“Gigante”: Dando voz a seres invisíveis

Com narrativa simples, diretor uruguaio Adríán Bíniez revela o universo dos trabalhadores noturnos de um supermercado de Montevidéu, dando voz e visibilidade àqueles que raramente têm vez no cinema.

A câmara, onipresente na vida dos cidadãos modernos, assume caráter menos assustador em “Gigante”, obra do uruguaio Adrián Bíniez. Através do circuito interno de segurança, o controlador Jara (Horácio Camandulle) vigia as ações de faxineiras, marcadores de preços, controladores de estoque e dos próprios colegas de serviço num supermercado na periferia de Montevidéu, Uruguai. É um trabalho sem maiores exigências, em que a atenção excessiva acaba se concentrando nas fragilidades, manias e deslizes de trabalhadores comuns. Um universo, portanto, de pequenas ambições, limitados horizontes e demasiada pressão para recompensas quase inexistentes. Ali, numa reduzida sala, diante de vários monitores, ele faz a câmera passear pelos corredores, gôndolas, produtos, escadas, pátios, estoques para zelar pelo patrimônio de seus invisíveis patrões. Regras, horários, códigos, controlados pelas chefias limitam suas potencialidades e dos demais trabalhadores.

Sob este ângulo, “Gigante” pode ser visto como um estudo sobre o controle do trabalho pelo capital. Nada ali ocorre sem que as imagens revelem as fraquezas, descuidos e relações entre os empregados. Mesmo que, em determinado momento, uma greve esteja em gestação, articulada no refeitório, nos cantos e nos corredores do supermercado. Há sempre uma forma de burlar a presença da câmera, portanto fugir à vigilância imposta pelas técnicas modernas de controle do empregado em seu local de trabalho e para além dele. Mas, o filme une estas vertentes à outra, central; a da descoberta de que a câmera pode desnudar interesses amorosos, paixões furtivas e controversas. E, a partir daí, fundi-las de tal modo que o espectador se veja atraído por este rico universo, criado pela narrativa de Bíniez.

Jara descobre Júlia vigiando suas ações

Ele o faz a partir da história de Jara, um gigante de quase dois metros de altura, e sua descoberta do amor. Solitário, trabalhador à noite no supermercado e num clube noturno, ele limita sua vida a dormir, ver televisão e jogar videogame com o sobrinho, Matias. Uma existência monótona, sem maiores atrações até que a câmera o atraia para o mundo de Julia (Leonor Svarcas). Ela está sempre trombando com as montanhas de enlatados, pacotes de farináceos, sendo frequentemente repreendida pelo gerente de estoque. Ele se demora nela, usa os recursos da câmera para aproximar-se dela, vê-la em diversos ângulos e ir, assim, desvendo aquele ser aparentemente distante dele. Então, dá-se o inusitado, a atração platônica se transforma numa tentativa de descoberta do universo – literal- da moça. Jara transforma sua tarefa de vigiar as ações dos empregados no supermercado numa busca insistente do “eu” da estranha Júlia. E Bíniez, desta forma, amplia a visão do espectador sobre a vida de seres ignorados em seu cotidiano e em sua vida particular.

É como se ele lhe dissesse: por trás daquele uniforme, daquela pessoa que exerce uma tarefa aparentemente sem importância aos olhos da elite, existe um ser humano cheio de vida, de interesses comuns com aqueles que, muitas vezes, os ignoram. Jara vai descobrindo-o – e o expectador também – que a faxineira Julia está sintonizada com o planeta, via internet, com as exigências físicas, corporais, com o olhar em volta, através do cinema e que também é desejada. Os seres invisíveis, perdidos na multidão, ganham visibilidade através da câmera de Bíniez, não por meio do circuito interno de segurança, simplesmente na rua, em meio à ebulição da vida. E, além disso, contribui para o despertar de Jara, entregue apenas a seu trabalho, ignorando as contradições de classe à sua volta, não tendo consciência de que também pertence a este mundo. A busca pelo conhecimento de Julia irá ajudá-lo a revelar-se a si próprio.

Montevidéu é pouco vista no cinema

Não que Jara seja um mau caráter, policialesco, patronal, truculento – pelo contrário, ele é suave até que algo se interponha entre ele e seu objeto de desejo. Às vezes é solidário, como nas vezes em que flagra uma das faxineiras escondendo biscoito no carinho de lixo, ou quando usa a informação televisiva para colocar o pescoço do colega segurança no lugar. Ele age com desinteresse – é como apenas estivesse ali. Sabe ser parceiro ao estar com o sobrinho Matias – um implica com o outro, trocam palavrão, gostam da companhia um do outro. Seu foco de interesse, no entanto, é Júlia. Em princípio apresentada por Bíniez à distância, com a câmera imóvel, salvo quando Jara move a do circuito interno de segurança, ele vai a aproximando à medida que Jará nela se concentra. Ela circula por Montevidéu, uma cidade pouco vista nas telas, que se parece com Porto Alegre – cheia de casarões antigos, mas também linkada ao mundo, com uma vida igualmente atribulada.

Há ainda certo clima decadente, de algo perdido, esvaziado, pelo clima criado por Bíniez, que se ocupa de personagens que vivem à noite e se mostram pouco à luz do dia. Talvez derive daí a lentidão de Jara, sua pouca energia para evadir-se. Ele só irá se modificar quando estiver em plena descoberta do universo de Júlia. E se contenta com pequenas recompensas – um souvenir, um objeto dela que ele recolhe na rua, uma intromissão indevida num caso amoroso dela, que o faz acabar num restaurante onde consegue as informações que necessita para alimentar sua paixão por ela. Desse modo, Jara vai desvendando-a, conhecendo-a, uma vez que não se atreve a dela se aproximar. Principalmente no supermercado, mais por timidez do que pelos obstáculos, que não são poucos. O que permite também a Bíniez repassar as fraquezas e idiossincrasias de colegas dele, tidos como sérios, mas que na penumbra revelam facetas inimagináveis.

Câmeras de circuito tolhem a liberdade

Não são descobertas feitas via câmera do circuito interno, são extensões de sua procura de Julia, enquanto a estrutura ao seu redor se desmonta. A aparente tranquilidade do ambiente de trabalho no supermercado revela-se depois um vulcão prestes a entrar em erupção. Bíniez mostra-o surgir em pequenas cenas, em diálogos curtos, dado que a vigilância férrea exercida sobre os trabalhadores não lhes permite dialogar, discutir seus interesses, formular suas propostas à luz do dia, ou em seus turnos de trabalho à noite. Tudo ocorre através das câmeras – elas têm um papel ali: são os olhos onipresentes dos patrões. Elas podem também retratar situações mórbidas, reflexos da solidão e da impotência como o fez Hitchcock em “Janela Indiscreta”; uma forma de controlar a vida da oposição num regime político, vista em “A Vida dos Outros”, ou para demonstrar a falência do sistema de segurança e, por extensão, do Estado burguês, que, incapaz de garantir a liberdade de movimento do cidadão, passa sua responsabilidade para as câmeras de circuito interno e gera mais insegurança.

Elas, enfim, tolhem o contato entre as pessoas nas ruas ou nos circuitos internos, evitam que elas se vejam como seres da mesma dimensão, as levam a temer umas às outras, fazendo com que cada colega de trabalho seja visto como delator e fazem ainda com que todas as pessoas se sintam vigiadas. A ponto de estarem sempre olhando para cima e para o alto dos postes. A paranóia se instala. Quando Jara usa-as para se aproximar de Júlia, ele jamais se apresenta a ela. Acostumou-se ao furtivo, ao proibido, ao distanciado. A câmera de Bíniez nas primeiras sequências se fixa nele, mostra seu espaço e seus movimentos, a ponto de o espectador se sentir próximo dele – revela-o simpático, até. Depois, quando ele saia em busca do “enigma Júlia” – os planos são abertos, Bíniez a mostra em meio à multidão, ao tráfego, em ambientes fechados, íntimos, iguais ao encontro dela no restaurante com seu pretende, e na academia de ginástica. Desnuda, assim, o ambiente em que ela vive como o havia feito com o próprio Jara.

Bíniez usa narrativa sem pirotecnias

De qualquer forma, o universo dela é muito mais rico do que o dele. Ela quer se expandir; encontrar saídas, ele se fecha, uma ostra escondida no fundo do oceano – sem saber ela o faz vir à tona. Até chegar ao desfecho, sem apressamento, que se encaixa na estrutura da trama com suavidade. Sem efusividade alguma – um dos mais belos fechos narrativos vistos no cinema nos últimos anos. Bíniez o consegue por ter conduzido a narrativa sem grandes pirotecnias – sua câmera se move apenas o necessário, as sequências se sucedem sem atropelos, sua decantação de cena é calma e a exposição clara. A ação se dá dentro da cena, com os naturais subtextos, como os já apontados – as vertentes que se abrem para expor o conteúdo. Não é à toa que foi premiado com o Urso de Prata no Festival de Berlim. “Gigante” trata do mundo dos trabalhadores invisíveis, faxineiros, etiquetadores, repositores de estoque e controladores de circuito interno de segurança. Seres jamais notados mesmo quando estão à vista de qualquer pessoa nos mais diversos ambientes – e não só o de trabalho.

Bíniez os mostra com humor, engrandecendo seu trabalho, suas boas ações – Jara convencendo à faxineira a devolver o que apanhara furtivamente -, e suas contradições. E permite, sobretudo, a Montevidéu entrar no imaginário do espectador através de uma bela obra de arte, que diverte e o põe em contato com seres humildes aos quais poderá prestar atenção dali pra frente, ao invés de olhar através deles sem jamais os ver. Um grato estudo sobre “seres invisíveis”, numa época em que o cinema moderno, por questões mercadológicas e ideológicas, retrata mais os universos da classe média e da pequena burguesia. E raramente se debruça sobre os problemas atuais da classe trabalhadora. Nas praias de Montevidéu, longe de Punta Del Este, onde apenas os remediados e os ricos se refestelam, Jara e Júlia se encontram e não é para lamentar as agruras da vida e a ingratidão de seu patrão – ali eles são dois seres humanos que passam a se ver longe das câmeras de circuito interno que só existem para lhes tolher a liberdade.

“Gigante” (“Gigante”). Drama romântico. Uruguai. 2009. 90 minutos. Roteiro/direção: Adrián Bíniez. Elenco: Horácio Camandulle, Leonor Svarcas.

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