“Notas Sobre Um Escândalo”: Paixões reprimidas

Em filme sobre a relação entre duas professoras de escola secundária do subúrbio londrino, o diretor inglês Richard Eyre escapa a clichês e não toma partido por uma das personagens ou pelas situações explosivas por elas vividas

O cinema contemporâneo, livre das pseudos modernidades, se dá bem ao mergulhar em temas complexos, que exigem simplicidade e sutilezas para atingir seus objetivos. Em “Notas Sobre Um Escândalo”, baseado no livro da escritora Zoe Heller, o diretor inglês Richard Eyre – de “Íris”, sobre a escritora inglesa Íris Murdoch – usa duas grandes atrizes, Judi Dench e Cate Blanchett, para contar uma história sobre a solidão, a carência e o ocaso de uma velha professora na Londres de hoje. Ela se encontra no estágio em que juventude se foi e seus atrativos se resumem à sua autoridade de mestra numa escola secundária de subúrbio e às artimanhas que urde para conquistar sua colega de trabalho. A aproximação do objeto de sua paixão se dá por meio de investidas nuançadas, favores não muito explícitos, insinuações na vida privada da outra e, finalmente, armadilhas que buscam aprisionar àquela que busca conquistar.


                  
                    


Nada que cause o furor não programado, ou tentativas que explicitem sua intenção. Quando ela, Bárbara Covett (Judi Dench), acaricia a mão de Sheba Hart (Cate Blanchett), vê-se que além da atração que esta exerce sobre ela, há algo mais. São de classes distintas. Sheba vem de rica família de professores – seu pai foi proeminente economista -, veste-se com estilo, é sofisticada, e logo vira o centro da atenção do colégio secundário onde leciona artes para as mais diversas etnias. Bárbara, de classe média, não, vive sozinha, com um gato, que um dia lhe escapa, e não tem mais ambições, tanto que nem se dá ao trabalho de levar um relatório condizente com seus conhecimentos para uma reunião pedagógica. Sem o perceber, aos poucos, vai nutrindo inveja pelas virtudes e encantos da Sheba.


 


                 


Bárbara não retrocede antes de alcançar seus objetivos
                 
                 


 


Com este arcabouço, Eyre, ajudado pela obra de Heller e a eficiente fotografia de Chris Menges, tece uma série de seqüências que realçam o perfil de Bárbara. Ela é caçadora. Sabe como atacar, conquistar e se tornar útil. O modo como entra na vida de Sheba mostra que ela não se dará por satisfeita enquanto não atingir seus objetivos. Experiente, usa sua autoridade para mostrar à jovem professora como lidar com insubmissos alunos da periferia. Impõe-se e pronto. E a outra ainda fica a lhe dever favor. E, como perdeu a esperança de provocar mudanças na estrutura social, a partir da educação, projeta a imagem dos jovens proletários como se, de antemão, eles fossem fracassar em seu intento de ascender na estrutura social inglesa. Na sua opinião eles continuarão nos estratos mais baixos da sociedade, como mão-de-obra nem sempre qualificada. É através de comentários desta natureza que entendemos a amargura que predomina em sua vida.


 


Ela não nutre simpatia por ninguém. Apenas se deixa tomar de amores por Sheba. Em off, seu estado de espírito aflora. É como se ela se expusesse apenas para o público, sem fazer o mesmo com a “amiga”. Cada troca de impressões, minutos ao lado dela, aproximação mesmo limitada de seu cotidiano, é suficiente para ela sonhar que está alcançando seus objetivos. Mesmo que não passe de desejo, pois Sheba não se dá pelo que está acontecendo. Ela, Bárbara, sabe que está se iludindo, porém não se importa. Chega a discutir com a “amada” sobre a falta de interesse desta por ela, como se a outra estivesse correspondendo às suas investidas. Nada disso, em “Notas Sobre Um Escândalo”, é passional, derramado. O sentimento não aflora da forma que se espera, com declarações, carícias, trocas de olhares de cumplicidade. Tudo está mais no desejo de Bárbara atrair Sheba para seu campo do que numa relação que vai num crescendo.


 


                 
Diretor não manipula emoções do público
                 


                 
                


Ao escolher este caminho, Eyre não cria armadilhas para que o público torça por Bárbara. Coloca-o diante de uma dama já na terceira idade, sem grandes atrativos físicos, modo e comportamento surpreendentes que a diferenciem de outras mulheres em sua posição e, assim, tornando-a atraente para Sheba. Ela mesma percebe, desde o início, que não basta se arrumar para a envolver, pois isto a exporá ao ridículo. A exemplo de quando vai ao salão se embelezar para visitá-la. Chega à casa de Sheba como estivesse indo a uma festa de elite. E logo abandona esta opção, voltando a seu próprio estilo. Às vezes exacerba na demonstração de carência e no jogo de ciúmes, para chamar atenção para si, sem resultado positivo. Mesmo assim continua a caçar, armar seu bote. 


              


Estas recaídas são insuficientes para Eyre torná-la digna de compaixão ou de ódio por parte do público. Ele não a estereotipa, a torna frustrada, arrependida por estar no ocaso da vida. Não a enche de trejeitos, frases ardilosas, vestes estrepitosas, nem a torna vítima de seu meio, insinua apenas que ela teve um rumoroso caso com uma de suas colegas e manteve sua posição na escola onde leciona. E Judi Dench dosa sua interpretação, acentuando uma e outra nuance, elevando ou baixando a voz no momento certo, mostrando-se na medida exata do personagem, que, caso contrário, cairia no ridículo diante da esfuziante Sheba. Elas são muito diferentes para sua Bárbara se impor de forma a atrair a outra para seu campo, sem manobras ou até jogo sujo.


 


               


Sheba atrai a atenção de todos pelo charme
                
                


 


Do outro lado está seu objeto de desejo, a bela Sheba, casada com Richard Hart (Bill Nighy), quase sessentão, mãe dos adolescentes Polly (Juno Temple) e de Ben (Max Lewis), nascido com “síndrome de dawn”. Charmosa, vivaz; ela não se dá pelas armadilhas que Bárbara espalha ao seu redor. Tenta ser agradável, companheira, como forma de retribuir à ajuda que a velha professora lhe deu quando estava em apuros na sala de aula. Constrói, sem perceber, o espaço para a outra entrar. E, meio sem querer, vai se desnudando até chegar ao impasse. A revelação de que está tendo um caso com um de seus alunos muda a relação entre ambas, pondo-as em campos opostos, a ponto de seu equilíbrio familiar se romper. Desta forma, entra-se em outro campo: o das relações entre o menor de idade e a mulher muito mais velha do que ele. E é uma réplica do que aconteceu, em termos, entre ela e Richard.



               


Uma relação desta natureza poderia gerar um filme com abordagem sensacionalista. Com ataques e discursos moralistas. Eyre foge ao clichê, em que um dos personagens é acusado de tudo enquanto o outro é vítima do que aconteceu entre ambos. O que equivaleria a isentar o menor de culpa ou dizer que foi ele o detonador do romance. O importante é o contexto que gerou a atração de um pelo outro. Sheba estava frágil demais, carente demais, para recusar os galanteios do adolescente Steven Connolly (Andrew Simpson). Trata-se de paixão, não de culpa. Os parâmetros aqui são outros. Eles são ditados por uma química muitas vezes inexplicável. Desnecessário bloquear uma atração usando métodos que culminem com a derrocada de quem chegou à maturidade. Esta visão não tem sentido algum. Menos para Bárbara, claro, que ao descobrir o caso de Sheba e Connolly, atira-se sobre a “amiga” para torná-la sua presa, depois de tê-la caçado o tempo todo e não ter obtido sucesso. 


 


               


Mídia surge como cão de guarda do conservadorismo


                


Espera a derrocada total da Sheba para se aproximar, mostrar-se útil. O faz com compaixão, entendimento de que a outra, enfim, estará presa em sua armadilha. As reações de Sheba mostram que a tarefa não será fácil. Há muito em jogo envolvendo a “amiga”, acusada de abuso sexual de menor, agravado pelo fato de ser, ela, sua professora. O “cão de guarda do sistema” então aparece. A mídia mostra-se a guardiã do castelo do conservadorismo, ao incitar em pleno Terceiro Milênio as chamas da fogueira da Inquisição. Faz pressão brutal para que Bárbara a entregue, depois de muito tentar protegê-la. A seqüência em que ela, Sheba, finalmente deixa seu refúgio é de uma ferocidade que beira o barbarismo. Cate Blanchett urra como um animal ferido de morte, enquanto dezenas de câmeras a circundam, querendo seu sangue. Sem discurso, palavras de ordem, só o curto diálogo, o som cortante e a figura gigantesca de Blanchett, uma atriz maior num mundo de estrelas menores.


 


As seqüências posteriores não perdem o tom. Eyre foge ao melodrama, deixa de realçar o sofrimento de Sheba, a perda da família, o afastamento da filha, também às voltas com uma relação conflituosa com o namorado adolescente. Não a condena. Continua a equilibrar a narrativa com sutilezas, gestos comedidos, sem lágrimas que manipulem as emoções do público. Sem mostrar uma Bárbara triunfante ou uma Sheba que desabe sob o peso da relação proibida com Steven Connolly. Cada uma delas segue o caminho que construiu. Apenas uma notícia pontua o contexto em que ficou Sheba. Bárbara, pelo contrário, continua a caçar – uma hora a presa cairá em sua rede e ela poderá, quem sabe, não viver uma velhice solitária. Eyre, como se vê, trata de temas explosivos de modo tranqüilo, deixando os personagens e suas ações interagirem com o público.


 


              
Burguesia segue parâmetros hoje ditados por Bento XVI
                           
              


Este poderá entender que o moralismo e o reacionarismo de Bárbara são conseqüência do modo como sua tendência sexual é tratada pela sociedade e a atração que o adolescente exerce sobre Sheba é resultado do que lhe foi ditado por sua natureza. Ou, no melhor dos casos, uma compensação que sua sexualidade encontrou para sua relação com o marido Richard, às vésperas da terceira idade. Com Steven Connolly ela tem o inesperado, o tesão constante, o proibido e uma paixão que a faz viver. Só que o preço por este prazer é demasiado caro. Enfim, nada que a sociedade burguesa não venha mantendo ao longo dos séculos como forma de bloquear relações que, a seus olhos e o conservadorismo religioso cada vez mais imperante, não sejam condizentes com a sua moral. Principalmente hoje diante da ampliação do retrocesso ditado pelo conservadorismo de Bento XVI, que vê os avanços dos movimentos civis como pecado. E, desta forma, cria comportamentos que ela mesma termina por recriminar, num circulo vicioso que mostra sua própria decadência.


 



“Notas Sobre Um Escândalo” (Notes on a Scandal). Drama, Inglaterra, 92 minutos, 2006. Roteiro: Patrick Marber. Música: Philip Glass. Fotografia: Chris Menges. Direção: Richard Eyre. Elenco: Judi Dench, Cate Blanchett, Bill Nighy.

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