“Jogos de Poder”: Enganosos fatos reais

Com uma história que, supostamente, é baseada em fatos reais, o diretor Mke Nichols conta como um deputado, um agente da CIA e uma ricaça do Texas financiaram as forças afegãs que lutavam contra as tropas soviéticas no final da Guerra Fria

A mania de se vender um filme, sob a justificativa de que se baseia em fatos reais, costuma confundir o espectador. A partir desta simples informação, ele é induzido a acreditar no que lhe é mostrado na tela. Mesmo que muitas cenas se mostrem inverossímeis, devido ao reducionismo e ao exagero, fica sempre a certeza de que, afinal, a história foi mesmo aquela. Essa sensação perpassa os 97 minutos de duração de “Jogos do Poder“, do germano-americano Mike Nichols, sobre as espertezas do deputado federal Charlie Wilson (Tom Hanks), o agente da CIA Gust Avrakotos (Philip Seymour Hoffman), e a ricaça texana Joanne Herring (Julia Roberts), durante o conflito soviético-afegão na década de 80. Logo na abertura a frase: “baseado em fatos reais”, lança sobre o espectador a certeza de que, a partir dali, se desenrolaria diante de si o que realmente levou à derrota das tropas soviéticas nas montanhas áridas do Afeganistão.



            


Baseado no livro de George Crile, com roteiro de Aaron Sorkin, “Jogos do Poder”, quer nos fazer crer que a trinca, supostamente trapalhona, engendrou um plano, com a anuência do governo americano, para fornecer cerca de um bilhão de dólares para aquisição das armas que iriam derrubar os ultra-modernos helicópteros e aviões soviéticos. E, desta forma, os EUA equiparam os agora detestados talibans para chegarem ao poder e hoje enfrentá-los de igual para igual nas mesmas montanhas onde os ajudaram a derrotar o exército soviético. Os diálogos ágeis, ácidos e debochados trocados por Wilson, Gus e Joanne nos remetem aos antigos filmes anti-soviéticos em que, como vilões, eles nada enxergavam, ainda que os “mocinhos americanos” estivessem a um palmo de seu nariz.


              


 


Atores dão veracidade às situações enganosas


             


 


Mudaram os personagens e a história, a abordagem, porém, continua a mesma. Muitos espectadores riem durante o filme, dada à comicidade das situações. Numa delas, aliás feita com habilidade competência por Mike Nichols (“Close”, “Primeira Noite de um Homem”, “Ânsia de Amar”), Gus tenta seduzir Joanne; ela sai pela tangente com naturalidade. Noutra, Wilson, mulherengo, enrola-se com Joanne enquanto ela exige dele recursos para a derrota dos soviéticos no Afeganistão. Cenas que, interpretadas por atores de grande empatia e talento, como Hanks, Roberts e Hoffman, transformam a manipulação em “veracidade”.  O que torna o filme crível, no entanto, é o tom debochado, com que Nichols o conduz. É como se ele também não acreditasse na balela de que, com o dinheiro do contribuinte americano, a trinca armou a resistência afegã e esta chegou à vitória.
             


 


Muitos fatores, ações e tática de grande envergadura devem ter contribuído para a derrota do exército soviético nas montanhas afegãs, neste conflito que foi chamado de o “Vietnã da União Soviética”. E não só os dólares e as armas com eles comprados, sob o patrocínio da trinca, permitiram que as tropas do Kremlin naufragassem no território afegão. A região, como se sabe, é de capital importância para o controle do gás da Sibéria e serve também como proteção ao fluxo de petróleo do Oriente Médio. Não bastasse isto, foi usada pelos EUA para conter a expansão soviética nas proximidades do Paquistão, Irã, índia e Bangladesh. E hoje é controlada a pulso de ferro pelos norte-americanos, para manter os poços de petróleo sob sua exploração, distante da China e, até mesmo, dos europeus. Mas o filme não trata destas questões; se envereda pelo xadrez geopolítico de uma região de conflitos milenares de forma enviezada.


               


 


Afegãos são deixados à própria sorte


               


 


Nas que são as melhores seqüências de “Jogos do Poder”, Wilson e Gus urdem um plano maquiavélico para as armas chegarem às forças afegãs pondo na mesma trama inimigos históricos.  Cada um deles tem um motivo para não entrar nesse plano, mas dois para não se distanciar dele. As rixas tribais e a necessidade de estar bem com os EUA os levam a participar. As frases de duplo sentido, o ódio contido e o pragmatismo com que se comportam os tornam “aliados”. Este é o único momento em que o espectador é alertado sob como são as manobras no campo geopolítico internacional. Inimigos históricos, de repente, podem se unir contra o inimigo imediato e, uma vez alcançado o objetivo, voltar ao jogo costumeiro. Isto se vê no gigantesco campo de refugiados, onde mais de 1,3 milhão de pessoas ficam abandonadas no meio da montanha árida. Estão ali entregues à própria sorte, sem perspectiva alguma de futuro.
             


 


Nichols, Crile e Sorkin usam personagens reais, como o então presidente Zia-ul Hacq (Om Pori), para dar maior credibilidade a seu filme. É o único personagem de face oficial, aquele que lhe dá a chance de urdir, sempre em tom ácido, cínico, um plano que tem tudo para dar errado. Embora se duvide que os fatos não se  passaram exatamente assim, “Jogos do Poder” pode ser visto sob outro ângulo, muito mais sério e crível. Na Guerra Fria, ainda que se contasse os fatos acima mencionados, o que se jogava era a influência pura e simples, pouco importando como os povos onde se davam os confrontos iriam sobreviver. Uma vez afastado o inimigo, os “nativos” eram entregues à sua própria sorte. Charlie Wilson o percebe ao encerrar seus planos; ele se transformou apenas numa peça de um jogo maior, ao qual não interessava a melhoria de vida dos afegãos.


               


 


Joanne sabe manipular por seus interesses


               
Wilson entendia que se os EUA os dotassem de educação e de outras melhorias, eles sairiam do atraso e desenvolveriam o país. Seus colegas de comissão secreta, responsáveis pelo fundo que financiou seu plano, não viam os fatos desta maneira. Ele, numa projeção para o futuro, observa que as razões para o Afeganistão ser palco de mais um conflito de grandes proporções, com forças estrangeiras, deriva da falta de visão das elites norte-americanas. É o momento que o filme trata o tema com a profundidade que ele merece. E une, em tom de comédia, a burguesia e o Estado, configurados na ricaça Joanne, no parlamentar Wilson e no agente da CIA Gus, para defender os interesses dos monopólios norte-americanos. Espalhafatosa, brega, disposta a ir para a cama com Wilson para atingir seus objetivos, Joanne, com sua peruca loira, quadrada, de extremo mau gosto, demonstra o quanto estava disposta a lutar para afastar os soviéticos do Afeganistão.
            


 


Joanne, o melhor personagem do filme, ainda que seja uma caricatura de mulher da alta sociedade, é bem informada, sabe montar uma recepção luxuosa a fim de obter dólares para a sua causa e se comportar diante do povo afegão com o devido respeito para não ferir seus costumes. Para isto cobre os cabelos oxigenados e caminha entre os milhares de refugiados com uma desenvoltura surpreendente. É, enfim, o reflexo de uma classe que vê os espaços geopolíticos como tabuleiros em que as pedras devem ser mexidas com exatidão para alcançar o que se almeja. Ao contrário de Wilson, cheio de fraquezas, as suas são, em vários aspectos, circunstanciais, ou seja, usa o próprio corpo para chegar ao cofre do Tesouro americano. Os demais, Gus e o velho deputado Doc Long (Ned Beatty), são pedras menores em seu tabuleiro e não lhes preocupam.
              


 


Estas são as únicas seqüências em que a lucidez impera em “Jogos do Poder”, um filme que entra na lista dos que tentam entender os motivos do naufrágio dos EUA hoje, num dos países por eles ocupados. Mostra que suas raízes são longínquas, derivam de outros conflitos, pois as razões continuam a ser as mesmas: domínio das riquezas da região. À maneira dos velhos far-west, eles chegam supostamente como solução e deixam atrás de si um rastro de fome, miséria e doenças. Nichols deixa estas questões plantadas em seu filme, mas é pouco para torná-lo digno de ser lembrado como grata contribuição à luta contra a ocupação do Afeganistão. Com as mesmas situações daria para fazer um grande filme de denúncia contra o imperialismo. Mas aí já é pedir demais!



 


“Jogos do Poder” (Charlie Wilson´s War). Drama. EUA. Duração: 97 minutos. Roteiro: Assron Sorkin, baseado no livro de George Crile. Direção: Mike Nichols. Elenco: Tom Hanks, Julia Roberts, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Ned Beattly.

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