Kleber Mendonça Filho e os críticos Celso Marconi e Fernando Spencer

Reflexões nostálgicas sobre a influência do cinema e da crítica na vida e na cultura do Recife.

Kleber Mendonça Filho | Foto: Reprodução/TelaViva

Publico a seguir o texto escrito pelo cineasta Kleber Mendonça Filho. Um texto escrito para sua ficha de inscrição no Sindicato Francês da Crítica de Cinema, de âmbito internacional, e que foi traduzido por mim. Para que o nosso trabalho – meu e de Spencer – seja conhecido pelo pessoal do Brasil.

Olinda, 05. 07. 2021

“Estes são os jornais que me fizeram ficar amoroso do cinema. Depois, a crítica veio confirmar essa amorosidade. Quando eu era menino, nos anos 1970, o Diário de Pernambuco consagrava uma página cotidiana aos filmes em exibição no Recife. Cada cinema tinha seu logotipo e ali se anunciava a sua programação. Os anúncios tinham uma verdadeira qualidade gráfica, eles eram em preto e branco, acompanhados de desenhos originais adaptados a uma impressão muito contrastada. Certas pequenas informações faziam toda a originalidade de cada anúncio, como as menções “em cores”, “70 mm”, “Panavision”, “Cinemascope”, a classificação, o nome dos atores, os logotipos dos estúdios (Fox, Columbia, Gaumont, Embrafilme, MGM, etc), e às vezes um pequeno texto publicitário. Informações que me atraiam para ver os filmes.

E depois, com a idade de sete ou oito anos, eu fiz uma descoberta: eu vi que as páginas seguintes continham textos que falavam de filmes. E identificando as fotos, ou qualquer palavra ou título familiar, eu pude descobrir que eles evocavam os filmes da página precedente.

No Diário de Pernambuco era Fernando Spencer que escrevia sobre o cinema. No Jornal do Commercio era Celso Marconi. Eu então descobri que existem dois tipos de escrita diferentes: um é puramente descritivo, o outro reage ao filme, faz conhecer um sentimento, às vezes negativo, e outras positivo. E isso me deu ainda mais vontade de ver os filmes.

A etapa seguinte de minha aprendizagem foi a de poder então, após ter visto os filmes, confrontar minhas próprias impressões com o que havia sido escrito nos jornais. Às vezes eu tinha visto um filme e eu me dava conta em seguida que ele falava de fato de uma outra coisa do que eu pensava ter visto ou eu compreendia. Talvez porque as legendas eram muito rápidas. De outras vezes eu ficava contente de constatar que o filme que eu havia visto era o mesmo do qual eu tinha lido no jornal, em termos de história, e de ação. Às vezes eu também ficava decepcionado: e essas foram minhas primeiras divergências com a crítica. Eu pensei que eu tinha o mal de achar que o nível de autoridade, que era conferido a esses textos , devia-se ao simples fato de ser publicado num jornal. E isso me ocorre ainda hoje.

Depois, ainda muito jovem, eu fui apresentado ao senhor Spencer em pessoa, porque ele trabalhava na Fundação Joaquim Nabuco, onde minha mãe também trabalhava. Ao lhe apertar a mão, eu tive a impressão de me aproximar do cinema como se ele fosse a encarnação em carne e osso dos filmes. Isso não eram páginas de textos num jornal, mas um homem que portava lunetas e tinha o ar gentil. Eu tinha encontrado um crítico, um expert, uma prova viva da existência do cinema. Os inúmeros cartazes e fotos de filmes e o cheiro de cigarro no seu birô me permitiram essa certeza.

Em seguida, me é chegada outra coisa. Eu tinha descoberto lendo os jornais que o senhor Spencer e seu simpático rival, o senhor Marconi, realizavam ambos filmes e faziam parte disso que se chamava o “movimento Super-8”. Eles eram ao mesmo tempo críticos e cineastas.

O tempo passou e graças a esses dois homens eu compreendi que o cinema e a crítica não são ciências exatas e que a perfeição não existe, tanto na imagem quanto nas páginas dos jornais. A tinta dessas páginas talvez escurecia meus dedos, e isso era considerado como “normal”.

Mais tarde, seguindo os passos do senhor Marconi eu me tornei crítico no Jornal do Commercio, e como o senhor Spencer eu fui diretor da seção de cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Eu assim tomei consciência do caráter cíclico da vida, e do fato de que se nós vemos cada coisa diferentemente, nós somos igualmente todos influenciados uns pelos outros. O cinema tem seus próprios fantasmas, alguns se encontram seguramente no interior da câmera ou ao lado do quadro. Existem fantasmas nos supermercados que antes tinham sido fantasmas no cinema ali exposto. E também há fantasmas nas páginas dos velhos jornais e revistas, misturando ideias que existem lá, repousam lá e são ainda bem vivas.

Kleber Mendonça Filho”

15 mil por dia nos cinemas do Recife

Mais de 15 mil pessoas (15.136) vão ao cinema no Recife, numa média diária a que chegou o Instituto Nacional de Cinema, através de levantamento feito da venda geral de ingressos padronizados, no período compreendido entre setembro de 1969 e maio de 1970. Uma estatística que vem comprovar que o cinema continua sendo uma das diversões mais populares ao lado do futebol, da TV, das praias, dos parques públicos.

Os cinemas do centro da cidade, logicamente, têm a maior frequência, sendo que o São Luiz recebe o maior número, com 2.155 espectadores contra 1.502 do Moderno, 1.281 do Art-Palácio e 965 do Trianon. A média atingida pelo Cinema de Arte Coliseu foi de apenas 315 espectadores por dia, sendo 171 inteiras e 144 estudantes. No período de setembro/69 a maio/70 frequentaram o Cinema de Arte Coliseu 85.174 espectadores, sendo 38.987 estudantes. Cinema, na sua forma mais cultural/artística, ainda não é uma diversão das mais populares.

Nesse mesmo período, frequentaram o São Luiz 582.064 espectadores, 406.139 estiveram no Moderno, 345.915 assistiram a filmes no Art-Palácio e 260.838 no Trianon.

Por mais incrível que possa parecer, o cinema que teve a menor média foi o Ideal, com somente 195 pessoas por dia, enquanto o Glória, que fica no pátio do Mercado de São José, muito próximo portanto do Ideal, atingiu uma média de 971 espectadores, maior do que a média do Trianon, que fica em plena Avenida Guararapes. O público do Glória é todo especial, sem dúvida, pois do total de 971 pessoas só 73 eram estudantes, não atingindo nem dez por cento do total de frequentadores. Já no Cinema de Arte Coliseu, a média de meia-entrada é quarenta por cento, mais ou menos.

Essa é uma estatística das mais interessantes, feita pelo Instituo Nacional de Cinema, Delegacia Regional de Pernambuco. Da mesma maneira que criticamos, quando o INC local tomou suas medidas exageradas, prejudicando a própria estrutura da cinematografia no Recife, também elogiamos quando acerta, com um levantamento desse tipo.

(Jornal do Commercio, Recife, 20.10.1970)

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