Manhã

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O dia devagar faz seus sons, anunciando-se ao mundo.
O homem volta aos poucos de um silêncio longo.
Seus olhos fecharam-se para conter lírios e delírios.
Os sonhos reviraram o que ele fez e o que ele quis.
A noite, então, insiste. Mas o homem levanta-se para vencê-la,
com suas unhas untadas de pesadelo e esperança,
além de poderosas armas, coisas do mundo: água, louças e talheres.
Erguido o homem lava-se para livrar-se da noite.
Outro é o dia, mas mesmo é o homem que o sol banha.
(É só abrir os olhos e a gente entende isso no espelho, nas rugas do rosto.)
É dia:
isso já não se discute.
Numa dobra do planeta chamada cozinha: uma porção de noite resiste.
Aromática e negra, no fundo de um pote plástico, a noite é apenas pó.
O homem esquenta a água e pensa:
A vida é um funil sem filtro. Quem passa por ele?
Com seu carinho esquisito, o homem joga o negro pó no funil.
A água cai e sobe a fumaça – dançarina piscando e sorrindo.
O pó da noite liquefaz-se para dar ao dia seu perfume.
O homem ri – vencerá outra vez a noite?
Devagar o homem bebe a noite com açúcar.
O homem enche o dia desse negro dinheiro que é o café,
que compra o seu sustento, que sustenta o sol lá em cima
que sustenta o dia que sustenta o homem que venceu a noite
em doces goles, que levaram a noite para seu estômago
que fica, então, finalmente, cheio de estrelas.
O homem vai para o trabalho forte e fervendo um perfume
que faz bater, em seu coração, durante o dia, a escuridão vencida.
A noite virou a alma do homem de dia, que assim pode aprender:
qualquer vitória é pouca
e mesmo coada e doce
a escuridão resiste ao trabalho
viajando conosco em nossa cela de alegria
que chamamos tão intimamente de corpo.

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