“Maria”: A construção do Cristo e a negação do fundamentalismo
Em filme que discute o papel de Maria Madalena como apóstolo e a construção de Jesus, como Cristo, diretor ítalo-americano Abel Ferrara critica o fundamentalismo e o papel da mídia
Publicado 12/10/2007 17:12
De repente, em meio a uma crise familiar, o líder de audiência em horário nobre desaba. Oferece sua vida em troca da sobrevivência de seus entes mais queridos. Depois de encarnar Maria, mãe de Jesus, em um filme, a atriz entra em crise mística, abandona a carreira e perambula pelos lugares sagrados de Jerusalém. A ligá-los a figura de Jesus que, para o entrevistador de programa de TV, é tão só o centro de um tema que intriga bilhões de pessoas ao longo de dois milênios. E, para ela, Ele é o Messias que dá sentido à sua vida. Com estes dois fios, o diretor ítalo-americano Abel Ferrara discute em seu filme “Maria”, prêmio do Júri do Festival de Veneza, 2005, a desumanização da sociedade moderna, o abandono das relações entre as pessoas e o poder da mídia em atrair, como num redemoinho, a atenção do público para aspectos secundários da vida de Cristo.
A religião é o que menos lhe importa. Ignora a crença, a necessidade de entrega ao ideal cristão, a identificação com Jesus. Interessa-lhe outro percurso: a da construção do Cristo, a partir do carpinteiro Jesus. Durante seu programa, o apresentador Ted Younger (Forest Whitaker) entrevista teólogos das mais diversas nacionalidades sobre Sua trajetória. E o modo como, em cada momento histórico, Ele foi visto, qual o significado de Sua pregação e Sua relação com os fiéis e as pessoas que, na época, não atentaram para o que Ele representava. Um dos entrevistados diz, sem relutância, que, em Seu tempo, havia muitos iguais a Ele. Pregadores, profetas, homens que procuravam, à sua maneira, explicar o sagrado. Só com o passar dos anos é que Sua Vida ganhou significado para além do conhecido através de seus discípulos.
Maria Madalena resgatada como um dos apóstolos
É nesta tarefa que ganha destaque a figura de Maria Madalena. Ela foi uma de Suas seguidoras mais fiéis. Aquela que soube decifrar Seus ensinamentos e transmiti-los aos demais apóstolos, inclusive a Pedro e Paulo. E traduz uma convivência, uma dedicação que lhe causou muitos dissabores. Um deles a relutância dos demais apóstolos em ouví-la. Outro, o de ser, ela, uma mulher, que deveria conduzi-los e aos demais fiéis a outra etapa do caminho de Jesus, agora Cristo. Uma visão feminista, sem dúvida, do papel que Maria Madalena exerceu antes, durante e após a Crucificação. Mas exposta de uma maneira lúcida, por Abel Ferrara, sem o sensacionalismo de Dan Brown, em “Código DaVinci”. Está mais próxima à de Pier Paolo Passolini, em “Evangelho Segundo São Mateus”.
Ao fazê-lo, desta forma, Ferrara humaniza tanto a Jesus quanto a Maria Madalena. Não são divindades. São Protagonistas de uma história que sofreu tantas alterações e passou por tantas versões que é necessário retomar o fio normal, para que se possa entender a Sua construção. Os teólogos, ao longo dos programas de TV, vão acrescentando visões que terminam por dar sentido ao que tenta elucidar Ted Younger. Maria Madalena assume uma função que, na opinião dos entrevistados, ela possuía. Não era marginalizada ou exercia papel secundário. Sua marginalização se deu na etapa de construção do Cristo e do Cristianismo. Nenhuma menção faz os Evangelhos escritos pelos demais apóstolos. Simplesmente foi banida. Recuperar sua importância é o que pretende Younger. Ela não foi prostituta, renegada, alguém que tentou se apropriar da proximidade momentânea que teve com Cristo. Foi muito mais do que isto e ele, o entrevistador, precisa colocá-la no centro da história.
Figura de Maria Madalena foi apagada das Escrituras
As explicações dos teólogos vêm num encadeado, ilustradas por cenas do filme em que Maria Palesi (Juliette Binoche) atuou como Maria Madalena. É como se Ferrara a fizesse retornar ao momento em que a história transcorria. Está ali, diante do espectador. Ela fala a Pedro e a Tomé. É vista na praia e no barco em pleno mar. Significa que estava ao lado de Jesus nos momentos em que Seus milagres se davam. Sabia, portanto, do que acontecia. Não há como duvidar: ela era um dos apóstolos. Esta condução realista de um fato em si explosivo, trazido à discussão nos últimos anos, mostra o quanto foi necessário apagar uma figura importante para se construir o Cristo, ladeado apenas por homens. Quanto de história oral e de escritos não foram necessários para que sua contribuição fosse negligenciada e tida como mistificação? “Os Evangelhos Segundo Maria Madalena”, recém divulgados, podem ser uma resposta para quem se interessa pelo tema.
Ferrara levanta estes questionamentos sem apelar para explicações bombásticas. Deixa as intervenções dos teólogos fluírem, intercalando-as com cenas do filme “Este É O Meu Sangue”, em que Maria Palesi atua. As seqüências então se fundem, com uma elucidando a outra. Em torno delas circulam outras histórias. A de Maria Palesi tomada por crises místicas, vontade de entrar em contato com lugares e fatos que a coloquem em contato com o Cristo. Perambula por uma Jerusalém povoada de rabinos, cristão dos mais diversos matizes, israelenses que caminham pelas ruas, desligados de suas preocupações. É uma tentativa vã, a cidade não é mais a mesma; de repente, pai e filho ficam sob fogo entre israelenses e palestinos. Um fato real; visto na televisão planeta afora. Um instante de pânico e realismo extremo. Noutra é uma bomba que tira a tranqüilidade de uma família durante o jantar. É o mundo pós-Cristo, dois mil e sete anos depois.
Apresentador está mais preocupado com audiência de seu programa
Esta é a realidade atual, diz Ferrara em cenas de grande impacto. Nada mais resta que o conflito Israel/Estado Palestino. Os lugares sagrados estão lá, as marcas da presença do Cristo estão lá, as crenças, porém, não são as mesmas. O homem é outro. Ferrara o ilustra com o comportamento de Ted Younger, apresentador de programa líder de audiência, que não encontra tempo para a mulher Elisabeth (Heather Graham), que espera um filho seu. Sempre está às voltas com a produção do próximo programa, com a audiência, com o entrevistado. Isto é importante para ele. Depois vem a mulher. A ferocidade da mídia em reforçar a figura do Cristo, mesmo “desmistificando-o” não lhe passa pela cabeça. Aumenta sua credibilidade por tratar de temas sérios, ainda que polêmicos. Quando chega em casa, diz à mulher:”Desculpa, baby, é muita pressão”. O humano, diante da pressão da mídia, desaparece. Ela o domina. Obriga-o sempre a estar preparado para a próxima edição. A relação entre eles é que é importante. Rende-lhe dividendos pessoais e dinheiro para a emissora.
A mídia é, assim, onipresente. Nada pode lhe escapar. Todos agem em sua função. Se ela não veicula, o fato, o produto, a obra perde a importância. Tony Childress (Mathew Modine), marido de Marie Palesi e diretor do filme “Este é o Meu Sangue”, o sabe. Interessa-lhe a polêmica e a bilheteria. Ted Younger precisa dele, para ilustrar o tema de seu programa: Cristo. Ele necessita de Younger para ampliar a receita de seu filme. Em meio a este jogo de interesses, Ferrara acrescenta outro fio, embora tênue: o dos fundamentalistas. A abordagem de Childress, destacando o papel de Maria Madalena como apóstolo, os desagrada. A fúria com que agem dá a dimensão do perigo que representam. Acreditam mais no Cristo construído ao longo dos milênios do que na verdade. Não refletem sobre esta construção, reagem com violência por serem fiéis ao escrito, ao estabelecido pelos teólogos em cada etapa da elaboração da imagem e da história de Jesus, tornado Cristo.
Fundamentalista não reflete sobre a realidade
Fundamentalista é, então, quem é incapaz de refletir sobre essa construção e procurar a “verdade”. Não uma verdade qualquer, mas a de sua crença, de sua identidade, de sua necessidade de se projetar no mito para justificar sua própria existência. Funcionam como horda, ao atacar Younger e Childress e depois a este. Não há diálogo ou contestação, apenas o ato de tentar, pela violência, evitar que a obra chegue ao público. Tensa é a seqüência em que Childress enfrenta-os, tenta exibir ele mesmo o filme e a polícia o ataca. Se antes ele se valia da polêmica para aumentar a bilheteria de sua obra, agora compreende o quanto de incompreensão ainda há sobre O Cristo e Maria Madalena.Aos fundamentalistas pouco importa se ela conviveu com Ele ou não. As Escrituras não lhe dão destaque, quando muito uma referência e outra – por que levantar questões se a “verdade” já está estabelecida?
A serenidade com que Marie Palesi circula por Jerusalém dá a dimensão do que Maria Madalena pode ter sido. Porém o encontro com a verdade ficou difícil. O fragmentado mundo atual, com suas contradições político-sociais-religiosas, não permite que ela aflore. Qualquer tentativa de resgatá-la pode se transformar numa perseguição ensandecida. Pode ser tomada por blasfêmia, ataque ao sagrado, algo inadimissível. O próprio Childress, embora discuta o papel de Maria Madalena no círculo dos apóstolos, não deixa de reforçar a imagem hollywoodiana do Cristo Loiro, de Olhos Azuis. Uma imagem assentada, aceita pelos fiéis que não refletem sobre os aspectos físicos do Cristo, identificando-o como Deus Filho, Loiro e de Olhos Azuis. Uma sutileza esculpida por Ferrara, assim como a redenção de Younger, a partir do sacrifício a que se submete. Se este queria de volta seus entes queridos, teria de dar algo maior em troca. Justo ele que tentava, à maneira da mídia, ganhar com a polêmica, sem se interessar muito pelos fatos “esclarecidos” em seu programa. Muito pelo contrário, o que lhe importava mais era o índice de audiência.
Ferrara aponta cumplicidade entre mídia e fundamentalismo
Desta maneira, Ferrara aponta a cumplicidade entre a mídia e o fundamentalismo. Cada um se apega a seus objetivos, para manter o que lhe é mais importante: o da mídia, o lucro, conquistado através da audiência, e os fundamentalistas, a manutenção do mito construído, ainda que às custas de sangue e sacrifício.Em 83 minutos, Ferrara dá conta desses aspectos, com uma técnica invejável. Não se perde em digressões, usa diálogos precisos, atores que, mesmo identificados com papéis em superproduções, transitam pelo cinema independente com desenvoltura. As transições (cortes de uma cena para outra) se dão com suavidade. Ambientes e situações mudam sem perda de continuidade e sem que o espectador se perca. E não aborrece. “Maria” contribui para elevar o nível dos filmes em cartaz; pretensiosos e chatos, em sua maioria. É bom assistir a um filme que aborda um tema polêmico sem sensacionalismo e sem ter medo de enfrentar a verdade e os fundamentalistas. Ainda é possível se deliciar com o bom cinema.
“Maria” (Mary). Drama. Itália/França/EUA. 2005. 83 minutos. Direção: Abel Ferra. Elenco: Juliette Binoche, Forest Whitaker, Mathew Modine.