“Fôlego”: Amor em tempos de nada
Sul-coreano Kim Ki-Duk tece alegoria sobre o amor, desejo e traição em fria relação entre sentenciado e pintora, que nada esperam um do outro
Publicado 27/06/2008 18:41
Hollywood impôs ao espectador de todo o planeta uma forma de ver cinema, difícil de ser negligenciada. A história segue em linha reta, com raros desvios, cruzamentos e paradas. Cada seqüência, ligada à anterior, pode ser acompanhada sem o risco de ficar confusa. A reação vem na hora e lugar certo. Até as risadas são cronometradas. E, embora ele, o espectador, saiba de antemão as reações dos personagens, há sempre a suspeita de que algo diferente irá acontecer, ainda que ele não o queira. Mesmo que o happy-end não ocorra nos moldes tradicionais, haverá a sensação de que aquele final era inevitável. O importante é que ele vá para casa no melhor dos mundos ainda que na esquina o espere algo diverso. Assim, quando ele se defronta com um filme do cineasta sul-coreano Kim Ki-Duk, como “Casa Vazia”, “Primavera, Verão, Outono, Inverno”, ou este “Fôlego”, em que estas regras estão viradas para cima, como numa pirâmide invertida, a impressão é de que há espaços demais a ser preenchidos. E por ele mesmo, espectador, nada lhe será dado de graça, sem que ele se esforce para apreender o encadeado na tela.
Nada semelhante mesmo às obras de arte vistas antes e tidas como “filme-cabeça”. Kim Ki-Duk quer dele outro tipo de participação. Que ligue as seqüências, que projete o que acontecerá a seguir e preste atenção nas poucas informações que lhes são dadas para amarrar, no final, todos os entrechos do filme. Ou seja, não haverá nada gratuito, a exemplo dos filmes hollywoodianos em que vários ganchos são deixados ao longo do filme, dividido em três atos, para serem, no final, ligados uns aos outros. Com Ki-Duk isto não acontece. As seqüências não estão ligadas umas às outras, elas se desenvolvem como num quadro, em que nele estão todas as informações, conteúdos, ações e reações. Numa seqüência de “Fôlego”, passada na prisão em que Yang Jin (Chang Chen) aguarda execução, ele se vê diante da desconhecida Yeon (Ji-a Park) cantando uma canção de boas vindas. Qualquer ilação que se faça irá tirar o sentido da cena. Ela basta a si mesma. Iguais às demais que virão a seguir.
Espaços vazios sintetizam as relações simbólicas dos personagens
As únicas seqüências que destoam são as que se passam no apartamento que Yeon, artista plástica, divide com o marido (Há Yung-Woo) e a filha, ainda criança. Ali as ações são realistas, as reações estão baseadas no comportamento do marido, cuja amante não cessa de lhe telefonar, mesmo diante dela, Yeon. Ela se vinga atirando a camisa dele da sacada do apartamento. Uma reação normal, diante da traição, que sintetiza seu desejo de vê-lo atropelado pelo caminhão de lixo. Ou assistindo a programa policial na televisão, sendo execrada pelo marido. Principalmente quando ele percebe seu interesse pelo caso de Yang Jin, internado em mais uma de suas tentativas de suicídio. A saída de Yeon é voltar à escultura de um anjo cujas asas ela molda devagar, como se temesse fazê-lo em tempo recorte, numa espécie de teia refeita à exaustão por Penélope. E aguardar o momento em que o marido e a filha retornem no fim de tarde para envolver-se de novo num cotidiano que a entedia.
Em sua volta, móveis e espaços vazios. De cores claras, cada um em seu lugar, sem destoar um do outro. A ausência de vida se impõe, igual à que a vivência, numa sociedade de bem-estar em que a ascendência social se configura no amplo apartamento, no carro, no emprego, na filha e no marido. Nada há para além desse mundo, apenas o choque da outra a faz perceber o lugar que ocupa naquele espaço. A notícia do suicídio de Yang Jin é o moto que ela necessita para escapar ao “padrão clean”, tão caro à classe média e a burguesia deste Terceiro Milênio. Tão calcado na american-way-of-life, com a diferença de que falta o cão. Igualmente soporífera, frágil, sem nuances, só dando a perspectiva de uma morte lenta. Então, quando Yeon vê a notícia da nova tentativa de suicídio de Yang Jin, a narrativa substitui as seqüências tradicionais pelos entrechos, encadeados, que apontam tanto para a projeção do que seria uma vida sem amarras quanto para a realização do desejo e da vingança.
Desejo e vingança mostram propensões dos amantes
Sim, vingança e desejo, “Fôlego” mais do que sobre o silêncio, o vazio, é sobre essas duas propensões: uma como justificativa à traição, outra como a concretização de algo irrealizado. E de uma forma inusitada, ousada. Yeon vai, aos poucos, saindo da projeção, da fuga, para a concretização. Os quadros-seqüências – não se pode esquecer que Ki-Duk é pintor, estando sua criação limitada ao espaço da tela – penetram um mundo onde a vida está limitada pela sentença. Os quatro sentenciados à morte se enroscam uns nos outros, numa tentativa de se proteger do ataque externo. Nenhuma palavra trocam. Seus gestos estão pontuados por movimentos coreografados, respirações contidas, olhares interrogativos. Parecem ter interiorizado suas emoções, e nenhum contato querem com o mundo exterior. Yeon vem para romper esse ritual. Com suas canções, o gestual, o uso de paisagens frias, representando estações do ano, ela atrai Yang Jin, desacostumado ao afeto, à atenção, ao mundo para além das paredes da cela.
Noutras circunstâncias seria criada toda uma situação entre ambos. Haveria outra densidade; a dos amantes, possuídos agora pela esperança, a vontade de evadir-se da prisão. Ki-Duk retira do espectador qualquer projeção, as cenas, frias, não se ligam às anteriores e não deixam ganchos para as próximas. Yang Jin não emite um som sequer. Ouve-se a voz de Yeon, as canções por ela deslindadas, sem animar o entorno e a paisagem que situa seu estado de espírito, não o de Yang Jin, que parece descrente do que o cerca, inclusive em relação a ela. Inexiste para eles futuro, apenas o presente, à semelhança da “cyber-geração”, vivente tão só do instante, fugaz, numa profusão de consumo, sons mecânicos e sexo. Desta forma, Ki-Duk não cria ilusões, não joga com a expectativa, a emoção do espectador. Não o manipula. É radical, lhe diz: não há futuro nesta relação. A forma como o faz compreender isto, está na brilhante cena em que Yeon atrai Yang Jin para si e o possui, literalmente. A câmara da prisão que a tudo acompanha, a tudo vê, se permite desviar para a bucólica brincadeira do marido e da filha de Yeon na neve. Deixa-os em privacidade, num momento em que a fantasia cede lugar à realidade, sem trair o distanciamento procurado por Ki-Duk.
Filme aponta tendência das relações amorosas
Uma indagação pode ser feita neste instante: se o amor neste Terceiro Milênio cheio de contratos matrimoniais, de promessas de amor eterno não cumpridas, de separações inexplicadas e de comunicação à praça de que está à disposição no mercado das relações inter-sexo, não é idêntico ao de Yeon e Yang Jin: sem futuro. Feito de instantes e nada mais. Ki-Duk, embora torne a relação entre ambos verdadeiro impasse, pela falta de perspectiva advinda da situação dos amantes, não deixa de ser conservador ao abrir espaço para o happy-end. O faz através da bela canção em que marido e mulher cantam a exemplo de Geneviéve e Guy, em “Os Guarda-Chuvas do Amor”, enquanto o automóvel gira pela rodovia cercada pela neve. Estabelece-se uma espécie de perdão, dada à compreensão do marido sobre a situação do amante, que não o ameaça. Em algum momento, a vingança se tornará apenas um capricho.
Esta saída, das mais interessantes numa relação amorosa, desnorteia, pois a reação dele era das mais plausíveis. Sente-se traído e tenta evitar a perda da mulher até certo ponto. Depois tudo poderá se arrumar. É como se tudo se passasse numa noite e, no final, cada um retomasse o seu lugar na vida do outro. Ocorre que algo de Yeon ficou para trás e a notícia que vem a seguir o confirma, assim como a ameaça deixou de existir. A música de Myung-Yong Kim, usada por Ki-Duk, introduz referências, torna-se parte da narrativa. Indica, divide, comenta, para completar não estados de espírito, sim as lacunas que a narrativa deixa abertas. O olhar de Chang Chen imóvel diante de Yeon enquanto ouve a canção que ela entoa diz muito sobre a ausência de perspectiva que se abate sobre ele. Sua reação tem muito a ver com o futuro, a possibilidade de uma vida a dois que jamais é posta. Não há futuro para ele e para ela isto não tem a menor importância, ainda que nada falem um para o outro.
Nesta ausência de projetos; comum entre os amantes, está o bom achado de Ki-Duk. Ambos estão condenados, como todos numa sociedade em que o consumo e o instante ditam rumos à vida, então por que tecer loas ao futuro ou trocar juras de amor, se nenhum espaço há para a convivência a dois para além das frias paredes de uma prisão? Os tempos atuais pelas lentes da câmera imóvel de Ki-Duk não deixam alternativas. Quando muito repetindo estrofes da canção-fantasia em meio à neve; de uma forma ou de outra completando o isolamento da cela onde Yang Jin vê negada a lembrança, a emoção, o desejo, o mundo exterior, pois o espaço está tomado pela frieza e a espectrante presença da morte, e qualquer ilusão é mero escapismo. “Fôlego” torna-se assim o filme que mescla realidade e fantasia permeadas por encenação, psicologia, filosofia e, por que não, sobre as relações amorosas no mundo globalizado.
“Fôlego” (“Soom”). Drama. Córiea do Sul, 2007, 84 minutos. Fotografia: Yang-Moo Sung. Música: Myung-Jon Kim. Roteiro/direção: Kim Ki-=Duk. Elenco: Chen Chang, Jung-woo Há, Ji-a-Park.