Milei e a crônica de uma morte anunciada na política argentina

Milei assume a presidência argentina em cerimônia controversa, gerando preocupações com suas contradições políticas e medidas impopulares em seus primeiros dias de governo

O presidente argentino, Javier Milei | Foto: Luis Robayo

A posse de Javier Milei no último domingo (10 de dezembro) na presidência da Argentina foi um claro retrato do que espera os argentinos: pequena representação de chefes de Estado e presença de personas non gratas da ultradireita como Zelensky e Bolsonaro.

A cerimônia mostrou ao mundo a diferenças das forças de ultradireita e dos demais atores da política, enquanto os primeiros ameaçam o processo eleitoral todo o tempo, alegam fraudes e põem em xeque a justiça eleitoral (vide o próprio Milei, Trump e Bolsonaro) os segundos respeitam os ritos, se fazem presentes e dão posse aos que ganharam quando perdem, como aqui o fez o presidente Alberto Fernández e sua vice Cristina Kirchner.

Milei é um mar de contradições, associado internacionalmente ao negacionismo climático, tem Donald Trump como uma referência, mas propõe no governo argentino um roteiro oposto ao do republicano que defende um Estado forte nos EUA e é mega protecionista com a economia do seu país, incensa Zelensky, o presidente ucraniano é associado e defendido nos EUA pelo Partido Democrata, adversário de Trump.

O mercado internacional e vários países torcem o nariz para o novo presidente que é contra o casamento gay, aborto, investimentos em educação e ciência e tecnologia, inclusive anunciando o fim do Ministério da Educação no primeiro dia de seu governo. Bom lembrar que o novo presidente chegou a defender o mercado de venda de órgãos e até de crianças durante a campanha eleitoral.

O que vai ser da Argentina nas mãos de Milei não parece ser algo alvissareiro a curto prazo, o presidente eleito está longe de ter uma maioria consistente no Congresso Nacional, lá não existe “centrão” e nem tão pouco emendas parlamentares para agregar apoios no parlamento. Podemos esperar que muitas das promessas do “libertário” apontam para ficar pelo caminho por falta de apoio político. Hoje no Brasil temos um presidente progressista e um Congresso conservador, algo que vive dando problema, imagine um presidente de ultradireita, instável e propenso aos rompantes convivendo com um Congresso majoritariamente progressista…

Milei se diz “libertário”, porém o que defende dialoga mais com as ideias do Libertarianismo, visão de mundo associada aos que defendem suas liberdades individuais acima de tudo e todos, pouco se importando com o que acontece com as outras pessoas. Sem nenhuma empatia humana.

A falácia de acabar com o peso, dolarizar a economia argentina e acabar com o Banco Central não se sustenta, o país não tem divisas em dólares nem para sonhar com a dolarização e esse não parece ser o caminho que vai tirar a nação do caos em que está imersa.

Mas quem quebrou mesmo a Argentina e arrastou para a situação atual a nação que já esteve entre os 10 mais ricos do mundo? Muitos dizem que foi a economia focada no mercado interno criada pelo presidente Juan Domingo Perón nos anos 40 do século XX como a origem dos problemas, mas o país viveu depois disso um pacote econômico chamado Rodrigazo em 1975 após a morte de Perón para abrir a Argentina, marcando o início de um “Estado do mal-estar social” dos nossos vizinhos.

Há um padrão na eleição de figuras de ultradireita como Milei (Argentina), Bolsonaro, (Brasil) Orbán (Hungria) e Meloni (Itália). São todos reacionários, se apresentam como outsiders, fazem um discurso duro, beirando a violência, e flertam com comportamentos de tipo teatral e caricato.

Mas por que esse discurso segue ganhando as eleições, mesmo com o resultado catastrófico desses gestores nos países que são eleitos? O discurso de ruptura sistêmica é marca de todos, acabam apresentando uma realidade que nega as contradições e problemas do capitalismo, propõe um roteiro de agudização na implementação do próprio capitalismo, como se o que essas nações viveram não tivesse sido um real capitalismo. Quando dá errado, e tudo aponta que dará com Milei, argumentasse que estes não foram radicais o suficiente na implementação das medidas de arrocho e enxugamento do Estado, sendo que a conta dessas tais ações de governo sempre cai nos mais pobres que assistem a suspensão de programas de subsídios, obras públicas e amparo estatal, como o argentino já anunciou inclusive.

Arrisco aqui dizer que não há uma esquerda strictu sensu na Argentina com expressão eleitoral, o peronismo é uma construção que reúne um campo muito amplo, com políticos de esquerda, centro e até de direita, Sérgio Massa se situa nesse espectro mais à direita. O país viveu uma sucessão de péssimos e catastróficos governos, Macri perdeu a eleição para Fernández no primeiro turno e entregou o país afundado numa recessão e numa crise que o peronista não conseguiu superar, ao contrário, acabou por agravá-la. A escolha do ministro da economia do governo desgastado e em frangalhos foi péssima, a inflação chegando a mais de 140% ao ano e tudo mais acabou por funcionar como um propulsor de uma radicalização no discurso da mudança extrema abraçada pelos eleitores argentinos.

Milei comete estelionato eleitoral desde que se elegeu, desmente suas próprias declarações, coloca indicações de Macri e da “casta” que tanto combateu no seu governo, sinaliza para os países e governantes que esculhambou durante toda eleição, a exemplo do Lula que foi chamado de comunista, bandido e ladrão. Fez mesmo roteiro com a China, agradecendo e compartilhando o texto que recebeu do presidente chinês em seu Twitter.

O que mais vamos ouvir será “Milei volta atrás”. O candidato era uma caricatura desde a campanha e enganou milhões de argentinos que acreditam piamente que o novo presidente vai conseguir fazer algo novo e bom se dolarizar a economia, romper com o Mercosul, fechar o Banco Central e outras pérolas.

É tudo tão irresponsável que a única coisa possível para Milei é seguir voltando atrás para tentar reunir o mínimo de governabilidade, algo que não me parece nada provável.

Algumas medidas de menos de 24 horas de governo do “libertário” nos mostram isso, Milei revogou a Lei do Nepotismo argentina e nomeou sua irmã (aquela que ele apresentou para  Zelensky como sendo a verdadeira chefe em sua posse) como secretária-geral do governo, reafirmou a privatização da comunicação pública, anunciou o corte dos subsídios para combustíveis e energia, algo que atinge os mais pobres que ficarão ainda mais desamparados e, por fim, acabou com os ministérios do trabalho e do desenvolvimento social, além da educação que já citei aqui. Por aí temos uma pequena amostra do que espera os argentinos. Oremos por eles, vão precisar.

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