Governo Lula: o “mensalama” e o “mar de lama”

A referência do candidato direitista à Presidência da República, Geraldo Alckmin, ao termo ''mensalama'' para caracterizar mais um tsunami contra o governo Lula lembra o ''mar de lama'' de outrora.

À falta de melhor cobertura para a nova fase da farsa sobre o “combate à corrupção”, alimentada pela oposição, a “grande imprensa” recorre ao atentado contra Carlos Lacerda, durante o segundo governo do presidente Getúlio Vargas, para buscar semelhança com o episódio do dossiê contra os tucanos. A comparação, advogada por gente como Fernando Gabeira e Lúcia Hipólito, é claramente indevida. Mas a lembrança do fato pode esclarecer muita coisa. Ela se soma ao recente lamento de Fernando Henrique Cardoso (FHC) sobre a falta de um Carlos Lacerda na atual conjuntura. Aqueles acontecimentos têm muito a ver com a realidade de hoje.


 


A síntese dessa índole golpista da direita foi bem demonstrada em editorial do Jornal do Brasil (JB) do dia 20 de setembro, para o qual um eventual segundo mandato de Lula conviverá com o fantasma permanente do impeachment. O tom desrespeitoso ao presidente da República lembra ainda a campanha midiática da direita contra o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que resultou na frustrada tentativa de golpe em abril de 2002. Na ocasião, a “grande imprensa” brasileira saudou a deposição do presidente venezuelano como uma vitória da “democracia”. Não faz tempo, a entrada da Venezuela no Mercosul foi recebida por essa gente com hostilidade.



Tendência progressista
 
 
A tese era a de que os presidentes sul-americanos não vêem que Chávez quer usar o Mercosul para satisfazer a sua sede de influência política na região. A imprensa conservadora ouviu uma série de ''especialistas'' que apontaram o ingresso da Venezuela no Mercosul como um fator de “risco” para as relações da região com os Estados Unidos. O ex-embaixador do Brasil em Washington e membro da equipe que assessora o candidato Geraldo Alckmin, Rubens Barbosa, disse que Chávez “deve levar ao bloco uma série de assuntos que ninguém quer discutir, como as relações entre a Venezuela e os Estados Unidos”.



 
Outros analistas da mesma estirpe disseram que os líderes do Mercosul erram ao permitir a “ideologização” do bloco — como se essa pregação não fosse uma manifestação ideológica abertamente pró-Área de Livre Comércio das Américas (Alca). No estudo do comércio internacional, há sempre um ponto a partir do qual é possível contestar a tese de que o mercado é o conceito fundamental para explicar o sucesso ou o fracasso de um país: o papel do Estado. No caso da América Latina, esse papel está claramente em disputa. Essa pregação contra a decisão dos principais líderes do Mercosul de rejeitar a Alca mostra que os conservadores não desistem de usar qualquer pretexto para tentar frear a atual tendência progressista da região.



A reeleição de Lula representará um projeto decisivo para o sub-continente. Como diz o sábio Emir Sader, ''o neoliberalismo, que havia anunciado o fim da história, já tem história''. Pelo menos dois ciclos políticos – no longo ciclo de crise da economia mundial – já se cumpriram na região. O primeiro foi o lançamento do novo projeto hegemônico marcado pela condução anglo-saxã de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, com seus correspondentes latino-americanos (Augusto Pinochet, Carlos Menen, Carlos Salinas de Gortari, Alberto Fujimori, Andrés Perez e Fernando Collor). Depois, o modelo sofreu readequações, devido aos desgastes, e iniciou nova fase, novamente sob a condução anglo-saxã, desta vez com Bill Clinton e Tony Blair.
 
 
Defesa do golpe militar de 1964
 


Com a ascensão do grupo de George W. Bush ao poder nos Estados Unidos, uma eventual passagem para uma terceira etapa do processo de hegemonia neoliberal na América Latina começou a ser desenhada, mas ainda não encontrou uma forma definitiva. É isso, no fundo, o que está se passando no Brasil. A cruzada “moralista” da direita certamente evoluirá para outros pretextos bem ao gosto do seu figurino político. Lembremos que já na campanha das eleições presidenciais passada, quando José Serra era o candidato da direita, estabeleceu-se uma oposição nítida: idéias progressistas de um lado e conservadorismo desbragado de outro. Serra chegou a usar a proximidade de Lula com Chávez para prognosticar a “ingovernabilidade” do país.


 


O golpismo também era latente. A atriz Regina Duarte foi à TV pregar o “medo” e repetir Leonor de Barros – mulher do ex-governador Ademar de Barros -, que pelo rádio incitou a ''Marcha da Família com Deus pela Liberdade'' em defesa do golpe militar de 1964. Assim que Lula tomou posse, a direita começou sua campanha para desmoralizá-lo. O ''balanço'' do PSDB sobre os seis meses do novo governo era um manifesto histriônico e ficcionista. ''Na política econômica, ela (a tese da herança maldita) encobre o fato de que o governo não fez outra coisa nestes seis meses senão consertar o estrago causado na credibilidade do Brasil pela retórica incendiária do próprio PT”, dizia o panfleto tucano.
 
 
Golpe pró-Estados Unidos
 



Já naquela época era possível perceber que a principal característica do reinado de FHC persistia agora do outro lado do balcão: a arrogância. À retórica do medo, largamente utilizada pelo tucanato, se somava um indisfarçável preconceito social. Em outra passagem do ''balanço'', os tucanos diziam: ''Onde andavam os petistas enquanto o mundo e o Brasil mudavam a todo vapor entre a queda do muro de Berlim e as duas torres gêmeas de Nova York? Lula, rodando o país em campanha eleitoral permanente. Os sindicalistas, protestando e sofrendo o desgaste dos processos de reforma do Estado e reestruturação industrial (sic). A intelectualidade de esquerda, remoendo seu mal-estar com o colapso do socialismo real, o avanço da globalização capitalista e o marasmo da universidade.”



Mais adiante, a direita tentou levantar a bandeira do “hegemonismo petista”, falsificando vulgarmente as idéias do comunista italiano Antônio Gramsci, que seria uma forma de governar contrariando o “ideal republicano”. Com o fracasso dessa tática nas eleições municipais de 2004, a direita voltou a desfraldar a velha bandeira esfarrapada do combate à “corrupção” para tentar voltar ao poder. O “mensalama” de Geraldo Alckmin é a versão “moderna” do “mar de lama” com o qual a reação tentou afogar o governo do presidente Getúlio Vargas em 1954. O gesto do presidente, dando um tiro no peito e deixando a famosa carta denunciando o golpe de Estado pró-Estados Unidos em andamento, adiou a instauração da ditadura militar por dez anos.
 
Falsidades em grande escala
 
Em 1964 aconteceu o encontro da inflexão do histórico golpismo da elite brasileira com os acirramentos da geopolítica mundial. No centro da conjura estava a Escola Superior de Guerra, criada no berço da Guerra Fria, em 1949 — quando os interesses militares norte-americanos entraram com força no país. Na virada da década de 40 para a de 50, a ameaça de guerra era uma constante no cenário mundial. Para contrapor-se à agressiva política externa dos Estados Unidos, formou-se um amplo movimento democrático, tendo à frente a União Soviética.



Hoje, na América Latina a Venezuela cumpre esse papel democrático. Não pode haver cegueira quanto a isso. A luta política no Brasil se desenvolve não em torno de pessoas, de personalidades. É preciso observar as tendências, as orientações, as diretrizes de cada projeto para o país. Mais do que isso: é preciso enfrentar as táticas da direita, que conta com a poderosa “grande imprensa” para divulgar suas falsidades em grande escala. Nesse jogo, pode-se dizer que os monopólios de comunicação cumprem a mesma função do Sokaiya – o braço da máfia japonesa Yakusa que lida com a compra e a venda de informações.
 
Intrincada teia de relações
 
No Japão, a Yakusa foi usada pelas forças de ocupação norte-americanas para suprimir dirigentes políticos de esquerda. Processos similares aconteceram no Sudeste Asiático. Na década de 60, a tomada do poder pelo presidente Suharto na Indonésia foi a apoteose de um banho de sangue anticomunista que dizimou meio milhão de pessoas. Com a bênção de Washington e o financiamento de empresas locais, o regime de Suharto sobreviveu até recentemente. Na Tailândia, em Taiwan e na Coréia o que ocorreu não foi muito diferente. Até hoje há estreitas ligações entre os militares e as corporações empresarias – resquício do pacto anticomunista de outrora.
 
As eleições presidenciais deste ano no Brasil se inserem nessa tendência mundial de luta entre as forças patrióticas e a “globalização” neoliberal. Não é porque o bloco soviético não existe mais que os povos deixaram de lutar por suas soberanias. Está claro a esta altura por que a “grande imprensa” faz esse tipo de cobertura de acontecimentos que deveriam se restringir à esfera policial. Se ela fosse de fato livre, o foco deveria ser a notícia e não o estardalhaço. Por que não é assim? Porque isso quebraria a intrincada teia de relações entre corruptor, corrupto, trabalhos sujos, demandas atendidas, reclamantes silenciados, propina – tão comum no histórico da direita brasileira.



Missões delicadas e essenciais
 
 
De um lado, não é fácil nem simples jogar luz em trevas há muito intocadas, romper com o rito que toda a elite professa. De outro, essa harmonia política à direita, que garante à roda da pirâmide social continuar girando sem abalar o seu pico, é mais importante para a direita do que a verdade, a transparência, a racionalidade. Ou seja: esconder informações é uma forma de lidar com questões que, uma vez saídas das sombras, virariam navalha em suas próprias carnes. Por isso, a “grande imprensa” faz o papel daquele buldogue que cumpre missões delicadas e essenciais. Repare como hoje, no Brasil, ela  trata Lula a pedradas ou se refere a ele com escárnio.
 


Lula não é beócio. É, antes, brilhante, provavelmente um dos mais capazes entre todos os presidentes que o Brasil já teve desde o marechal Deodoro da Fonseca. Em nenhuma presidência, talvez com a exceção da “era Vargas”, se promoveu uma mudança tão positiva na vida brasileira como agora na gestão Lula. Fica claro, portanto, que há uma luta política que se move contra o programa de governo do presidente, bem como uma luta em favor de benefícios inaceitáveis para uma ínfima parcela da sociedade. A justificativa apregoada é a idéia, atribuída a Lula, de pretender perpetuar uma tendência política no poder. A verdadeira razão é a sua política de aproximação com as forças populares. Trata-se, em suma, de mais um episódio da guerra dos ricos contra os pobres – tão comum nessas bandas da Terra.


 

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