Hora extra e exploração do trabalho no Brasil

O conteúdo básico e fundamental dos conflitos de classes característicos da sociedade burguesa provém da luta pela apropriação do tempo de trabalho empregado no processo de produção, que para o trabalhador é uma parcela relativamente grande do seu temp

O tempo de trabalho necessário é o tempo que o trabalhador emprega para produzir um valor equivalente à sua remuneração, na forma de salários e benefícios como ticket-refeição, cesta-básica, subsídio para plano de saúde e os direitos trabalhistas em geral. O trabalho que Marx considera necessário consome apenas uma fração da jornada de trabalho; outra porção, bem mais significativa hoje que no passado em função do avanço da produtividade e da depreciação da força de trabalho imposta pelo neoliberalismo, é o tempo no qual o trabalhador produz um valor superior à sua própria remuneração e que já não é mais, na concepção marxista, trabalho necessário e sim trabalho excedente, substância da mais-valia. Em primeira e última instância, é o valor excedente produzido no decorrer da jornada de trabalho que origina o lucro capitalista. Trata-se da única fonte real de todos os lucros, assumam esses a forma de juros, dividendos ou qualquer outra, embora isto não transpareça na superfície dos fenômenos econômicos e nas aparências enganadoras da chamada financeirização, em que o próprio
dinheiro parece gerar mais dinheiro.


 
Luta de classes



Em outros termos, o trabalho necessário corresponde ao tempo de trabalho apropriado pela classe trabalhadora (como salários e direitos), ao passo que quem se apropria do tempo de trabalho excedente (ou do lucro) é a classe dos capitalistas. Quanto maior o trabalho necessário como proporção da jornada total menor será o trabalho excedente e vice-versa. Desenvolvem-se, portanto, no jogo da produção capitalista, interesses sociais contraditórios e no fundo inconciliáveis: o capitalista, conforme observou Karl Marx, revela uma inesgotável avidez por trabalho excedente, fazendo do lucro a razão maior da sua existência, enquanto o trabalhador luta para reduzir e em interesse em eliminar esta parte ingrata da sua jornada de vida, que lhe rouba conforto, saúde, educação e lazer.



Este conflito básico, que desnuda a essência e os limites da economia
política burguesa, se manifesta nas batalhas por melhores salários, em
detrimento dos lucros capitalistas, assim como em inúmeras reivindicações sindicais e nas lutas mais gerais da classe trabalhadora em defesa dos direitos sociais (hoje alvo de um intenso bombardeio ideológico e político dos neoliberais). Foi o pano de fundo, por exemplo, das agitações que há pouco sacudiram a França e resultaram no sepultamento do Primeiro Contrato de Trabalho, que propunha a precarização do emprego da juventude.


 



Mas é nos dilemas envolvendo a jornada do trabalhador nas empresas que a contradição entre trabalho excedente e trabalho necessário ganha maior nitidez. É o caso das horas extras, tema de um livro lançado recentemente pela Central Única dos Trabalhadores (“Hora extra – o que a CUT tem a dizer sobre isto”). Trata-se de uma forma sutil de ampliar a jornada de trabalho além dos limites sugeridos pela legislação, o que significa ao mesmo tempo aumentar o tempo de trabalho excedente de forma a obter aquilo que o marxismo concebe como mais-valia absoluta (1)



Longas jornadas



Em função deste expediente, quando se discute a duração da jornada de
trabalho no Brasil e as propostas para reduzi-la é preciso estabelecer uma
distinção essencial entre a jornada legal e o tempo médio de trabalho efetivamente gasto no interior das empresas ou a jornada real. Na economia brasileira, a exemplo do que também ocorre em outros países, trabalha-se, em média, muito mais do que sugere a Constituição. A diferença está na hora extra. E isto não é de hoje. Jornadas longas, ampliadas pelas horas complementares permitidas pela legislação, foram “o verdadeiro motor do crescimento econômico brasileiro dos anos 1930 até os anos 1980”, de acordo com o sociólogo Sadi Dal Rosso, um dos maiores especialistas brasileiros no assunto (2).



Ao longo da sua história, a classe trabalhadora brasileira sempre lutou pela redução da jornada e foi assim que arrancou as 44 horas semanais,
estabelecidas na Carta Magna. Por seu turno, o empresariado nunca abriu mão da jornada longa e buscou anular esta conquista recorrendo às horas extras. Não se pode deixar de reconhecer que logrou êxito neste sentido. No início dos anos 1980 cerca de 25% dos assalariados brasileiros realizavam horas extras. Depois que a nova Constituição com a semana de trabalho reduzida em quatro horas foi promulgada, em outubro de 1988, a proporção aumentou para mais de 40%. Já em 2004, nada menos que 45,6% trabalharam “acima da jornada legal” (3).


 
Com isto, o limite constitucional de 44 horas semanais e 8 horas diárias,
embora em si e na comparação com padrões mais civilizados se revele
excessivo, é hoje ilusório para um grande número de categorias. Os
comerciários da Grande São Paulo realizavam uma jornada média de 48,2 horas semanais em 2004, segundo o Dieese.



Aprendendo com a própria experiência, o movimento sindical hoje associa a bandeira da redução da jornada à exigência de restrição e regulação mais rígida das horas extras, que infelizmente na CLT é objeto de ampla flexibilização. Reduzir jornada sem que se limite as horas extras pode ser como chover no molhado. Em contrapartida, reduzir hora extra significa efetivamente reduzir jornada
 


Efeitos perversos



A jornada extraordinária é apontada por muitos especialistas e também por operários e operárias que responderam uma pesquisa sobre o tema reproduzida no livro da CUT como uma relevante causa de doenças profissionais, donde se deduz que em médio e longo prazo é um fator que corrói a produtividade do trabalho nacional. Além disto, contribui de forma notória para o desemprego massivo, pois se não pudessem recorrer às horas extras os capitalistas teriam de contratar mais para manter o mesmo número de horas trabalhadas e, portanto, o volume e valor de produção de suas empresas. O economista Márcio Pochmann estima que 4,5 milhões de novos postos de trabalho seriam criados
no Brasil se as horas extras fossem eliminadas.



Deste modo, o ardil usado pelo capital para ampliar a jornada de trabalho ofende não só os interesses da classe trabalhadora como também os interesses mais gerais da sociedade, visto que, ao longo do tempo, compromete a saúde do trabalhador, tende a reduzir a produtividade e elevar o nível de desemprego. Ao induzir o empregado a trabalhar além do tempo contratado, o capitalista deixa de arcar com os custos provenientes de uma nova admissão (sobretudo encargos e direitos sociais) e aumenta a margem de lucros, apesar de pagar um adicional na hora extra.



Ao aceitar pagar um valor adicional (que pode chegar a 200% através de
acordo coletivo, como ocorre na construção civil de São Paulo), o empresário revela sem querer que está pagando muito pouco aos seus trabalhadores e que mesmo triplicando o salário/hora (como no caso citado) ainda retira um excedente (ou lucro) do valor produzido pelo operário. Fica patente, neste exemplo, o fato de que o trabalho excedente, apropriado pelo capital, é substancialmente maior que o tempo de trabalho necessário, revertido para quem realmente produz, numa prova (a mais) da super exploração do trabalho no Brasil. Na França, onde a remuneração da força de trabalho é relativamente bem maior, o adicional de hora extra não passa de 25%.



Círculo vicioso



Contudo, é preciso reconhecer que hora extra não é uma discussão fácil para o movimento sindical, pois o capitalista joga com os interesses individuais imediatistas do trabalhador na realização das horas extras para ampliar a jornada de trabalho, o que traduz o caráter perverso de tal expediente.



Embora não seja do seu agrado, o trabalhador é impelido a realizar hora
extra em função dos baixos salários, decorrendo disto uma contradição entre os seus interesses imediatos e individuais com os seus próprios objetivos no plano da saúde e os interesses coletivos ou da classe em seu conjunto. No período que registra o crescimento das horas suplementares na economia nacional verificou-se concomitantemente um notável arrocho dos salários e da renda do trabalho. A participação relativa dos salários no PIB declinou de mais de 45,7% em 1990 para 36,14% em 2002, de acordo com estatísticas do IBGE. Isto não ocorreu em função de uma suposta queda da produtividade do trabalho ou do valor da produção, que não deixaram de crescer no período.



Concomitantemente, verificou-se uma expansão extraordinária da participação relativa dos lucros no produto (de 32,56% para 41,93%), assim como dos impostos (de 15,15% para 17,36%), que em boa medida são redistribuídos pelo Estado em benefício do capital financeiro. O arrocho dos salários aliou-se ao propósito patronal de neutralizar e reverter a redução da jornada.


 
Por esta e outras razões, a abordagem isolada do problema por parte dos sindicatos nas campanhas salariais deixa (e muito) a desejar (4). Cabe acrescentar que o hábito da hora extra se torna um empecilho à valorização dos salários na medida em que contribui para a manutenção de um alto nível de desemprego, configurando um círculo vicioso (o baixo salário induz à hora extra, que por sua vez conspira contra a recuperação dos salários reais).



A coibição da jornada extraordinária depende de mudanças na legislação
trabalhista e, conseqüentemente, de uma conscientização e mobilização mais ampla das forças progressistas comprometidas com relações sociais mais justas e avançadas, em especial do movimento sindical. O livro da CUT contribui neste sentido inclusive ao sugerir a restrição da jornada
extraordinária a duas horas diárias, 30 horas mensais e 110 semestrais; ao lado da elevação do adicional pago pela hora suplementar para 75% nos dias normais (e de 100% nos domingos e feriados). A CLT prevê apenas o limite de duas horas diárias, que pode se desdobrar em 12 horas semanais (elevando a jornada de 44 para 56 horas semanais) ou até mais de 50 horas mensais.


 
O tema demanda uma maior atenção do movimento sindical e dos partidos e organizações comprometidas com os interesses da classe trabalhadora brasileira; merece ser encarado como prioridade na luta contra o desemprego e está intimamente associado à campanha nacional unificada das centrais pela redução da jornada sem redução de salários, em conformidade com o projeto do deputado federal Inácio Arruda e do senador Paulo Paim em tramitação no Congresso Nacional.


 


Notas


 
1- Segundo Karl Marx, mais-valia equivale ao tempo de trabalho excedente e é no fim das contas a essência do lucro capitalista, embora nem sempre coincida com ele. O capital impõe o crescimento da mais-valia absoluta (e do tempo de trabalho excedente) ampliando a jornada de trabalho. O conceito foi desenvolvido em contraposição ao de mais-valia relativa, cujo crescimento (que também significa aumento do trabalho excedente) não depende da ampliação da jornada (que tem limites físicos e humanos instransponíveis), mas ocorre por meio de uma crescente produtividade social do trabalho (que não se submete aos mesmos limites).


 
2- “Hora-extra – o que a CUT tem a dizer sobre isto”, página 71



3- “Hora-extra – o que a CUT tem a dizer sobre isto”, páginas 74 e 154



4- O livro em tela traz uma abordagem interessante sobre a evolução recente (negativa) dos acordos coletivos em torno das horas extras, que em geral não têm por objetivo eliminá-las ou mesmo reduzí-las, mas aumentar o adicional pago por elas, que a Lei estipula em 50% sobre o salário/hora contratado.

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