Hecatombe Econômica Chilena

Depois do Impecheament do Collor em 1992 alguns analistas cobravam a manutenção das reformas liberais introduzidas durante seu breve período. Estava subjacente a idéia que, embora o presidente fosse um corrupto e um fracasso na esfera política, seu legado

Afirmou-se que, apesar da sangrenta ditadura, os militares chilenos, aconselhados pelos economistas da Universidade de Chicago fizeram um bom trabalho na economia. Agora, após a morte do ditador, não param de pipocar insinuações do tipo: “uma tragédia na política, mas deixou um legado positivo na economia”. Neste caso, é impossível não lembrar a máxima nazista de que uma mentira repetida mil vezes se transforma em verdade.


 


O projeto econômico conduzido no Chile após a destituição do presidente Salvador Allende estava baseado na idéia radical de que o mercado deve ser o gerador e orientador do desenvolvimento econômico. Com essa noção colocou-se em prática uma série de reformas estruturais que transformaram radicalmente a economia chilena. Em primeiro lugar, a rápida redução da intervenção do Estado na economia que se materializou num acelerado processo de privatizações de empresas estatais e demissão de funcionários públicos nos mais diversos setores, incluídos serviços de saúde, educação e previdência. No curto prazo, a rápida diminuição do déficit público através de uma reforma tributária que aumentou os impostos e na diminuição dos gastos correntes do governo (1). A velocidade do processo de privatização é digna de nota: em setembro de 1973 o Estado chileno controlava 464 empresas, e quatro anos depois apenas 53 permaneciam sob controle estatal. (2)


 



No sistema financeiro, o governo militar implementou uma reforma que privatizou vários bancos estatizados durante o período Allende. Através da reforma, os bancos ficaram livres das regulamentações e puderam determinar livremente as taxas de juros cobradas. A liberalização financeira abriu o sistema chileno aos capitais externos, o que, pelos manuais dos Chicago´s boys, levaria a um sistema financeiro mais integrado, mais eficiente e, conseqüentemente, a equalização das taxas de juros internas e externas. Em relação ao comércio externo houve uma indiscriminada abertura comercial com a queda de impostos sobre produtos importados. Em junho 1979 praticamente todos os produtos importados tiveram uma tarifa fixada em 10%.


 



 No plano interno, ainda em 1973, o governo liberalizou todos os preços controlados em nome dos “mercados eficientes” e contra objetivos de redistribuição. É interessante que no caso dos salários não houve a confiança no mercado, mas o selvagem controle através da repressão estatal. Depois de uma queda no PIB de 12% em 1975, o Chile obteve crescimento acelerado até o início dos anos 1980. Entretanto, a diminuição do déficit público e o forte controle da oferta monetária não foram suficientes para controlar a inflação, que era diagnosticada como inflação de demanda. Mudou-se o enfoque, e se passou a falar em inflação de custo. O câmbio passou então a ser utilizado como instrumento antiinflacionário a partir de 1976, quando em 1979 a taxa de câmbio nominal foi congelada em 39 pesos por dólar e se manteve até 1982.


 



Os resultados econômicos e sociais para o Estado chileno foram extremamente perversos. A economia chilena entrou num processo de desindustrialização radical, justificada talvez por algum tipo de darwinismo vulgar aplicada ao sistema econômico, a ponto do Chile exportar máquinas não produzidas internamente em razão do fechamento de fábricas. A forte valorização do câmbio como forma de conter a inflação simplesmente quebrou a indústria nacional chilena.  Além disso, não houve convergência entre as taxas de juros interna e externa; as taxas de juros permaneceram elevadas dificultando os investimentos das médias e pequenas empresas, enquanto as maiores indústrias faziam empréstimos a juros menores no mercado externo (3). O capital externo atraído pela alta taxa de juros era direcionado principalmente para especulação financeira e o consumo interno.


 


 


A maior crise da história


 


 


O resultado dessa equação foi a pior crise da história do Chile. Em 1981, o país apresentou um déficit em conta corrente no balanço de pagamentos de 19% do PIB. Em junho de 1982 o câmbio foi drasticamente desvalorizado e o PIB chileno sofreu uma queda de 14,1%, um recorde desde a criação das contas nacionais do país. No ano seguinte o desemprego alcançou a marca de 34%. É importante lembrar que o Chile quebrou antes mesmo da crise da dívida externa latino-americana que se iniciou em setembro de 1982 com a moratória mexicana. Com a crise o governo chileno iniciou um processo de salvamento das grandes empresas e bancos que, ironicamente, reestatizou a dívida de curto prazo do setor privado como forma de evitar o completo esfacelamento do sistema financeiro do país.


 



Depois do desastre, o regime militar iniciou um programa de recuperação de longo prazo da economia bastante pragmático, com crescimento voltado para as exportações e com o cuidado de manter o equilíbrio nas contas externas. Houve um aumento das tarifas sobre importação e o câmbio foi manejado para garantir uma taxa real favorável às exportações (3). Como resultado, a forte desvalorização implicou em redistribuição de renda aos setores exportadores, no qual o Estado foi o grande beneficiário justamente através da exportação de cobre pela Codelco, mantida sobre controle estatal. Em todo o processo o Estado teve um papel decisivo.


 



Assim, a razão para se afirmar que a ditadura chilena logrou sucesso só pode surgir da idéia bastante genérica que o sucesso está na própria liberalização em si. Ou seja, parte-se do princípio fortemente ideológico a respeito das supostas vantagens da aplicação do projeto neoliberal. Ora, quando essa política foi realmente aplicada, o Chile enfrentou grandes oscilações no PIB, com quedas acentuadas em dois anos (1975 e 1982); sofreu forte desindustrialização, assistiu a redução da sua capacidade produtiva, alta taxa de desemprego e a fortíssima deterioração de vida da população. O Chile só consegiu melhorar sua posição quando adotou políticas pragmáticas, como a defesa de uma taxa de câmbio competitiva, taxa de juros baixa, rigorosa regulação do sistema financeiro e controle sobre fluxos de capitais que só foi abandonado no final da década de 1990.  


 


 
De qualquer forma, não é correto a suposta dicotomia entre resultados políticos e resultados econômicos da ditadura chilena. De fato, uma das causas da genocida repressão que caiu sobre o povo chileno foi exatamente o resultado do fracasso na área econômica. Segundo Hayek, figura bastante admirada por Pinochet (4), quando o mercado é deixado atuar livremente é natural que grande parte da sociedade sofra conseqüências negativas. Porém dizia Hayek,


 


“(…) não faz sentido descrever como justa ou injusta a forma pela qual o mercado distribui as coisas boas deste mundo entre as pessoas especificas. Mas esse é o objetivo da chamada justiça ‘social’ ou ‘distributiva’, em nome do qual a ordem jurídica liberal está sendo progressivamente destruída”. (4)


 


E a não aceitação dos efeitos perversos e a má distribuição das “coisas boas deste mundo” através do mercado, podem tornar a democracia incompatível com a ordem liberal proposta por Hayek (5).
Portanto, o modelo econômico chileno adotado pelo regime militar não pode servir de exemplo. Pinochet não merece qualquer crédito pelo sucesso econômico simplesmente porque não houve sucesso econômico. O que houve foi a destruição da economia nacional chilena.


 


(1) A DINA (policia secreta da ditadura), entre outras atribuições, combatia de forma bastante “eficiente” a sonegação de impostos.


 


(2) Cf. GATICA, Jaime e MIZALA, Alejandra (1990). Autoritarismo e ortodoxia econômica: Chile 1974-87. Revista de economia política. São Paulo: Brasiliense, vol. 10, nº 2.


 


(3) HIRSCHMAN, Albert (1996). “Sobre a Economia Política do Desenvolvimento Latino-Americano”, In: Auto-Subversão: Teorias Consagradas em Cheque. Companhia das Letras, São Paulo.


 


(4) Cf DAMILL, Mario et alii (1994). Shock Externo y Desequilibrio Fiscal. La Macroeconomía de América latina en los Ochenta. Los Casos de Argentina, Bolivia, Brasil, Colombia, Chile e México. Santiago, Cepal.


 


(5) HAYEK, Fredrich Von (1981). “Os Princípios de uma Ordem Social Liberal”. In CRESPIGNY, A., e CRONIN, J., Ideologias Políticas. Brasília, EDUnB.


 



(6) De acordo com Miguel Urbano Rodrigues (1998, p.20), “O profeta austríaco Friedrich Hayek, pai do neoliberalismo ortodoxo, ficou entusiasmado com o que viu ao visitar o Chile no final de 1977. O autor de O caminho da servidão aproveitou a oportunidade para reafirmar que a democracia deveria ter fronteiras bem traçadas e que a livre empresa é o único caminho para o bem estar e o progresso humano”. RODRIGUES, Miguel Urbano (1998). Chile, cobaia da globalização. Princípios, São Paulo, n.50.

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