Julgar Israel por crimes de guerra

Em poucos momentos da história tivemos um tribunal específico para julgar crimes de guerra. O mais famoso de todos foi, sem dúvida o de Nuremberg, formado pelos EUA e pela URSS. Democrático, com amplo direito de defesa para os carrascos nazistas, todos co

As decorrências do Cessar Fogo unilateral



Como a mídia grande noticiou, no último sábado, dia 17 de janeiro, após 22 dias de incessantes bombardeios, Israel decretou de forma unilateral, um cessar fogo, logo aceito e ampliado pelo lado dos palestinos combatente, vinculados ao Hamas e outras forças políticas que resistiram ao massacre. Cabe-nos neste momento, fazer um balanço desses ataques, das suas conseqüências e analisar as propostas e desdobramentos que se colocam.



Israel vem sendo unilateral há muitos anos. Como disse em coluna anterior, vem se comportando como um estado “bandido”, estado “pária”, que vive à margem das leis e do direito internacional. Só aceita as resoluções da ONU que lhes são favoráveis e se dá ao direito de descumprir todas as que lhes são contrárias aos seus interesses.



A maior prova cabal da unilateralidade de Israel foi demonstrada em 2005, quando Ariel Sharon ainda era primeiro Ministro e decidiu retirar-se sem nenhum acordo e consulta aos palestinos, da Faixa de Gaza. Existiam umas sete colônias judaicas com uns sete mil judeus que nela moravam. Ainda assim, a desocupação foi dramática e difícil. Mas saíram de Gaza sem acordo, sem negociação. Isso não resulta em nada. Agora mesmo, o cessar fogo foi unilateral. Com quem eles acertaram isso, com um fantasma? Ignoraram a liderança do Hamas, mas nada ganharam com isso. Ao contrário. Perdem oportunidade histórica de construir acordos políticos.



Não há como não reconhecer: o Hamas saiu-se amplamente vitorioso. Não estendeu a sua bandeira branca. Não se ajoelhou, nem se humilhou ante ao quarto maior e mais poderoso exército da terra, armado pelos Estados Unidos. Mesmo sem apoio de nenhum governo árabe, com vistas grossas da comunidade internacional, hipócrita o tempo todo, os palestinos resistiram. O Hamas legitimou-se ainda mais como grupo político, credenciou-se com organização da resistência.



O mundo árabe ignorou completamente a tragédia palestina. Mais uma vez. Honrosa exceção, mais uma vez para a Síria, cujo governo tentou de todas as formas, ajudar na construção de caminhos que garantissem – sem sucesso – o cessar fogo e o respeito aos palestinos. O Egito, mais uma vez, mostrou-se serviçal dos Estados Unidos. Fechou sua fronteira tanto para entrada de alimentos e medicamentos e mercadorias em geral, contribuindo para a asfixia econômica da região, como impediu que refugiados e desesperados palestinos que fugiam, conseguissem abrigo no país vizinho. Um papel vergonhoso.



Hoje, como alguns autores apontam, poderíamos dizer que existem três grandes correntes que atuam politicamente no Oriente Médio. A mais antiga, a que chamamos de pan-arabista, a de modelo religioso do tipo iraniano (que prega a existência de estados islâmicos) e a de modelo religioso turco, de estilo laico, ainda que a maioria da população e do governo seja de muçulmanos (mas, de aproximação com os EUA, ainda que sempre com contradições). A primeira das correntes, fundada na década de 1950 por Gamal Abdel Nasser, encontra-se em baixa na atualidade, ainda que seja a mais lógica e mais coerente de todas.



A mídia, como sempre, formou bloco uníssono de apoio à Israel. As manchetes e os textos brigavam com as imagens. Como disse o jornalista do Haaretz, Gideon Levy, “opor-se à paz é sempre atitude legítima e patriótica; opor-se á guerra é traição, atitude antipatriótica que deve ser combatida”. Esse foi o coro nos jornais de Israel e em boa parte do mundo. Nada do que aconteceu em Gaza nesses anos de bloqueio odioso que matou de fome e de doenças milhares de pessoas e crianças, os cidadãos de Israel não ficaram sabendo, pela completa omissão da imprensa local. Como diz Levy, quando retrata o “sofrimento” dos israelenses com os foguetes do Hamas: “meio milhão de israelenses sob fogo cerrado”, eram as manchetes dos jornais israelenses, quando as bombas mais sofisticas eram derramadas nas cabeças dos palestinos em Gaza.



Nunca tivemos dúvida alguma dos motivos reais que levaram Israel a fazer o que fizeram em Gaza: limpeza étnica, extermínio de um povo, sua anulação e perda completa de identidade. Na história mais recente, podemos dizer que presenciamos quatro momentos de extermínios genocidas, guardadas as proporções. Os processos inquisitórios da Igreja católica na Europa e particularmente na Espanha; as matanças indiscriminadas dos índios americanos com a colonização inglesa dos Estados Unidos; a discriminação e matança de negros na África do Sul durante o regime do Apartheid e, por fim, a matança indiscriminada perpetradas pelos nazistas alemães que matou seis milhões de pessoas, na sua imensa maioria de judeus. Esta matança de 1,5 mil palestinos, nem foi a primeira e talvez não seja a última. Mas, como estranham analistas internacionais, esta ocorre de forma aberta e escancarada e nos primeiros anos do século XXI.



O que esteve e está em jogo?



Não cansamos de afirmar: a criação do Estado de Israel, estado judeu, vem dentro de um projeto mais amplo de colonização do Oriente Médio, em uma estratégica aliança entre o imperialismo norte-americano e inglês (este mais decadente a partir do final da II Guerra Mundial) e o movimento sionista internacional.



A “guerra” desencadeada por 22 dias de forma ininterrupta e das mais bárbaras já feitas contra uma área tão densamente povoada como Gaza, não foi contra Hamas. Isso foi um mero pretexto. Não é uma “guerra” de Israel contra o Hamas, mas um massacre, um genocídio, uma limpeza étnica contra o povo palestino, dentro de um projeto neocolonial. E isso vem desde muito antes da existência do Hamas e mesmo da OLP surgida em 1967. O projeto sempre foi de colonização, de subordinação de um povo e a transformação dos habitantes da palestina em moradores de um simples gueto, com o objetivo claro de ocupar, de tomar todas as terras desse povo milenar. E a forma adotada de colonização, combina um nacionalismo judaico extremado, com aspectos religiosos, que resulta no sionismo moderno. Não temos nenhuma “guerra” na Palestina ocupada hoje. Temos sim um genocídio em marcha por lá.



O que deve ficar sempre claro e a mídia grande não mostra: o caráter do Estado israelense, a sua natureza. Esse é um estado racista, discriminador, um estado étnico-relgioso, onde todos os não sejam judeus são discriminados de forma sistemática. Não possuem os mesmos direitos. Ganham salários de até menos da metade dos judeus. Trabalham mais horas. E ficam sujeitos a todos os tipos de discriminações, humilhações. Agora mesmo estuda-se banir os dois únicos partidos árabes que funcionam e que elegem até cinco parlamentares no Knesset (paramento de Israel).



Israel e seu povo judeu sentem-se como se fossem o “povo eleito”. Mas por quem eles foram “eleitos”? Claro, segundo dos seus livros sagrados, em especial a Torá, foram “eleitos” pelo seu deus, Jeová, que prometeu a esse povo uma terra. Na verdade, as elites judaicas de três mil anos usaram a força de sua religião, para implementarem seu projeto colonial em busca de terras.



No entanto, os que implementam hoje esse projeto, nada tem de religiosos. Não seguem uma linha sequer dos seus livros que deveriam ser considerados – por eles – como sagrados. Veja o que diz em Levíticos, 19:18: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Ora, não diz que devem amar só os judeus, mas quem esteja próximo. As atitudes do governo de Israel contra os palestinos nada tem de “amor”. Ao contrário, é exterminação de um povo. Esse é um estado que vive e precisa da guerra constantemente. Não tem fim.



O estrago feito em Gaza



Do lado palestino ainda contam-se os cadáveres. Boa parte deles só virá à tona mesmo quando os escombros forem removidos. Os números falam que se aproximam de 1,5 mil mortos. Os dados mais atualizados que conseguimos obter pela Internet são os seguintes:



• 16 prédios de ministérios do Hamas foram destruídos;
• 4.100 casas foram completamente destruídas, derrubadas, demolidas, bombardeadas;
• Pelo menos outras 17 mil casas ficaram seriamente danificadas;
• 31 quartéis e postos policiais foram destruídos;
• 20 Mesquitas, sagradas para os muçulmanos, foram totalmente destruídas;
• 1.500 fábricas, pequenas oficinas, lojas e outros estabelecimentos comerciais foram completamente destruídos;
• 53 escolas foram arrasadas, inclusive duas da ONU, onde morreram 40 crianças;
• Pelo menos dois hospitais foram destruídos;
• O parlamento palestino foi atacado;
• A Universidade Islâmica de Gaza foi bombardeada;
• O quartel central do Corpo de Bombeiros foi destruído (os incêndios sequer puderam ser minimamente combatido por falta de equipamentos).



Como diz o colega Laerte Braga, só mesmo uma “horda de bárbaros” poderia fazer uma coisa dessas contra uma população indefesa. E, desgraçadamente, a grande mídia ainda hipocritamente alardeava que Israel tinha mesmo o “direito de se defender” (sic). No fim da história, o Davi palestino vencerá o Golias israelense, qualquer que seja o seu tamanho. Quem viver verá.



Crimes de Guerra



Avolumam-se as acusações de crimes de guerra contra Israel. Nesta terça-feira, dia 20 de janeiro, o secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, coreano, visitou a sede de uma das escolas bombardeadas, arrasadas. Afirmou que há indícios de massacre. Mas não usa o termo “crimes de guerra”. Os responsáveis pela Agência da ONU para Refugiados palestinos (UNRWA, na sigla em inglês), vão mais longe. Estes falam em indícios de “crimes de guerra”. Senão vejamos.



Nos últimos dias deu entrada na Agência Internacional de Energia Atômica, protocolado por vários países árabes, uma denúncia a ser investigada de que Israel usou munições com urânio empobrecido nos ataques contra a população palestina. Esse urânio aumenta a eficiência e a penetração das bombas e dos projéteis. Mas, ele é potencialmente cancerígeno. A denúncia vai ser investigada.



As organizações humanitárias Anistia Internacional e a Human Rights Watch, denunciaram mais dos tipos de armamentos não convencionais utilizados: a) munição a base de fósforo branco, que causa graves e prolongadas queimaduras na pele e b) bombas com pó de tungstênio, que se fragmenta quando explodem e chega a dissolver a pele humana. Um verdadeiro horror. Uma carnificina. Mortandade generalizada e de forma cruel.



A questão que se coloca hoje é quem tem poder para instalar esse tribunal internacional que julgaria Israel por esses crimes de guerra? Poderia ser o Tribunal Penal Internacional, mas esse caminho ficaria mais difícil na medida em que Israel não reconhece esse Tribunal (ademais nem os EUA) e, portanto não teria direito de defesa. O outro caminho possível é o Conselho de Segurança da ONU aprovar uma Resolução e criar um Tribunal específico para isso, como foi o da Bósnia, para julgar os eventuais crimes de guerra cometidos naquele conflito nos Bálcãs. Hoje, mesmo com a posse de Obama, dificilmente acho que o CS/ONU aprovaria um tribunal dessa natureza.



Resta-nos o caminho das denúncias, as mais amplas possíveis, por todos os cantos do mundo, como vem sendo feito pela Internet. Aqui mesmo em São Paulo, aonde dezenas de entidades nacionais vem se reunindo desde o dia 29 de dezembro de 2008, para formar um Comitê de Solidariedade ao Povo Palestino, na última reunião realizada no dia 19 de janeiro, ficou formada uma comissão para tentarmos montar, ainda que de forma simulada, um Tribunal para julgar Israel por Crimes de Guerra, tendo os Estados Unidos como co-réu. Fizemos isso com relação ao imperialismo norte-americano em 21 de abril de 2006, durante o Fórum Social Brasileiro – FSB, na cidade de Recife, ao qual tive a honra de ser o secretário-executivo pelo Cebrapaz. O referido Tribunal foi presidido pelo meu colega sociólogo e teólogo François Houtart, belga, que veio ao Brasil especialmente para essa tarefa. Tivemos testemunhas de acusação, uma delas Dr. Fawzi El Mashni, que falou pelos palestinos. Os americanos tiveram amplo direito de “defesa”, com um advogado fazendo esse papel. Tivemos promotoria de acusação, que leu um verdadeiro libelo de acusação. Muitas testemunhas, índios, latino-americanos. E um grande time de jurados, compostos pelas maiores entidades nacionais. No final, o imperialismo foi condenado. Essa foi uma experiência que vem do Tribunal Russel dos Direitos humanos, instalado pela primeira vez em 1968, para julgar crimes de guerra no Vietnã, instalado pelo próprio filósofo e matemático inglês. Quem sabe isso dará certo em relação à Israel. Enquanto não chega o sonhado Tribunal de Jerusalém.

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