“Gomorra”: A máfia sem glamour

A Camorra denunciada pelo jornalista Roberto Saviano em reportagem-denúncia é uma organização que se transformou numa gigantesca hidra ao descentralizar suas ações. O filme do diretor italiano Matteo Garrone a trata de forma crua, destituída do glamour do

Brindado pela polêmica gerada pelo livro-reportagem, “Gomorra”, do jornalista italiano Roberto Saviano, seu compatriota Matteo Garrone segue a rota dos filmes-denúncia cuja matéria-prima é a realidade imediata. Ao adaptá-lo para o cinema usa as inúmeras teias que lhe permitem mostrar como atua a Camorra, a máfia que domina a vida do baixo-proletariado das regiões de Nápoles e da Campanha. Mas também se estende à vários segmentos da sociedade italiana, diversos países europeus, à China e, segundo consta, à América Latina e, inclusive, o Brasil. Faz, assim, uma espécie de compacto para mostrar ao espectador até onde vão os tentáculos de uma organização que herdou o modus operandi das várias famiglias em que se desdobraram as máfias desde a Idade Média. Nada original, portanto, da violência, da imposição, da coerção mantida à base do terror. Diferente mesmo é a forma desglamourizada com que Garrone montou a caleidoscópica atuação da Camorra, com uma multiplicidade de centros, personagens, situações, que não se prendem a centro algum.
                     


 


Num vai-e-vem por corredores sombrios, vãos livres tomados pela água, apertados cômodos, ruas tomadas por jovens, seus aviõezinhos, cobradores, executores e consumidores se movem agitados. Nenhum deles parece se ligar a outros centros, até que surgem os chefes que lhes dão rumo. O adolescente Totó que inicia seu trabalho tendo que se confrontar com outros garotos, já veteranos na mesma teia; o cobrador Dom Ciro, sem a auréola de respeito com que o cinema se acostumou a tratar os “dons”, é sempre visto pagando aos distribuidores da droga; o alfaiate Pasquale, especialista em ceder moldes para os chineses copiarem suas criações e as vender na própria Europa, depois de requentá-las na China; o empresário Franco, disposto a encontrar terrenos baldios para enterrar lixo tóxico e principalmente a dupla de jovens trapalhões que ousam desafiar os chefões, querendo ser autônoma, em plena globalização do crime organizado. São estes personagens que se transformam em pontas do enorme calidoscópio montado pela dupla Saviano, roteirista, Garrone, diretor.


                     


 


Filme tem vários centros de ação e personagens


                   


 


As demais ações se interpenetram; se deslocam para outros centros, sem que se possa dizer o que as move. E, ainda que se possa dizer que se ligam a vários chefes, elas reforçam a idéia de que a Camorra é uma organização descentralizada. Em seus vários ramos, ela busca ampliar sua atuação, de forma a não se deixar ver, identificar o seu centro principal. Ilustrativo desse seu comportamento é a maneira como usa Pasquale para supervisionar a confecção de vestidos pelos imigrantes chineses. Ele os orienta; sem poder se valer de sua criação, identificá-la e dela valer-se: torna-se apenas um parafuso na gigantesca estrutura produtiva fashion. Uma cena apenas o faz entender como isto se dá: ele vê na TV a superstar Scarlett Johansson num belo vestido abacate, sob holofotes, ser elogiada por sua beleza e sofisticação. Nada pode fazer, senão encolher-se diante da obscuridade em que tem de se manter.
                         


 


Ele pode tudo, menos identificar o nome que permite à sua criação brilhar nas passarelas e tapetes vermelhos das grandes vitrines e eventos internacionais. A produção em série, numa contradição, cumpre o papel de manter anônimo o exército de costureiras e alfaiates por detrás daquela criação. E garante o acesso de milhões de consumidoras mundo afora àquele modelo, dando-lhes a sensação de que estão sob o mesmo holofote que a bela Johansson. Essa é, aliás, a justificativa dada por Franco a Roberto, aprendiz de maquinações, quando este lhe diz que não queria mais fazer parte da “Organização”. “Reclama de quê? Sou eu que com meu trabalho dou emprego à milhões deles”, contrapõe ele, referindo-se ao baixo proletariado italiano. Cinismo, escárnio, manipulação, afloram nesta frase, embora o resultado seja o enfileirar de centenas de cadáveres. Mas é esta a idéia que a Camorra pretende dar de “seus negócios”. E desvenda, ainda, a gigantesca estrutura usada para cumprir o ciclo de criação, produção, distribuição e venda. Igual à montada para transportar, armazenar, acondicionar em terrenos baldios, os tonéis com lixo tóxico.


                        


 


Saviano e Garrone tiram o glamour dos chefões mafiosos


                        


 


Até isto acontecer, vê-se apenas o navio, a rápida conversa com o comandante da embarcação e depois as profundas escavações em antigas pedreiras ou terrenos abandonados, onde caminhões gigantes, lotados de tonéis, os despejam para serem enterrados. O que, sem dúvida, atesta o quanto de risco oculto existe em áreas tidas como seguras. Mas também comprova  a falta de controle do fluxo desse tipo de material, que pode causar catástrofes iguais à do céssio, em Goiás, anos atrás. A população fica, desta forma, “protegida” por leis burladas com a conivência ou não de quem deveria tratar o despejo desse material como de responsabilidade do Estado, para dizer o mínimo. Enquanto isto não ocorre, estas perigosas teias se deslocam sem qualquer obstáculo, outras ações da Camorra surgem com menos impacto. Parecem ficcionadas, ou seja, viraram clichês, calcados notadamente em “Cidade de Deus”, que tratou do universo adolescente centrado no crime organizado. Principalmente ao introduzir Totó deslocando-se pelos corredores e ruas, e entrando em cômodos tomados pelas sombras.  Devido a isto, por mais que Garrone tente se afastar da repetição, a contundência da denúncia se esvazia.
                        


 


Menos pela situação em si, mais pela constância com que foi mostrada. Totó é o aviãozinho principiante que terá de mostrar a si, aos outros garotos e a seus “chefes” o quanto pode servir à “Organização”. Mesmo dilema enfrentado por Dom Ciro, quando explode a guerra entre os vários centros da Camorra. Desmonta-se todo o arcabouço criado por este gênero de filme – o “filme de máfia” -, desde o também italiano “Condenados pela Máfia”, em que há o cappo-de-tutti-cappo a ser eliminado, até o “O Poderoso Chefão I, II e III”, que glamourizou o universo do crime organizado, identificando-o com uma empresa capitalista. Inexiste em “Gomorra” este universo. Inclusive a omerttá, a honra do cappo e seus “fiéis”, a fidelidade à organização e a vingança pela vingança. A Camorra, pelo que dizem Saviano e Garrone, soterrou esta construção, substituindo-a pela descentralização e a busca do lucro, pois tudo agora gira em torno do negócio. Quando seus vários segmentos entram em conflito nem se fala no famigerado conselho, visto no “O Poderoso Chefão I”. O cappo do grupo atingido quer apenas acertar contas à sua maneira, semelhante a seus congêneres nos morros cariocas, para eliminar a concorrência.


                       


 


Códigos e rituais da Máfia inexistem na Camorra
                         
                        


 


Aliás, nenhum deles surge usando a terminologia costumeira da Máfia. Fala-se apenas em negócio, execução, recebimento de conta. Quando Dom Ciro recebe a missão de pagar o repassador da droga tem de fazê-lo. Mesmo que lhe custe a vida. Ritual algum aparece. Tudo é cru, descarnado, sem glamour nenhum. Tampouco o filme segue um modelo narrativo que permita ao espectador se identificar com determinado personagem. Todos são igualmente odiosos. Têm pregado na face tanto a imagem de algoz quanto a de vítima. Os dois jovens que começam ligados a um dos elos da Camorra e depois se desgarram, são trapalhões. Ingênuos, eles querem se valer da estrutura para permanecer à margem, lucrando como autônomos. Coisa difícil de acontecer dada à astúcia e à brutalidade com que podem ser tratados pela “Organização”. Entende-se o porquê do temor que se tem da Camorra. Pouco importa sua multiplicidade de interesses em vários cantos do mundo; ela é uma das vertentes da Máfia emergida na Idade Média, para a qual sua segurança é mantida pela insegurança dos outros.
                           


 


É, por outro lado, uma vertente dos negócios, estruturados à margem do mercado. Tem a ação subterrânea, sustentada pela fechada legal, sem as regalias do chamado risco do mercado. Portanto sem a áurea teleológica das manipulações predatórias de Wall Street, magnificadas pelas artimanhas de Bernard Madoff, cuja pirâmide especulativa deu um tombo de U$ 59 bilhões nos chamados “investidores” globais. Enquanto a estrutura financeira globalizada torrou em poucos dias cerca de U$ 30 trilhões nos quatro cantos do planeta. Guardadas as devidas fachadas legais/ilegais os danos de ambos são igualmente perniciosos, com a diferença de que os calotes bancários são vistos como desvios do mercado. Ambos, no entanto, frustram sonhos e podam empregos de milhões de trabalhadores no mundo inteiro. Enquanto estes permanecem em amplas salas ar condicionado, os mafiosos da Camorra (e de suas congêneres) se aglomeram em estreitos cômodos em manga de camisa, deglutindo pedaços de frango, tratando igualmente de negócios. E não alimentam desencontradas teorias e exercícios econômicos, pelo contrário, tentam dominar seu segmento de negócio fazendo crescer o número de cadáveres, como forma de concentrar poder, enquanto os demais o fazem concentrando vastos segmentos do mercado nas mãos de diminuto grupo de conglomerados.
                           


 


Essa dimensão que lhes dão a dupla Saviano/Garrone, somada à forma direta e sem meios tons com que desvenda a “Organização”, retomam o caminho do antigo cinema-verdade. Fazer um cinema que se centre no que está sob escombros, retire dele os adornos e o mostre ao público. A câmera está a serviço do imediato, do urgente, do que é preciso expor. Em dado momento, ela se abre em “Gomorra” e flagra o espaço onde a ação se dá. Os personagens, a maioria sem rosto, se locomove em gigantescos prédios, com centenas de apartamentos, construídos para o baixo-proletariado. Este vive ali sem poder evadir, tentar, como Roberto, alternativas outras de vida. Pelo contrário, são obrigados a se confinar em diminutos cômodos, se mover por corredores e vãos livres tomados por poças d´água. Espaços que criam as condições ideais para os negócios da Camorra e de outras máfias, idênticas às das favelas do Rio de Janeiro e de outros centros urbanos, planeta afora.


                           


 


Estrutura capitalista cria espaços para camorras


                           


 


A câmera de Garrone se detém inúmeras vezes neste espaço, tornando-o personagem do filme. Nele se vê a ação da “Organização”, a guerra de seus segmentos, a execução dos inimigos, a confraternização das famílias que conseguem levar a vida adiante nestas arriscadas condições e o fim trágico de quem ousa se opor ao status quo. E se tem, assim, a contextualização dos entrechos, o olhar político do filme. Sombrio, centrado na pura ação, sem dramatizar ou opor os maus aos “bons”, porquanto estes não existem no cotidiano da “Organização”, e mostrando a multiplicidade de “negócios” aos quais ela se dedica. Alguém, acostumado a ter um centro a seguir, com ação bem delimitada, poderá estranhar o vai-e-vem de “Gomorra”, diferente do filme coral de Altman e Iñarritu, que amarram os fios a uma estrutura e daí tecem sua história; nada disso acontece nesta longa reportagem de Saviano, agora filme de Garrone.
                         


 


Os entrechos ajudam a estruturar o pesadelo criado pelas situações vividas pelas populações das regiões de Nápoles e da Campanha. Por momentos predomina o clima aterrorizante mantido por Robert Ludlum, em seu livro “O Círculo Matarese”. Paira no ar o cheiro de sangue, o odor de cadáveres e a incerteza sobre a capacidade da estrutura capitalista atual, enfiada em todo tipo de crise, de dar conta de mais este impasse. A dupla Saviano/Garrone não aponta solução alguma, tão só expõe os males que ela, a estrutura capitalista, impõe. Como Totó, ao ser pressionado para ser um camorrista, reforça a idéia de que o futuro dos que são obrigados, pelas circunstâncias, a optar por ser um deles, é adiar qualquer decisão até que o impasse seja rompido. Difícil é dizer quando e em que circunstâncias (de novo) isto se dará. “Gomorra”, com seus tons sombrios pelo menos expõe as dificuldades de se tomar uma atitude.


 


 


“Gomorra”. (“Gomorrah”). Drama. Itália. 2008. 137 minutos. Fotografia: Marco Onorato.Roteiro: Roberto Saviano, baseado em seu livro homônimo. Direção: Matteo Garrone.  Elenco: Salvatore Abruzzes, Simone Sacchettino, Salvatore Ruocco, Vicenzo Fabricino.


 


(*) Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2008.

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