Mortes nas ruas

“Os investimentos na modernização dos sistemas de transportes públicos são escassos e os coletivos têm que disputar espaços nas ruas com o automóvel particular, utilitários e outros veículos. “

No ano passado, duplicou o número de mortes de ciclistas em acidentes nas ruas de São Paulo. Os números frios e trágicos são decorrência de mudanças na gestão da mobilidade urbana na capital paulista nos últimos anos. Aos governantes, a prioridade não é o pedestre nem o ciclista — é o automóvel.

O mesmo ocorre com outras grandes cidades brasileiras, como Brasília, onde um grande número de obras urbanas espalham concreto e asfalto por todo lado. Também ali, no entanto, é reino de sua majestade, o automóvel particular, numa distorção que segue na contramão das exigências do mundo atual, que revê a urbanização.

Afinal, não há a menor chance de todo habitante do Planeta ter um automóvel, a começar pelas óbvias razões econômicas, que são restritivas, refletindo as desigualdades sociais. Mas há os problemas de logística na circulação do automóvel, já que não se pode imaginar o que seria um pais como a China se todos os 1,4 bilhão de chineses tivessem e andassem de carro.

As calçadas e passarelas bem-cuidadas e as ciclovias multiuso, não apenas esportivas, retomam seus lugares nas cidades modernas. Não é isso, contudo, que se vê em São Paulo e outras grandes cidades brasileiras, onde as calçadas, quando existem, são esburacadas e desniveladas, difíceis de transitar. E as ciclovias são quesitos de luxo e partes nobres das áreas urbanas.

Por mais que dê preferência ao automóvel, o poder público não consegue ordenar a mobilidade das pessoas. Os cerca de 60 milhões de carros em circulação no Brasil são personagens de enormes engarrafamentos que tomam as cidades brasileiras todos os dias. O trabalhador que não tem carro e depende do transporte público padece com o tempo gasto nos deslocamentos.

A grande conquista dos assalariados nas primeiras décadas do século passado foi a jornada de oito horas diárias de trabalho. Hoje, contudo, grande parte dos trabalhadores gasta entre três e quatro horas nos deslocamentos até seus locais de trabalho, de modo que a jornada diária voltou a ser de mais de 10 ou 12 horas diárias.

Os investimentos na modernização dos sistemas de transportes públicos são escassos e os coletivos têm que disputar espaços nas ruas com o automóvel particular, utilitários e outros veículos. Assim, as políticas públicas de transportes caem na inoperância, mas o País se mantém entre os dez maiores mercados de automóveis do mundo.

Os mecanismos de controle desse mercado estão cada vez mais fragilizados, já que nele vale tudo, especialmente o frágil controle de qualidade. Itens superados ou até mesmo proibidos em outros países são fabricados e comercializados com normalidade aqui, facilitando a operação das montadoras. É um mercado servil, inteiramente subordinado aos grandes fabricantes estrangeiros, que impedem, por exemplo, que o país desenvolva uma indústria automobilística própria.

É bem verdade que o gosto do consumidor local, moldado pela propaganda estabelecida, é tendencioso. Quando as políticas sociais do governo federal fizeram surgir uma nova classe média no País, a primeira opção de consumo desses beneficiados era um automóvel. Na mesma época, uma pesquisa detalhada entre jovens, nos Estados Unidos, revelava que entre os dez primeiros tópicos de uma lista de bens pleiteados por aquela faixa de público não estava o automóvel.

De todo jeito, as medidas já adotadas ou anunciadas pelos nossos governantes são favoráveis ao carro particular. Pedestres e ciclistas que saiam da frente, se não quiserem virar estatísticas de mortos no trânsito.

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