Getúlio Vargas, saindo da vida para entrar na história

A “substituição de importações”, o crescimento econômico sustentado pela ação estatal com distribuição de renda, a ampliação e a consolidação de direitos trabalhistas e sociais, tudo isto aparece na História como uma “doação” de Getúlio Vargas.

Para nós historiadores, que pesquisamos e nos interessamos pela chamada Era Vargas, sabemos que a propaganda política e ideológica, sobretudo do Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, construiu esta imagem positiva de Vargas. Mais ainda, especialmente durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), as vezes se deixas d elado que Getúlio comandou a repressão tendo na linha de frente o famigerado Felinto Müller, o mesmo que entregou Olga Benario para a Gestapo e reprimiu com terrorismo de Estado os movimentos sociais e políticos de oposição ao governo.

Porém, apenas a repressão ideológica, a cooptação política e a repressão policial foram a tônica de determinada historiografia. Tal produção foi muito importante, mas teimou em perceber que nenhum governo se mantém tanto tempo apenas por propaganda e ação violenta de qualquer polícia política. A origem da posição intelectual, especialmente desenvolvida pela sociologia da Universidade de São Paulo (USP), e que tanta força de opinião ganhou até em boa parte dos livros didáticos de História, caracterizando Getúlio Vargas apenas como “populista”, “maquiavélico” e “manipulador” nasceu do discurso liberal e conservador da União Democrática Nacional (UDN), se fortalecendo com a elaboração acadêmica, mas há tempos se mostrou insuficiente para entendermos o legado varguista.

Primeiro, porque os direitos trabalhistas e sociais vinham sendo reivindicados por trabalhadores brasileiros desde o século 19. Após 1930, iniciou um governo que, além da repressão, foi sensível à parte destas demandas. Foram os mesmos trabalhadores que diante da eminente deposição de Getúlio, em 1945, foram para a rua pedir “Queremos Getúlio!”, inaugurando o Queremismo, base social de onde sairá a idéia para a criação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), reforçando este movimento político, o trabalhismo.

Trabalhismo. Certamente este é o conceito que mais ajuda explicar um tipo de orientação política que nunca visou destruir o Estado burguês, como na tradição anarquista e comunista, mas vê no Estado a possibilidade de conquista de direitos e a garantia de reformas econômicas, associado a uma redução das desigualdades sociais e regionais, através da eficiência na aplicação dos recursos para investimentos, sobretudo nas áreas de educação, assistência social, habitação e obras de infra-estrutura.

O segundo Governo Vargas (1951-1954), iniciado pela maior votação até então de um presidente, trouxe Getúlio ao Palácio do Catete nos “braços do povo”, aprofundando as diretrizes elencadas acima. No Brasil Republicano, de tímidas conquistas históricas para o proletariado, esta perspectiva sempre foi intolerável para os setores mais reacionários de nossas classes dominantes. Estas, sequer aceitam historicamente as discutíveis teses de menos subserviência ao imperialismo, mesmo que não projetando o rompimento com o capital estrangeiro, visando o “desenvolvimento nacional” e a “harmonia social”, princípios defendidos pelo varguismo e por seus seguidores trabalhistas como João Goulart, Leonel Brizola, Alberto Pasqualini e Fernando Ferrari. Aqui está a razão política fundamental do ataque a Vargas no início da década de 1950, a qual levará Vargas ao suicídio, bem como está a explicação central para a oposição ao governo de Jango e que levará a coalizão conservadora civil e militar, nacional e internacional a efetivar o Golpe de 1964 e levar o Brasil para 21 anos de Ditadura.

Os liberais conservadores do Brasil, sobretudo de São Paulo e sua Avenida Paulista, assim como seus ideólogos, derrotados em 1930, 1932 e em 1954 com o suicídio de Vargas, nunca toleraram a representação política popular sequer de um governo reformista. Não foi diferente com Vargas, não é na atualidade.

A ampla frente de apoio a Getúlio Vargas, construída por coerção e consenso, elaborou um discurso político hegemônico fundamentado na lógica da integração social entre os indivíduos e as diferentes classes sociais. Porém, com todos os seus limites históricos, cada vez que a harmonia social colocou em xeque a dominação de frações de classe dominante mais retrógrada e conservadora e avançou para a diminuição da taxa de exploração dos trabalhadores, a solução foi a quebra dos projetos em curso: em 1954, com o reacionarismo udenista que só não se efetivou em corte constitucional devido ao suicídio de Vargas; em 1964, com o Golpe Civil-Militar que recolocou o Brasil na divisão internacional do trabalho, submetido ao domínio geopolítico norte-americano. Nestes momentos, qualquer avanço que englobasse, através de um projeto nacional, os setores sociais menos favorecidos, fez com que a classe dominante, baseada no latifúndio e com posição de sócia minoritária do capital financeiro, optasse pela quebra da ordem democrática.

O problema é que nossas classes dominantes sequer têm aceitado pequenas mudanças como as limitadas políticas sociais e uma maior diversidade nas relações comerciais internacionais, mesmo que sustentadas por um superávit primário além daqueles exigidos pelos organismos internacionais, além de uma política de juros que ainda soma fabulosos lucros ao capital rentista e financeiro.

Penso que isto explica em boa parte o amor e o ódio de setores sociais brasileiros ao enigmático, popular e controverso Getúlio Vargas, mesmo depois de 60 anos de sua morte. Efetivamente, com o suicídio de Vargas em 1954, ele saiu da vida para entrar e se perpetuar na História, muito mais do que como um mito. E isto tem se dado em nosso processo histórico e social cotidiano, não apenas nas datas redondas das efemérides! As eleições de 2014 que o digam e como nos ensinou Rosa Luxemburgo, reforma e revolução não são opostos absolutamente irreconciliáveis! Fazem parte da luta de classes!

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