“Lemming – Instinto Animal”:Luta de classe em Bel-Air

Suspense do diretor francês Dominik Moll analisa confronto entre casais jovem e de terceira idade numa luta em que rancor e intriga se impõem

Nada mais propício à insanidade e à inveja do que um lar arrumadinho, com uma esposa jovem e um marido bem sucedido. Pode atrair a ira daqueles cujo casamento perdeu-se em intrigas, repetições e falta de inventividade. Em “Lemming – Instinto Animal”, do diretor francês Dominik Moll, o casal Alain e Benédicte Getty vive num bairro classe média de uma cidade do sul da França, com todo o conforto que sua profissão de engenheiro de automação lhe permite. O sobrado onde mora é daqueles com jardim, ampla sala e vista para a rua. Seu interior, decorado ao gosto moderno, em que tudo deve ser clean, poucos móveis, e prático, torna o clima vazio e solitário, mesmo quando seus moradores por ele se movimentam. É nesse ambiente que ele, o casal,  vai receber Richard e Alice Pollock, patrão de Alain, para jantar e, a partir daí, sem perceber, sua vida sofrerá profundas mudanças.



           


Ela, Alice, já não esconde suas desavenças. Destrata o marido sem a menor cerimônia diante dos anfitriões e, inclusive, sem o temor de parecer grosseira e antipática. Ele, Richard, tenta manter as aparências, mas as diatribes de Alice são suficientes para traçar o perfil que os anfitriões e o público terão dele. À Alain e Benédicte não resta senão comportar-se como bons anfitriões e fazer de conta que tudo não passou de uma encenação malsucedida. Ocorre que nestas seqüências, em que se tenta ver mais comportamentos do que prenúncios de uma análise empreendida pelos roteiristas Gilles Marchand e Dominik Moll, estão as contradições de uma sociedade em que as relações são ditadas pelas aparências. Quando ultrapassam este estágio, é porque um dos parceiros está canibalizando o outro.


 


             


Casal burguês impõe seus baixos instintos


          


 


“Lemming – Instinto Animal” trata justamente desta questão, ou seja, de como Richard (André Dussollier) e Alice (Charlotte Rampling) procuram despertar em Alain (Laurent Lucas) e Benédicte (Charlotte Gainsbourg) seus baixos instintos. Alice debocha dos bons modos de Benédicte, a ponto de humilhá-la, sem que esta refute suas intenções. Para ela, tudo não passa de mau humor passageiro. E Richard usa Alain para justificar suas escapadas com prostitutas. Desestruturar a vida do jovem casal passa a ser o objetivo do casal de terceira idade. Há nisso muito de inveja, de manipulação, mas é também uma forma de vingança, por estar num estágio que para ele, o casal de meia idade, se perdeu há muito tempo. Surgem entre eles relações que não se completam; noutras vezes é um diálogo entre Alice e Benédicte que mostra o quanto ela, Alice, gostaria de ser como a ex-vendedora externa de remédios. Mas sua vida, por demais marcada por traição do marido, rancor e amargura, já não lhe permite ter ilusões.



           


É no rosto da grande atriz Charlotte Rampling (“Porteiro da Noite”, “Os Deuses Malditos”, “Giordano Bruno”) que se desenrola toda a máscara e dor de Alice; ela nada espera do marido. Daí a necessidade de magoá-lo, atingi-lo através da sedução do jovem engenheiro. É como se este, que rende mais-valia a seu marido, tivesse também de satisfazer seus desejos sexuais. O mesmo se dará com Richard, em relação a Benédicte. Não lhe basta arrancar-lhe toda sua criatividade, também quer dele o que mais lhe é valioso: o amor e o corpo de Benedicte. Essa dualidade que perpassa “Lemming – Instinto Animal” traz outro elemento, o da simbologia, de que o mal vem de fora, de algum canto do planeta, para articular a desestruturação do casal Getty. Chega na figura do lemming, lemingo, do título, bichinho parecido com o hamster, porém maligno, raivoso e intimidador, que vive na região gelada da Escandinávia. É através dele que se projeta a ira de Alice. Ela é como esse bichinho, aparentemente, inofensivo, mas feroz quando encurralado.


 


           


Visão católica de pecado e culpa


           


 


Essa simbologia do que chega do exterior para despertar instintos selvagens e malignos, foi usada por Alfred Hitchcock em “Os Pássaros”, através das aves que surgem nos fios de eletricidade da rua, para aterrorizar durante horas uma família classe média americana. O mal, diz-nos Hitchcock, repetido agora por Moll, sempre vem de fora. Uma visão por demais católica do processo de culpa, envolvendo o pecado, mas os lemingos não vêm purgar pecados, sim para acentuar os malefícios do prazer. O que dá no mesmo. No caso, o que causa toda dor e sofrimento ao casal Getty vem de seus patrões, Richard e Alice, que acumulam um passado de desvios e rancores.



            


São eles que trazem suas desavenças para o lar de Benédicte e Alain. Não de forma escancarada, mas sutil, de quem vem para ajudar, ser amigo, e termina tornando a vida dos outros, um pesadelo, numa forma de luta de classes às avessas. Moll não usa de malambarismos, cenas engenhosas, para narrar sua história. Usa apenas quatro personagens em cena, na maioria contracenando a dois. Numa delas, Benédicte descobre que Alain não merece mais sua confiança, porém, não o declara. Seu comportamento, no entanto, muda a partir daí.



            


É quando ela atrai Alain para a zona de sombras, de pesadelos, semelhantes à Karen, de Roman Polanski, em “Repulsa ao Sexo”. Ela age como se tomada pelo mal do lemingo: grita com Alain, tenta magoá-lo, atrai-o para armadilhas das quais ele não sabe como escapar. Ele, por sua vez, tem um diálogo estranho com Richard no carro, quando vão para um fim-de-semana na praia. Conta-lhe que Alice tentou lhe seduzir, e o patrão, ao invés de recriminá-lo, critica-o violentamente por não ter satisfeito os desejos de sua mulher. Alain, porém, não sabe como reagir; tem seus princípios e não os quer trair. Não percebe que era justamente isto que Richard queria, uma forma de compensar a Alice pelo que não mais lhe dava. O papel de Alain mudaria, pois, além de garantir seu salário na empresa, outro papel de lhe caberia: o de satisfazer os desejos da patroa, para encobrir o fracasso matrimonial de Richard.


 


             


Um filme que se acompanha sem grandes dificuldades


            


 


Moll, com estes elementos, torna “Lemming – Instinto Animal” um filme diferente, daqueles que acompanha sem dificuldade. A questão é ver o que revelam as camadas e subcamadas que são diversas. Uma delas é o comportamento de Benédicte, depois da tragédia de conhecer Alice. De frágil e quieta, ela se revela sensual, perversa e submissa aos caprichos de Richard. É em reação a seu comportamento que Alain irá se mostrar capaz de retomá-la, e o faz de modo premeditado, insuflado pelas armadilhas do casal Richard/Alice. Ao contrário de “Os Pássaros”, de quem não se sabe de onde vieram, dos lemingos se sabe tudo, o que termina por tirar parte de seu mistério. É como se Moll não quisesse deixar dúvidas sobre o paralelo entre eles e Alice e ao espectador coubesse apenas ligá-los para entender a simbologia que o comportamento de ambos encerra.



          


Apossar-se do casal por lhe invejar a juventude e a boa estrutura do lar, torna-se uma armadilha para o próprio casal Richard/Alice. Poderia ter usado outro estratagema, menos explícito e mais sutil. Alain e Benédicte, enfim, mostraram-se menos manipuláveis do que Richard e Alice esperavam. Afinal, o invento que aumentou o capital da empresa de Richard, termina por ser o mesmo que permitiu a vingança do casal Getty. Moll articula esses mecanismos sem abusar da grandiloqüência, preparação de cenas ou mesmo artifícios que, ao invés do aumentar o suspense, tirariam encanto e o impacto da história. Até mesmo o final, que poderia ser criticado, termina por se encaixar no que ele projetou desde o início. Os lemingos, como os Pollocks, acabam por se ir, deixando o casal Getty entregue a seus próprios enigmas.


 


 


“Lemming – Instinto Animal” (Lemming). França, 2005, suspense, 129 minutos.  Roteiro: Gilles Marchand e Dominik Moll. Direção: Dominik Moll. elenco: Laurent Lucas, Charlotte Gainsbourg, Charlotte Rampling e André Dussollier.

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