“Jornada da vida”: Descoberta de si mesmo
Em filme em que famoso cantor-escritor redescobre suas origens, cineasta francês Philippe Godeau mergulha o espectador noutra África
Publicado 06/08/2019 13:14
A África continua uma incógnita. Ainda há muito a desvendar sobre ela. O cineasta francês Philippe Godeau começa pelo avesso. Sua narrativa neste “Jornada da Vida” prende-se mais à perda de identidade dos africanos que se radicaram na França. E, em sua maioria, raciocinam e se identificam com a cultura francesa. Seu microcosmo gira em torno dos que se sentem estrangeiros ao retornar ao seu país de origem. Com esta visão, pouco usual, Godeau trata o colonialismo como a perda de identidade.
Não só a absorção da cultura do colonizador, mas a construção de outra forma de ser e pensar. Godeau e sua co-roteirista Agnés de Sacy estruturam os personagens não como antagonistas, mas como espelhos convexos ao mostrá-los como iguais. A começar pela forma como o garoto Yao (Lionel Lovis Basse), de 13 anos, viaja 387 quilômetros de sua cidade, Kanel, a Dacar, capital do Senegal, para se encontrar com seu ídolo, o famoso ator-escritor Seydou Tall (Omar Sy). O que os identifica para além da literatura é serem ambos senegaleses da tribo Kukolur.
Deste modo, a dupla Godeau/Sacy não se atém à relação fã/ídolo, mas a do garoto que tem em Seydou o exemplo do que aspira se tornar. Seu sonho é ser astronauta ou escritor. E o experiente e agora cidadão francês, ao ver-se cercado por milhares de fãs, mostra-lhe que um kukolur pode realizá-lo. Principalmente quando o visitante, que ali está para participar da Bienal do Livro de Dacar, vê que o livro que Yao lhe dá para autografar está velho e cheio de anotações. “Você é um garoto esperto que sabe exatamente o que quer”. E além de tudo decorara grande parte do livro.
Narrativa do filme transita da aventura à odisseia
Os dois se tornam assim grandes amigos, pois Ayo para chegar a Dacar correu grandes riscos. Forma de Godeau unir a aventura à amizade para reforçar o tema central do filme: Seydou sendo visto mais como francês do que um senegalês radicado na França. Mas este é, enfim, o recurso da dupla Godeau/Sacy para ressaltar a perda de identidade do agora famoso franco-senegalês. Não porque ele o expusesse, mas pelo que revelou em sua amizade com Ayo, pois ele havia perdido sua vinculação com seu país de origem. E mesmo que tenha emigrado com a família ainda jovem, esqueceu de grande parte do vivera em Tiagalá.
A eficiência da construção dramática deste “Jornada da Vida” é o recurso usado por Godeau para transitar da aventura à amizade e desta para o filme de estrada. Não só pelo modo como faz Ayo chegar a Seydou, mais por tornar a narrativa excitante e ao mesmo reflexiva. Aqui ele se põe a explicitar sua intenção de levar adiante a relação de amizade deles, mas, notadamente, para transformá-la num aprendizado que revele a perda de identidade do ator-escritor. E o faz através do recurso dramático da odisseia ao transformar Seydou no responsável pela vida do garoto Ayo.
São nestas sequências que o espaço-tempo se mede pelos 387 quilômetros de Dacar a Kern. E o motorista do táxi fretado por Seydou tem a missão de chegar a Kern e à família do garoto. A dupla Godeau/Sacy cria vários obstáculos a reforçar a odisseia, seja nas ações e negligencias do motorista do táxi ou na inexperiência e desconhecimento da estrada e da região por Seydou. Sucede uma série de fatos a tornar a viagem perigosa, motivo de preocupação de sua parte, pois fora obrigado a deixar o motorista para trás. E ele próprio assumiu a direção do táxi Peugeot.
Seydou percebe que se descolou de sua cultura
O interessante é como Godeau orienta seu diretor de fotografia, Jean-Marc Fabre, para manter as panorâmicas permitindo o espectador situar-se na imensidão da paisagem africana. Prima pelos tons amarelos queimados e a vegetação rasteira esverdeada a se estender por quilômetros. Inexiste a agressividade das queimadas, o belo aqui é o perene estado da natureza virgem. Ao invés de devastá-la, o homem surge como parte dela, mesmo utilizando-a para dar conta de sua sobrevivência. É o que torna a atmosfera da narrativa menos agressiva. Em suma é suave.
O que Godeau passa ao espectador é o fluir harmônico da narrativa, com personagens bem estruturados. Em particular o Seydou de Omar Sy. de origens mauritanêsa (mãe) e senegalesa (pai); o Ayo de Lionel Louis Basse e a Glória de Fatoumata Diawara. Há uma linha dramática que se mantém ao longo do filme, passando a ideia de que o conflito é interior, não exterior. O único instante de violência ocorre na cena em que Ayo é punido em sua casa. E a África de Godeau foge aos clichês e estereótipos de um continente em eterna miséria e sem futuro. O Senegal os desmente.
Mesmo assim esta técnica-narrativa permite a Godeau dotá-la de tensão e certo suspense, pois o veículo é velho e as estradas, ainda que asfaltadas não são bem sinalizadas. Os únicos momentos em que estaciona são para lanchar e abastecer o Peugeot. O que lhe chama atenção são os senegaleses muçulmanos a parar à beira da estrada para reverenciar Alá e as barracas de vendedores de sanduíche à beira de estrada. Devagar, ele se dá conta da paisagem a integrar o clima. São a floresta com suas árvores de folhas amarelecidas e a vegetação esverdeada a tornar-se seca.
Festa é reencontro de Seydou consigo mesmo
É desta forma que Ayo se depara com o descolamento dele da paisagem, dos costumes, de sua cultura e de seu relacionamento com os compatriotas. Então começa a atualizá-lo, chamando-lhe atenção para um fato e outro, um modo de agir e outro. Ele deixa-se orientar, pois falta-lhe a cultura necessária para interagir com o meio-ambiente, os humildes senegaleses a cruzar com eles na estrada e os rituais muçulmanos a respeitar em cada horário como é o preceito do Alcorão.
Sem qualquer diálogo que o indique, Godeau vai ampliando seu tema central. Até mesmo quando da dispensa do taxista, Seydou não se dá conta de que as paradas exigidas pelos policiais rodoviários deveriam ser recompensadas. Sua indignação beira a ingenuidade, até mesmo para o garoto Ayo. Este ao longo do percurso a Kern vai ajustando e atualizando o retorno dele ao país de 15,85 milhões de habitantes, conforme dados de 2017. Desacostumara não só com os costumes senegaleses como a se dar conta das situações cotidianas que exigem sua rápida intervenção.
Este rápido e atabalhoado aprendizado se estende ao modo como ele se relaciona com a dançarina Glória (Fatoumata Diawar, atriz e cantora malinesa) num bar de uma pequena cidade. E a forma como se lança sobre ela, jurando-lhe mil agrados. Conta mais nesta sequência sua intenção de mostrar-se famoso e poderoso em Paris, insinuação que pareceu a ela fortuita. Mas ao espectador parece mais reflexo de sua crise conjugal com a companheira francesa caucasiana Laurence (Gwendolyn Gourvenec). Fato que a ele causa más lembranças e receio de a crise prosperar.
Seydou passa a usar a mão para comer
Contudo, Seydou busca compensação para a distância do filho Nathan, de seis anos, banhando-se no mar com Ayo. É alegria em meio ao reencontro consigo, ao perceber o quanto suas raízes estão na África e não na França. Inclusive ao deparar-se nas proximidades do caudaloso rio na fronteira com a Mauritânia, não estando longe de sua Tialagá. E não só Ayo como o Idoso e a babalorixá Tanam (Germaine Acogny) lhe chamam atenção para suas raízes, das quais se afastou. E ele se dá, enfim, que se reencontrou com a África. Algo que lhe faltava e ele não percebia.
Deste modo, ele participa do reencontro de Ayo com a família. É a forma de se unir, de fato, aos seus, pois aquele é o seu meio e a sua terra natal. Inclusive voltar a usar a mão para comer durante a refeição com outros familiares do garoto que se tornou seu guia e o fez ter consciência de suas raízes africanas. Elucidação que, construída por Godeau, se estende à bela e emblemática sequência de seu reencontro com seu orixá à beira do rio. Tanan o leva a entender o princípio de que: “O destino é Deus viajando escondido”. E nada é entregue ao acaso, nem à eternidade.
Jornada da Vida (Yao). Drama. França, Senegal. 104 minutos. Trilha Sonora: Matthieu Chedid, Edição: Hervé de Luze. Fotografia: Jean-Marc Fabre, Roteiro: Phillipe Godeau/Agnés de Sacy. Direção: Phillipe Godeau. Elenco: Omar Sy, Lionel Lovis Basse, Fatoumata Diawar, Germaine Acogny, Germaine Acogny,