tentativa se transforma numa espécie de redenção. Mas se hoje opções iguais a estas são de difícil concretização, ainda mais em plena crise global, que dirá nos anos 50, quando o universo feminino tal como o conhecemos hoje estava para ser construído, pilar sobre pilar, até afastar, não de todo, os preconceitos sobre o papel da mulher na sociedade moderna. Sobre aqueles sombrios tempos, tido falsamente como “anos dourados”, o diretor anglo-português Sam Mendes constrói um filme devastador a respeito dessa dona-de-casa, obrigada, em seus termos, a viver em função da carreira e das perspectivas do marido Frank Wheeler (Leonardo DiCaprio), em “Foi Apenas um, Sonho”, baseado no romance de Richard Yates, “Revolutionary Road”.


 


 


Há para ela todo um ritual a seguir, convenções sociais, matrimoniais e sexuais, para, enfim, projetar a imagem familiar que se devia ter naquela década. Como parte integrante da arquitetura urbano-social, do american-way-of-life, formada por uma classe média branca, anglo-saxônica, distante do mundo miscigenado dos dias atuais, em que a negros, hispânicos e asiáticos se reservava papéis secundários. E completada pelo clima asséptico dos sobrados imponentes, adornados por jardins e bosques, que escondiam vivências atribuladas, através da convivência familiar que buscava prolongar existências depauperadas. Enfim, uma variedade infindável de aparências que iria, aos poucos, formar uma multiplicidade de frustrações que explodiriam na década seguinte, na forma de diversos movimentos sociais, que resultariam, por exemplo, na liberação feminina, pelas várias razões apontadas, indiretamente, por Mendes, em seu filme.


 


 


Diretor mostra padronização do trabalho em escritório


 


 


Os germes desses movimentos podem ser vistos no comportamento não só de Kate, mas, principalmente, no de Frank, com sua liberdade de garanhão, para formar círculo de amigos para além da família; ter seus próprios sonhos e buscar, sobretudo, ascensão profissional, às custas dos projetos da companheira. Mendes delineia seu mundo, como num daqueles filmes de ficção científica, em que a padronização demonstra a falta de opções, de individualidade, numa sociedade de massas. O vemos de terno cinza, gravata e chapéu, entrando e saindo do trem, caminhando em meio a milhares de homens vestidos iguais a ele. Depois, entrando num amplo escritório, com “baias”, máquinas de escrever e pequenas mesas, onde ele passa seu dia, entre memorandos e escapadas com uma colega de trabalho. Nada diferente do que nos mostra Chaplin, em sua obra-prima “Tempos Modernos”. Embora seja tido como trabalho intelectual, a vida no escritório difere pouco do massacrante cotidiano do operário na fábrica. Ambos são alienantes.


 


 


Mendes joga com estes dois universos para nos encaminhar para a convivência do casal Wheeler. Vivendo em função de Frank, Kate cumpre todo o ritual familiar, mantendo a casa, cuidando dos filhos e fazendo as honras do casal. Às vezes recebe, não de bom grado, os vizinhos Shep (David Harbourn) e Milly (Kathryn Hahn), ou a agente imobiliária (Kathy Bates) com o marido e o filho John (Michael Shannon). Enquanto Frank cumpre seu papel de marido, alheio às atribulações e frustrações da mulher, ainda que compartilhe com ela o tédio e a aspiração de uma vida diferente, fora dos padrões estabelecidos para a classe média estadunidense. Ele, no entanto, tem variações sociais, oportunidades no trabalho, enquanto Kate, vivendo em função dele, não tem sequer um ciclo de amizades fora da família e das relações com a vizinhança. Pelo que Mendes observa; essa era visão que a mulher dos anos 50, dona-de-casa ou não deveria transmitir à sociedade da qual fazia parte. Para além de seu cotidiano, ela só tinha a intenção de se liberar e viver em Paris, tratando, inclusive, do marido, numa inversão total dos papéis.


 


 


Kate não tem controle sobre sua família


 


 


Este delírio; visto assim pelas pessoas que a circundavam, até mesmo por Frank nos primeiros momentos, desencadeia a uma série de eventos já presentes em “Beleza Americana”, filme que revelou Sam Mendes como arguto observador da classe média estadunidense. Demonstra o quanto Kate não tinha controle sobre sua família, tampouco sobre seus sonhos e sequer sobre seu corpo. E, a partir daí, entramos numa discussão a respeito do choque entre o direito de a mulher dispor de seu corpo e a interferência que uma gravidez indesejada pode ter em seus projetos de vida. Além de o companheiro, no caso, Frank, ter de compreender o quanto deve ajudar na solução que ela pretende dar à sua existência, para ambos e, portanto a família, sobreviverem. Um tema atual, polêmico, enfrentado por Mendes com equilíbrio, sem discursos moralistas ou preconceituosos. Ele usa um recurso, dos mais criativos para fazê-lo: o personagem feito com criatividade pelo ótimo Michael Shannon.


 


 


É John, apresentado como matemático genial, que entrou em depressão, que irá revelar o quanto de hipocrisia e contradição existe nas atitudes aparentemente liberais de Frank. Suas frases, curtas, ditas num tom irado, colocarão em cheque a estrutura de uma família que desmoronou e não sabe ainda como irá manter-se de pé.  Diferente do casal Chep/Milly, arrumadinho, porém cheio de desejos submersos, revelados em situações limites, que desnudam sua fragilidade. John, pelo contrário, dá vazão à suas idéias, construções realistas, difíceis de serem aceitas por serem cruas e verdadeiras. Incomodam-nos por não sermos capazes desta franqueza, nos horripilam por fugirmos sempre do que pensamos, nos fazem rir por termos medo de nós mesmos. Mas acabam por amenizar as incertezas de Kate e transformá-las em iniciativas. Contraditoriamente, ela consegue se equilibrar e reagir às pesadas discursões com Frank com uma subserviência dignas de nossa Amélia. Nisto também se constitui sua força, maneira de esconder suas reais intenções.


 


 


Mendes mexe em estruturas sociais em franca decadência


 


 


Elas se revelam no instante de ascensão do marido, de seu retorno ao mundo masculino do trabalho, em que supostamente importa mais a vida dele, Frank, do que seus sentimentos de parceira. Espécie de contraponto entre Kate e o marido, a ascensão de Frank é mais uma denúncia de que naqueles anos (e não só neles) a concepção de cabeça do casal era, por certo, um dos pilares da família. E comprova o quanto as relações de gênero mudaram desde então. Milhares de mulheres cuidam sozinhas dos filhos, sem necessidade deste pilar. Mendes, com isto, mexe com estruturas já carcomidas, porém não devastadas o suficiente para quebrar, de vez, tabus que a Igreja Católica, e não só ela, insistem em manter. Quando são as relações sócio-econômicas que ditam, com suas exigências, os tipos de estruturas familiares que devem prevalecer.


 


 


Não é por caso que na edição do Oscar deste ano, “Foi Apenas um Sonho” concorre somente na categoria de “Ator Coadjuvante”. Por mais que os temas dos cinco indicados nas principais categorias sejam importantes, o do filme de Mendes é o que causa, sem dúvida, maior desconforto, pois desnuda o papel da mulher na sociedade capitalista e a desestruturação da família. Ainda que tratada sob a ótima dos anos 50, tem uma atualidade desconcertante. Espelha as etapas cumpridas e as que ainda virão até a igualdade ansiada. Talvez ainda falte muito para ela ser conquistada, devido às pressões dos segmentos religiosos e político-sociais, em suas diversas vertentes e correntes. Notadamente, quando se trata do aborto, da liberdade de escolha da mulher e da visão que o homem preserva do papel da maternidade. Mendes em poucas sequencias trafega da ação feminina à manifestação masculina, sem tomar partido. Diz apenas que tal decisão tem preço, às vezes cruel, noutras, se tomadas providências, haverá redenção.


 


 


Incomodam a fragilidade, as intenções e os atos do casal


 


 


No centro desta exposição há o recurso ao diálogo, cuja importância Mendes insiste em mostrar. Kate e Frank estão em níveis adversos; ela num estágio de busca, agarrada à idéia de realizar seu sonho, ele disposto a ter uma segunda chance em seu trabalho. Um dilema presente na vida de milhões de casais mundo afora, raramente conciliável com resultado satisfatório para ambos, marido e mulher, companheiro e companheiro. Percebemos isto quando Frank descobre as intenções de Kate, e põe-se a discutir tentando lhe impor sua visão, algo reacionária, distante da necessidade que ela tinha de livrar-se do que a impedia de seguir adiante não mais com seu sonho, mas com sua vida. O universo do macho; construído em cima de dogmas, moral e uma ética enviesada surge para chocar-se com a necessidade de ela, Kate, ter o direito de escolha.


 


E, embora tenha dois astros no elenco, Winslet e DiCaprio, é a história que termina se impondo. As discursões do casal são devastadoras, entregam os segredos íntimos, nos mostram o quanto de fel pode existir numa pessoa frustrada. Atinge a outra sem piedade alguma e, depois, é obrigada a se defrontar com ela no dia seguinte. Incomoda a sequencia em que Kate desmonta as perspectivas de trabalho de Frank à noite e de manhã prepara-lhe o café da manhã, como se nada houvesse ocorrido. E ele, humilhado, é obrigado a tecer-lhe comentários elogiosos. Mendes, advindo do teatro, consegue tirar dos atores expressões, silêncios, risos, mínimos, mas o suficiente para revelar uma gama de sentimentos submersos.


 


 


Mesmo o recurso aos comentários no “day after” não fica redundante; reforça as claras impressões que devemos ter das consequencias dos atos de Kate e de Frank. Levam-nos também a indagar se o preço que se paga por determinadas atitudes são altos demais ou necessários à compreensão de nossos atos, decididos em função de algo ainda não concretizado. O olhar choroso de Frank para os filhos brincando no parque nos desafia: entendemos a natureza de nossas decisões ou continuamos produto de uma estrutura conservadora e produtora de frustrações e amarguras? Não por acaso, o título do filme em inglês contribui para esta indagação: “Estrada Revolucionária”.


 


 


“Foi Apenas um Sonho” (“Revolutionary Road”). Drama. EUA/Reino Unido. 2008. 1h59. Roteiro: Justin Haythe, baseado no romance de Richard Yates. Direção: Sam Mendes. Elenco: Leonardo DiCaprio, Kate Winslet, Kathy Bates, Michael Shonnon, Jay O. Sanders, David Hanbourn, Kathryn Hahn.

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