Invenção da Amazônia

Viagem filosófica à guisa de manifesto do caboco do Marajó a caminho de Brasília, Rio, São Paulo, Paris e outras aldeias globais desde Vilarana do Curralpanema, aliás Itaguari [Ponta de Pedras-PA] e Belém do grão Pará: demanda do “Apocalypso”, no Fim do Mundo, a saber: quem inventou o vasto mundo de ritmos e rimas sem métrica nem solução?

Não é todo dia que se topa com caboco, a exemplo do bon sauvage, que repele o gramatical “l” de lex, “r” de rex e “f” de fé da santa madre Religião. E, custe o que custar, na ambição do Céu dá com os burros n'água no Inferno verde… Não é qualquer brancarana que se assume iberiano em odes à divina Preguiça, como tapuia fabrica puçanga enquando o Diabo pisca um olho… Não é toda gente ribeirinha nestas paragens do sol e da chuva, desde menina, esperando Godot ou o Mar-Oceano vir afogar as terras-baixas abaixo do equador. Digo e repito, não é todo caboco que cospe fora da boca o “l” civilizacional e sai do mato sem cachorro a ostentar que tem consciência do sangue de índio que lhe corre nas veias cultivando orgulho varonil do Brasil gigante dos pretos, encarnados, brancaranas, pardos e amarelos de todas latitudes e tribos da Terra sem males.

Deixa estar que, na verdade, não é um qualquer Zé, adepto do zen bubuia da maré, que louva a mistura fina do povão hermano latino-americano. Aqui o Kuarup antropoético: a ressurreição mágica dos Atahualpas, dos Guatimozim, dos Ajuricabas, dos Zumbis dos Palmares re-suscitados do covão da cultura popular pra pular etapas, entre tapas beijos do deus-Progresso…

Brega subversivo, mais velho do que a Sé de Braga, trovas messiânicas joaquimitas surdidas do gueto por arte do sapateiro da vila de Trancoso, o condenado Bandarra na ressurreição geopolítica do rei Dom Sebastião morto no Marrocos. A mina de tambor de Mina na vertigem das noites quentes de terreiro no Pará e Maranhão. Velho ska de Moçambique a virar calypso e ecoar sobre o apocalipse indígena do Caribe. Na grande ilha das Guianas, batuque do mocambo “Maravilha” mato adentro, voz ancestral malauí remontando cachoeiras do Trombetas a fim de dialogar com os “nèg marrons” do Maroni, entre a Guiana francesa e o Suriname. Rotas clandestinas de contrabando e resistência.

Os sermões sebastianistas do payaçu dos índios e imperador da língua portuguesa, com certeza, o Padre grande Antônio Vieira assombrado do passado dos impérios caducos com a História do Futuro, novinha em folha de papel almaço; imerso no rio da imaginação no escuro da cela da Inquisição. Invenção do Quinto Império do Mundo ou o quinto dos Infernos; necessidade e acaso de aliança estratégica do mito tupi-guarani da Terra sem mal. Paresque, a demanda do Santo Graal no alto-Amazonas por “índios cristãos” e cristãos-novos à bordo da flotilha do capitão Pedro Teixeira, viagem redonda Belém-Quito-Belém a cabo de dois anos passados à força de 1200 arcos e remos tupinambás (Ai Jesus! Que não nos ouçam, pelo amor de Deus, devotos do Santo Ofício nem fiéis neopentecostais da teologia da Prosperidade)…

Profetas e poetas do Apocalypso, revelação psicodélica das Bachianas no país do vento, Amerika. Anjos tatuados e cabeludos guitarras elétricas e zabumbas furibundas em punho! Espírito do tafiá 50° e alopração de marijuana… Que nem delírio antropoético deste velho bardo tardo que vos fala, mescla marajoara de bárbaro celtíbero desterrado da Galiza e deportado no país das Amazonas entre chuvas e esquecimento, no ilhamento global. Acima de tudo um animal exótico da diáspora pós-diluviana, em vias de extinção, aclimatado por necessidade e acaso na zona tórrida das Antípodas: decidido a tudo ou nada! A gritar alto e forte de Sul a Norte: he, aí todo mundo; esqueceram a gente! Criaturada grande das Amazônias latinas, anglo-neerlandesas, afro-ameríndias! Aqui o plano Mandela! Socorro que nem o Marshall dos brancos! Negritude além da melanina, pois aonde vai o mundo, axi; não presta!

Combustão de miolos ardentes das passadas e futuras gerações do estúrdio “Homo sapiens var. Tapuya” (curiosa taxinomia dada ao homem amazônico pelo sábio Alexandre Rodrigues Ferreira, de Coimbra, na Viagem Philosophica), aprendemos a ler e escrever para desconstruir a ilusão da nobre, santa e acidental Civilização: sacrifício ritual da divina Antropofagia manifesta no cruento e arcaico culto do deus-Jaguar convertida pelo beato Anchieta na adoração do Sagrado Coração de Jesus. Verdade verdadeira posta em leilão na Bolsa de futuros obscuros, garrafa de náufrago do Terceiro Milênio e tábua de salvação da Modernidade na maré das especulações financeiras e climáticas do climatério de Gaia.

Iberiana é coisa louca ultramarina, Ibéria desvairada d'além mar. Fé cega, faca afiada, sangue e areia de tourada. Amor carnal, romance de dona Silvana nos campos alagados do Marajó, carnaval devoto. A Corda umbilical edipiana que nem rosário de pecados e a imagem da santa Mãe com o Menino no colo a bordo da Berlinda… Arte barroca neotropical, psicodrama popular do carro dos Milagres nos caminhos marítimos e fluviais do Círio de Nazaré: de Belém da Palestina desde menina até mulher feita em Belém da Amazônia. Quem há de nos salvar de nós mesmos? Bicho folharal incentivado pelo sistema mundial com jeitinho bem brasileiro pelas margens direita e avessa da História.

O “algo mais” iberiano irmana índio, preto e brancarana. Aqueles uns que serão capazes de reinventar a História dos homens desde a ciência nova de Vico até a práxis econômica do materialismo dialético de Marx, numa boa: a saber, com quantos paus se faz uma canoa… Viagem peripatética rumo à complexidade de Edgar Morin e a sociológia do Ócio criativo de Domenico De Masi: vingança total e final dos caraíbas buscadores do paraíso selvagem sobre o santo império dos Reis Católicos e a ditadura de Descartes. Penso, logo desisto de toda e qualquer certeza absoluta!

Iberiana rima com Vilarana, esta é vila que nem vila era; aquela vasto mundo das Amerikas latinas. Vilarana, flor da nossa varja, o fim da estória que transfigura o Fim do Mundo no Apocalypso: contracultura apocalíptica contra veneno da teoria do caos. Sítio Araquiçaua (lugar sagrado aonde o sol vai atar a rede do crepúsculo, tomada do mito da primeira noite do mundo). Capital imaginária das Amazônias na paisagem cultural do golfão marajoara.

De grão em grão, do Grão Pará, catei lendas pela contracorrente do Tocantins, antes que Tucuruí metesse rolha de ferro e cimento ao rio. Do Amazonas e Xingu levei na bagagem Cobra Norato e Maria Caninana até às Águas Emendadas. Planalto central dos Brasis. Daí Brasília se disparte em alvoradas ao velho Chico, ao Prata através do rio Paraná e ao Amazonas pelo curso do dito rio dos Tocantins… Em dezembro fui ao Rio de Janeiro a primeira vez, chovia a cântaros. Descobri Nova Iguaçu antes de ver o Pão de Açúcar. Depois de descobrir, em São Paulo de Piratininga, que o grito do Ipiranga poderia ter sido, em verdade, por causa de comida estragada no jantar da marquesa de Santos; peido do imperador Pedro primeiro. Poluição inaugural do riacho da nossa retocada independência…

Na Paulicéia desvairada eu quis saber do jesuíta Oscar Quevedo o segredo dos pajés. Ele não estava, mas ganhei o livro “A face oculta da mente”, paresque livro de São Cipriano liberado e revisado pelo Santo Ofício; oferta gentil de um seminarista aprendiz do bruxo sacerdote. Que nem um tio avô de minha mãe, padre da Galiza com fama de mago, falecido há tempos. Este um atravessava o Oceano por riba das nuvens, paresque, para visitar os parentes emigrados no Pará. Naquele tempo não havia televisão, mas a telepatia fazia sucesso… Fiz a volta do Sul onde o vento minuano faz a curva, caminhei pela margem esquerda do Rio da Prata antes de conhecer o Guaíba, no Rio Grande do Sul. Andei uma tarde inteira em Montevidéu, espantosamente parecida com a Província do Pará durante os anos de chumbo, a procura da “Memória do Fogo”, de Galeano … Foi lá que tive notícias de Santa Maria, de Juan Carlos Onetti; e me deu à telha começar a debuxar Vilarana ressurgida dos escombros da lembrança do Fim do Mundo. Lugar de infância que me acompanha como uma sombra. Claro que, por uma sina inexplicável de monge copista, Vilarana virou mistério. Romanceiro secreto da estória-geral do Curralpanema jamais acabado.

Caminho do feio é por onde veio… Voltei ao Norte da minha sorte sempre em busca de saber quem inventou o mundo. Parei uns tempos no pais de Atipá (as Guianas ou El-Dorado). Aprendi a falar, um pouquinho, em kréol, um tiquinho assim de taki-taki, compreendi que a Orinoquia está viva e que os Boni, Saramakas, Paramakas, Djukas e outros “quilombolas” tinham lá um “papiamento” que se pode entender misturando inglês banana em Curaçao até Aruba… O Rio Negro se despejou pelo Caribe bem antes de Colombo! Já havia aprendido de um camarada índio maquiritare que aquela gente sabe escrever nas estrelas o nome dos heróis imortais junto aos deuses, no círculo equinocial celeste. Ri-me cinicamente da adorável literatura de Guimarães Rosa, que eu havia canibalizado, em vão, em horas mortas pelas bibliotecas de Brasília.

O longo e avesso percurso do caboco. Então, chegou o grande dia em que pude ver de perto moinhos de vento da velha Holanda (felizmente, eu havia deixado Rocinante na outra margem do Atlântico, solto nos campos de Cachoeira do rio Arari: por incrível que pareça, era dia de aniversário de Dalcídio Jurandir). Obsessão comparativa à antiguíssima engenharia dos tesos arqueológicos nos campos alagados na ilha do Marajó.

Os Nheengaíbas erraram bestamente ao aceitar a falsa paz de Portugal? Quando eles, com a superioridade de armas que tiveram nos primeiros dias da invenção da Amazônia; podiam manter a amizade e comércio da Batávia que já durava meio século. O vento frio nórdico veio me alertar: se não fora o enorme erro dos antepassados, não haveria Brasil gigante… Não existiria o País do Futuro. E eu não poderia estar ali àquela hora, a sacar lição da história para ela não se repetisse mais como farsa.

Em Paris, brevemente, eu não fui infeliz. Nunca antes lá estivera, porém havia algo familiar que os livros me contaram. Mas, quase morri ao subir escadaria na ladeira de Montmartre, que nem naquela vez em Vilarana, digo, Ponta de Pedras; quando o rio Marajó-Açu queria me afogar: aqui, escapei com ajuda de um colega pretinho que nadava feito peixe… Salvou-me talvez para inventar estória daquela gente do Fim do Mundo, paresque… Aqui não findei os dias para saber mais daquela história desatava que me levou lá em riba, onde o basco Ignácio de Loyala formou soldados de Cristo a conquistar o mundo desconhecido.

Do átrio da igreja do Sacré-Cœur vi o sagrado coração de Paris, ao pé de Montmartre, embaixo de névoa cinzenta como que rendada de lendas heróicas. A imagem não me foi mais impressionante do que aquela, na cordilheira Parima; império do El-Dorado, Amazônia. Quando solitário vi ao fim da tarde os começos do mundo sobre a imensa floresta que, de tanto verde, confundia-se com o infinito azul na amplidão. A solidão da serra virgem estava povoada de signos de vida por todos os poros do espaçotempo…

Então, pude comprender o pajé Ianomami dizendo ele que com seus confrades seria capaz de salvar o enlouquecido mundo dos homens brancos. Dia seguinte visitei Versalhes. Era domingo de céu límpido e frio glacial, o vazio gritava com o vento, tão diferente de Parima. Onde estavam todos? A Bastilha, pelo menos, estava viva com gente mais ocupada em comer do que saber da Revolução… Finalmente, na despedida, ouvi a temível questão a qual sempre quis ter resposta: do Brasil poderá sair uma civilização para o mundo em decadência? Passado tempo, eu ainda não tenho explicação. Desdenho tentativas para explicar o pais do Futuro. Mas, quando me recordo da invenção da Amazônia, na inacreditável saga do bon sauvage em busca da mítica Terra sem mal; e da embaixada do tremendão Tupinambá à corte de Henri IV, de que Montaigne falou, como sugestão da revolução de 1789, não hesito em declarar com a fé dos caraíbas: je crois!

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