Indo buscar a arte num filme

O filme Tromperie e o cinema artesanal, e o cinema de Bojan Vuletic em Requiem para Sra.J

Filme "Tromperie" Foto: DIvulgação

O filósofo alemão Theodor Adorno, líder da Escola de Frankfurt, tinha razão quando disse que a arte estava submissa à indústria com o capitalismo imposto ao mundo pelos Estados Unidos. E realmente era algo que não era arte. Adorno se inspirou principalmente no cinema criado por Hollywood no qual a cópia vale muito mais realmente do que a criação primeira e intuitiva. Nesse caminho, o que sempre valeu foi o trabalho industrial e nunca a criação autônoma do artista. Embora muitos cineastas que foram trabalhar em Hollywood lutaram e conseguiram fazer filmes com autonomia. E assim fazer arte.

O grande filósofo Walter Benjamin, também alemão e da Escola de Frankfurt, tinha uma visão menos drástica, embora mais profunda do cinema especificamente. Benjamin foi o grande comentarista da arte cinematográfica nos anos 20 e 30, quando todo intelectual pensava em cinema como um mero instrumento artesanal e limitado. Benjamin viu desde então a força desse artesanato e que, mesmo dominado pela indústria, iria influenciar nos caminhos do mundo. Engraçado é que foi o grande poeta pernambucano Ascenso Ferreira que descobriu que o cinema era realmente “o grande culpado”:

“-Mas D. Nina,
aquilo que é o tal de cinema?

O homem saiu atrás da moça,
pega aqui, pega acolá,
pega aqui, pega acolá,
até que pegou-la.
Pegou-la e sustentou-la!
Danou-lhe um beijo,
danou-lhe um beijo!…

Depois entram pra dentro dum quarto!
Fez-se aquela escuridão
e só se via o lençol bulindo…
…………………………………….

-Me diga uma coisa, D. Nina:
isso presta pra moça ver?”

Foi o beijo dado na frente das câmeras que mudou o comportamento de todos nós. Mas o que eu quero é simplesmente me referir que muitos filmes querem aparentar que são uma grande arte, mas na verdade são um simples arcabouço que se inclui na indústria, mesmo que não seja diretamente ligado a Hollywood como esse filme “Tromperie” (Deception), que está em exibição na Mubi. Foi realizado pelo cineasta francês Arnaud Desplechin a partir de um romance do norte-americano Philip Roth. Teve lançamento em festivais no ano passado 2021. Com uma linguagem aprimorada, com uma estória romântica e procurando mostrar profundidade, e com intérpretes de elite como Léa Seydoux e Denis Podalydès. Mas se apertarmos na análise, verificamos que não conseguiu ser arte. É simplesmente artesanato industrial, se for possível juntar esses dois aspectos. Não tem verdade no tema social do casamento, que coloca em debate através da vida do casal formado pela mulher casada e que “engana” o marido. Um espectador arguto e atento verá que os intérpretes falam não transmitindo um valor interno, mas uma simples representação.

Como disse o crítico Jean-Claude Bernardet que vive em São Paulo, o cinema francês é quase totalmente dominado pela filosofia hollywoodiana.

Olinda, 20. 05. 22

Réquiem para a Sra. J

Filme “Requiem para a Sra.J” | Foto: Divulgação

Esse filme, com esse título tão drástico, claro que não poderia ser de produção hollywoodiana. “Réquiem para sra. J” (Rekvijem za gospodju J.) é uma produção que vem da Sérvia, um dos países criados com o esfacelamento da antiga Iugoslávia. E a direção é do cineasta sérvio Bojan Vuletic. Aliás, toda a equipe, inclusive intérpretes, devem ser da Sérvia. O filme tem a aparência de uma realização feita com total independência, “sem pensar em agradar seja qual for o espectador”. É uma produção lançada em 2017 e nos chega agora através da Mubi.

É claro que a nossa atitude como espectador é de procurar entender o que está sendo dito pelas imagens densas e inclusive sombrias. Um filme que é um réquiem e não um bombom para ser degustado. Fala desde o título que a atitude do espectador deverá ser a de descobrir o pensamento que o realizador está querendo passar.

Esse filme recebeu prêmios nos festivais de Berlim, da Transilvânia e de Karlovy Vary, em Praga, capital da antiga Tchecoslováquia. Mas não temos nenhum barulho em torno dele. É recebido como qualquer outra pequena produção. Porém, para quem pensa em penetrar com mais profundidade no que é a arte cinematográfica, certamente esse filme toca de mais perto.

Bojan Vuletic, se foi ele mesmo quem realizou com toda autonomia esse filme, criou um trabalho do ponto de vista estético um trabalho novo. O argumento é muito simples, em torno do desespero de uma mulher que perde seu emprego e fica solta no seu tempo, inclusive sem saber mesmo se comportar com suas filhas. E quase se suicida. Mas essa “estória” com simples aspectos do cotidiano é narrada com uma linguagem não só criada com tensão, mas com visão de algo novo como linguagem. A atriz é excepcional no seu comportamento, mas essa forma de interpretação me parece produto da direção. O filme teve um excepcional trabalho de montagem. As cenas não utilizam o tradicional campo e contracampo. De uma imagem para a próxima, toda a linguagem é recriada. Belíssimo.

Eu confesso que não acompanho lendo o que se escreve atualmente sobre cinema. Mas através de alguns momentos vamos vendo o que é hoje a crítica cinematográfica. Muito mais universitária do que jornalística. Aliás, nesse sentido, é um horror cultural ver algo tão importante como é hoje, e como era o jornalismo se acabar.

Olinda, 16. 05. 22

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