Independência ou morte!

A independência em 1822 foi um grande feito luso-brasileiro, em especial porque foi alcançada sem romper a unidade nacional, preservando o imenso Brasil que temos até hoje

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“A independência está para os povos como a liberdade para o indivíduo”, definiu De Gaulle, com a autoridade de quem deu tudo de si para salvar a independência ameaçada da França durante a Segunda Guerra Mundial. No mesmo espírito, poderíamos dizer que a independência ou autonomia nacional é a capacidade de um país de definir o seu destino. Essa independência é crucial e intransferível, pois nenhum país que se preze pode confiar o seu destino a outras nações, por mais próximas que pareçam, por mais amigas que possam ser consideradas. As nações, dizia também De Gaulle, não têm amigos, mas interesses. Só os países que têm vocação para colônia ou protetorado abdicam da sua independência.

Não foi por outra razão que De Gaulle, a quem o Xá do Irã pediu conselhos no início dos anos 1960, disse em resposta: “Só tenho um conselho a lhe dar, mas é de grande valor: faça tudo o que estiver a seu alcance para preservar sua autonomia de decisão”.

Estou recapitulando essas lições gaullistas por estarmos comemorando, nesta semana que entra, 200 anos da independência política do Brasil. A comemoração tem sido fraca. Mais morna do que a comemoração dos 100 anos, em 1922, como lembrou o historiador Luiz Felipe Alencastro.

O brasileiro, sempre inclinado a desvalorizar o Brasil, gosta de desdenhar da independência, dizer que ela não se realizou, que foi um fiasco etc. Não vou seguir essa toada vira-latista. A independência em 1822 foi um grande feito luso-brasileiro, em especial porque foi alcançada sem romper a unidade nacional, preservando o imenso Brasil que temos até hoje, com poucas modificações territoriais posteriores. Se o leitor pensa que é pouco, que olhe para a América Hispânica, que após a independência se fragmentou em 19 países, a despeito dos esforços de um Bolívar.

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Paradoxal que se possa dizer, como disse no parágrafo anterior, que a independência do Brasil em relação a Portugal tenha sido um feito luso-brasileiro. Mas foi. O acordo entre João VI e Pedro I foi a pedra de toque. Permitiu uma transição relativamente pacífica e funcionou como eixo contra as tendências centrífugas que se manifestariam em diversas províncias até os anos 1840, em especial no período da Regência. Com dificuldades, o Rio de Janeiro prevaleceu e o Brasil se manteve unido, como um dos gigantes do planeta.

João VI merece mais consideração do que tem recebido, diga-se de passagem. A sua decisão de transplantar a capital para o Rio de Janeiro foi corajosa e sábia. Repare, leitor, que ele fez o que as elites francesas se recusaram a fazer em 1940. O que De Gaulle defendia, quase sozinho, foi exatamente o que o príncipe-regente de Portugal havia feito em 1808 –transplantar o governo para o Império, e continuar a luta. Pétain e outros preferiram a rendição, enquanto De Gaulle e uma minoria de inconformados se instalaram em Londres para dar sequência à guerra contra a Alemanha.

A decisão de 1808 foi, como se sabe, o primeiro grande passo para a independência do Brasil. E, se dependesse de João VI, a Corte teria ficado permanentemente no Rio de Janeiro, a nova sede do Império Português, ou Luso-Brasileiro. Porém, as Cortes rebeladas em Portugal forçaram o retorno do rei, que percebendo tudo recomendou ao filho, antes de partir para Lisboa, que se preparasse para liderar a independência do Brasil. Segunda grande jogada de João VI.

Pedro I é outro que merece tratamento melhor do que tem recebido dos brasileiros. O seu grito de rebelião às margens do Ipiranga ressoou no Brasil inteiro. Arrancando as insígnias de Portugal, proclamou: “Laços fora, soldados! As Cortes de Portugal querem nos escravizar. Independência ou morte!”. Não me venham, por favor, dizer que “Ah, mas houve isso, houve aquilo, Pedro I continuou português, não abraçou a causa brasileira inteiramente etc.”. Não se engane, querido leitor e compatriota: é sempre possível depreciar qualquer coisa. As grandes nações nunca fazem isso com os seus momentos de virada histórica. Os franceses nunca ou quase nunca pensam em reabilitar Pétain e seus asseclas, ou diminuir o feito de De Gaulle em 1940. Os ingleses não ficam repisando os pontos fracos de Winston Churchill, que não são poucos, diga-se. As lendas nacionais são, sim, submetidas ao crivo analítico e crítico da História, mas não de forma indiscriminada e destrutiva. Churchill, por exemplo, rigorosamente falando, foi um terrorista em grande escala. E não é difícil provar. Basta mencionar a destruição total de Dresden – um ato límpido e cristalino de terror, de terror puro e simples. Um inglês dificilmente aceitaria essa designação para Churchill. E com razão. O terrorismo e outras deficiências de Churchill não diminuem a grandeza da sua principal realização – a de ter continuado a guerra contra Hitler praticamente sozinho, quando quase todos haviam desistido.

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Volto ao Brasil. Sim, leitor, independência ou morte! A escolha é clara: independência ou a vida diminuída das colônias e das nações subordinadas! Se existissem nações hegemônicas benevolentes, ainda poderíamos optar por nos colocar à sombra de uma delas. Mas isso nunca existiu e nunca existirá. A dinâmica política interna nos países mais avançados exige que o interesse nacional passe na frente dos interesses dos povos colonizados ou subordinados. Estes serão sempre submetidos ao propósito de facilitar a solução dos problemas e conflitos da metrópole, como mostra inequivocamente a história milenar dos impérios de todos os tempos.

Vamos, portanto, comemorar sem inibições os 200 anos do Grito do Ipiranga, valorizar o que alcançamos e lutar para que a nossa independência seja preservada e reforçada no século 21 e depois.

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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 2 de setembro de 2022.

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