Ipês

Ipê amarelo

Ipê amareloConheci os ipês na minha infância, numa fazenda de café no interior de São Paulo, Brasil. Extasiava-me aquelas árvores soberbas, vestidas de roxo, rosa, amarelo e branco. Conforme aprendi com os mais velhos, aquela era uma árvores sagrada, posto que o Criador havia feito um trato com ela (árvore) para que elas se vestissem de festa para mostrar que, a cada ano, a vida se renova no final do inverno e chegada da primavera. Os ipês roxo e o branco florescem entre julho e agosto; o amarelo e o rosa, no início de agosto e estendem-se até meados de setembro, quando anunciam aos trabalhadores do campo que já é hora de preparar a terra para mais um cultivo de arroz e de milho.

Mês de agosto. Inverno no seu último estágio. Os pastos ressequidos pela ação das geadas abrigava um gado magro e sonolento. Com pouco para comer nas invernadas e piquetes, os animais aguardavam com paciência bovina e eqüina, o pouco de ração de cana picada e milho «silado em trincheira», que o fazendeiro sovina nunca queria fazer na quantidade suficiente. A poeira levantava com os redemoinhos de sacis dos ventos mogianos, nas estradas secas onde os roceiros de pés descalços, rachados pela ação frio e da terra alcalina, caminhavam nos campos onde os ipês solitários, coloriam aquele resto de inverno, com sua melhor e mais bonita roupa floral estampada. O inverno, normalmente uma estação triste e cinzenta, vestia-se de alegria, com os ipês floridos…

Quando somos crianças, «o tempo corre devagar». Naquela época, o tempo era diferente: moroso como as vacas que voltam no fim da tarde, com os úberes murchos, mas com esperança de rever seu filhote e quiçá comer uma iguaria, que tanto pode ser sal ou cana picada, ou silagem. Tudo andava ao ritmo da natureza, nos seus estágios e estações naturais.

E os bosques da Fazenda São José ficavam todos enfeitados por dezenas de ipês floridos. Havia o ipê roxo, o ipê rosa, o ipê branco, o ipê amarelo. Muitos anos depois, já na vida citadina, soube da existência do ipê verde, tão raro quanto bons leitores ou beija-flores vermelhos. Há um consenso no interior do Brasil que o ipê tem sentimentos iguais aos dos humanos: se ficamos concentrando nossa energia, focados na realização de um sonho, de repente tudo muda. E muda para melhor. Este «Ponto de Desequilíbrio», faz com quê até pessoas das quais nada se espera, num momento de superação, façam algo que nos surpreende, que vai além das previsões mais otimistas.

O ipê (amarelo) é a árvore símbolo do Brasil. O nome ipê vem da língua tupi, e pronuncia-se «ype», e significa «árvore com casca grossa». A designação científica do ipê é: gênero Tabebuia, da família das Bignoniáceas. A madeira do ipê é muito comercializada, especialmente para revestir pisos, devido à sua alta resistência. A casca do ipê roxo é considerada uma panacéia para muitos males, inclusive para prevenção contra o câncer. Como curiosidade, destaco outros nomes com que os ipês são conhecidos no Brasil: páu-d’arco, peúva, peroba-de-campos, ipê-amarelo, ipê, aipê, ipê-branco, ipê-mamono, ipê-mandioca, ipê-ouro, ipê-pardo, ipê-vacariano, entre outros.

Há uma lenda que conta a origem do ipê. Ela diz o seguinte:

«Naqueles tempos, o inverno estava nos seus últimos dias e todas as árvores da floresta estavam começando a florescer. Somente os ipês continuavam sem flores. Os ipês, cada vez mais se entristeciam com aquela situação. Eles eram os únicos que não tinham nem flores nem frutos.

Então, os amarelos canários da terra, percebendo a tristeza dos ipês, resolveram fazer seus ninhos somente nos galhos de um dos ipês. E ninhais também foram feitos pelas araras vermelhas e azuis e os sanhaços em outro; as garças brancas em outro, as siaciras em outro, e num outro ipê menos imponente, foram os periquitos, jandaias, maritacas e papagaios.

Os ipês ficaram muito felizes e resolveram pedir à Providência Divina que lhes dessem flores, como forma de agradecimento aos canários da terra e a todos os outros pássaros da floresta, pela alegria que tinham levado a eles.

No dia seguinte, dizem; sob o mais belo céu azul que aqueles sertões já conheceram, os ipês floresceram em várias cores. Cada um dos ipês se vestiu nas cores e matizes dos pássaros que os havia adotado. Quando tudo isso aconteceu, dizem, era agosto. E assim, desde então, os ipês têm florescidos em agosto.

Agora, a cada agosto, um vento frio sopra desde os sertões do Brasil: é a Providência Divina anunciando que ainda mais uma vez os ipês florescerão, cumprindo a aliança entre Deus e a Natureza. As cores dos ipês são, portanto, expressão de um milagre do amor de Deus pela natureza e pelos seres que vivem na Terra».

Mas eis que, de repente, esta árvore de outros espaços irrompe no meio do asfalto. Interrompe o tempo urbano de correrias, semáforos, buzinas e ultrapassagens. E eu tenho de parar ante esta aparição do outro mundo! Assim como aconteceu com Moisés, que pastoreava os rebanhos do sogro, quando viu um arbusto pegando fogo, sem se consumir. Ao se aproximar para ver melhor, ouviu uma voz que dizia: «Tira as sandálias dos teus pés, pois a terra em que pisas é santa». Acho que não foi sarça ardente. Deve ter sido um ipê florido. De fato, algo arde, sem queimar, não na árvore, mas na alma. E concluo que o Escritor Sagrado estava certo. Também eu acho sacrilégio chegar perto e pisar as milhares de flores caídas, tão lindas, agonizantes, tendo já cumprido sua vocação de amor.

Mas sei que no espaço urbano as coisas fluem de maneira diferente. O milagre da floração dos ipês é visto por muitos moradores dos centros urbanos como canseira para a vassoura.

-Melhor o cimento limpo que a copa colorida, dizia uma minha conhecida.

Não raro sei de casos de pessoas que, por se cansarem de varrer as flores do ipê caídas no piso do quintal ou na frente das casas; atacam os ipês. Outras árvores são também castigadas pela ignorância dos humanos. Lembro-me de uma araucária numa rua ao lado do escritório no qual eu trabalhava; indefeso, com sua casca cortada a toda volta, e furos de broca. Meses depois, estava morto, seco. Restaram somente dois ninhos de bem-te-vis; um com filhotes e outro com ovos.

Numa manhã qualquer, passei sob o grande pinheiro seco e os dois ninhos estavam no chão, talvez arrancados por uma ventania, talvez derrubados pela mesma mão assassina que matou o pinheiro. Num dos ninhos estavam os fetos de dois filhotes, no outro as cascas de dois ovos quebrados.

Mas no final, o que importa é o ritual de amor que o Criador faz manifestar-se no inverno. Ele espalhará sementes pela terra e a vida triunfará sobre a morte, o verde arrebentará o asfalto, e as flores nas cores em tons roxo, rosa, amarela e branca, enfeitarão nossas cidades, ano após ano. Alguns poucos ainda verão os ipês de flores verdes, que tanto procuro e nunca vi.

Espero, ansioso e esperançoso, que um dia o ser humano respeite a natureza. A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis à sua vocação de beleza, e nos esperarão tranqüilos, todos os meses de agosto de nossa curta vida, por toda a eternidade. Todo ano temos um encontro marcado: no mês de agosto, devemos nos preparar para ver e sentir a floração dos ipês, pois ainda haverá de vir um tempo em que os homens e a natureza conviverão em harmonia e os ipês serão os ícones desse «Novo tempo».

(Ao lado Ipê verde, localizado na cidade de Santos: mais difiíceis de achar)

Nota

Em setembro de 2008, recebi de uma escritora de um site no qual participo; imagens com as fotos de flores do ipê verde, as quais por pura imperícia as perdi. Também fui homenageado pelos curumins e cunhãs da Escola Primária de uma aldeia indígena da região de Dourados, MT.
Os pequenos brasileiros fizeram desenhos dos ipês floridos e repassaram aos seus pais, na aldeia, a lenda do ipê. Só isso me bastaria para que ficasse orgulhoso, mas a cada mês recebo algum tipo de manifestação sobre este texto. Agradeço a Deus por tê-lo feito, mostrado e contado.

Este texto foi originalmente publicado no Raiz On Line .
Aqui, com acréscimo de nota do autor e edição das imagens pelo prosa@poesia do Vermelho.

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