O contragolpe militar na Turquia

Na coluna desta semana, pensei em comentar os resultados das eleições iraquianas, ocorridas ainda sob ocupação americana e realizadas no último domingo, 7 de março. No entanto, não há praticamente nenhum resultado preliminar. Mesmo os correspondentes dos jornalões brasileiros que se encontram em Bagdá, estão completamente por fora da realidade, no escuro, sem dados e informações. Assim, comento com meus leitores a situação da Turquia e um possível desbaratamento de um golpe militar.


Erdogan fala ao Fórum Econômico de Davos, onde Enfrentou Israel

Um pouco de história

A história mais recente da Turquia, a maioria das pessoas conhece bem. Com o fim do Império Turco Otomano ocorrido em 1922, e a partir de uma guerra interna no país, o Movimento Nacional Turco ganha destaque. Seu líder era um jovem oficial chamado Mustafá Kemal, mais conhecido como Ataturk (Pai dos Turcos na língua turca).

O tratado de Lausane de 14 de julho de 1923 reconhece a República da Turquia, que passa a ser independente, após a abolição do sultanato em 1º de julho de 1922. Com a tomada do poder por Ataturk e seus jovens oficiais, o país vai viver a sua maior transformação na história. As duas mais importantes mudanças ocorridas são a introdução do alfabeto latino no lugar do árabe e do persa e mesmo do turco usados até então, mudança essa ocorrida em 1928. Mas, depois disso, antes de sua morte, em 1938, Ataturk impõe o laicismo em todo o país, ou seja, aboliu os véus islâmicos (hijab), das mulheres e separa de forma absoluta o Estado da religião. Eram os ideais da Revolução Francesa colocados em prática.

Ataturk tinha posições anticlericais. Não saberia dizer se era ateu ou apenas contra a religião islâmica. Dele sabe-se de uma frase onde teria dito que “o Islã, essa teologia absurda de um beduíno imoral, é um cadáver putrefato”. Uma posição radicalizada. A Turquia vai viver nos 23 anos que ele ocupou o poder central, uma completa e radical separação do estado da religião. Vai virar as costas para o Oriente e olhar mais para o ocidente. Mudaram-se inclusive, as indumentárias masculinas e femininas. Os chapéus turcos foram abolidos e entraram em moda os chapéus panamá entre outros. O próprio Ataturk fazia questão de usá-los em público em cerimônias oficiais.

No entanto, ele tinha que ter apoio de algum setor da sociedade para fazer essas reformas profundas, que mexiam com a religiosidade da população, que é 98% muçulmana. Como o povo não participou diretamente desse processo, nem houve uma revolução popular que implicasse concordância com mudanças mais estruturais, como ocorreu na antiga Rússia com a Revolução Bolchevique, Ataturk teve que fazer essas mudanças pela força. Foi buscar apoio no exército turco, um dos maiores da Ásia até os dias atuais.

O exército turco: guardião das reformas

Dessa forma, os militares turcos passaram a ser uma espécie de guardiões do ideário kemalista de seu grande líder Ataturk. Para isso, todas às vezes nesses 77 anos que a Turquia dava algum sinal de retorno à islamização da sociedade, eles intervieram diretamente. Isso ocorreu em pelo menos três vezes, quando derrubaram governos que consideravam com tendências islâmicas (1960, 1971 e 1980). Em outros dois momentos, intervieram de forma mais indireta, como em 1997 e 2002. De lá para cá, nesses oito anos, ficaram nos seus quartéis. No ano de 2009, resolveram dar o ar da sua graça novamente.

Os militares turcos nunca se conformaram com a vitória de Recep Tayyip Erdogan desde 2002. Tentaram de todas as formas desestabilizar o seu governo, que eles desconfiam que quizesse restabelecer a forte influência do islamismo no país. No ano passado, chegaram mesmo a propor a cassação do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP na sigla em turco). Quase venceram. Por pouco não conseguiram cassar o registro do Partido no Tribunal de Cassação. Descobriu-se inclusive um plano golpista de 2003, muito detalhado, que só agora veio à tona.

Os militares radicalizaram desde então: nunca mais compareceram a qualquer solenidade pública oficial na Turquia convocada pelo governo do primeiro Ministro Erdogan e por seu presidente, também do AKP, Abdullah Gul, ambos muçulmanos considerados moderados. É a forma de eles protestarem contra a presença de mulheres com o véu árabe e islâmico, em especial ambas as esposas dos dois dirigentes máximos do país.

No entanto, as coisas ficaram mais sérias há cerca de três semanas. A grande imprensa deu pouco destaque. Mas, ficamos monitorando os desdobramentos. As notícias mais recentes confirmam que os militares tentaram um golpe, que já vinha sendo tramado há tempos. Previam inclusive ataques às mesquitas.

Erdogan, cuja popularidade esta em alta, tal qual Lula no Brasil, reagiu rapidamente. Debelou a manobra de alguns generais. Pelo menos 80 oficiais de altas patentes foram presos e estão sendo julgados no Palácio da Justiça de Besiktas. Entre eles estão generais, almirantes, brigadeiros e altos oficiais. Todos acusados de tramarem um golpe de estado, uma quartelada. Fracassaram.

Análise dos acontecimentos

Como tenho dito por diversas vezes nesses anos em minhas colunas, a questão do conflito que existe no Oriente Médio não é e nunca foi religioso. Pode ter componentes religiosos, é bem verdade. Mas o centro da questão é político, de terras, de fronteiras, de projetos coloniais. As potências sempre quiseram controlar toda a região por causa das suas riquezas, em especial o petróleo.

As reformas de Ataturk foram no sentido de tornar a Turquia mais ocidentalizada. Não é só uma questão de indumentária. No aspecto político. Queriam ser satélite do Ocidente, das potências europeias e dos ingleses, que, à época, eram a grande potência política, econômica e militar, ainda que já em franca decadência.

Desde o Tratado de Paris de 1951, com a criação da Comunidade Econômica Europeia, que culminou com o Tratado de Maastrich de 1992 que criou a União Europeia, a Turquia vem tentando de todas as formas ingressar na UE, sem sucesso até hoje. Dificilmente conseguirá. Como já disse Samuel Huntington em seu famoso artigo de 1995 na Foreing Office, traduzido como “Choque de Civilizações”, a Turquia tem imensas resistências na sociedade europeia de ingressar no continente, até porque quatro quintos de seu território estão na Ásia.

Com Erdogan a partir de 2002, as coisas podem estar mudando. Percebe-se hoje, de fato, uma maior presença da religião islâmica na vida política do país, na sociedade como um todo. Mas isso não significa uma islamização do país. Longe disso. O que vem ocorrendo é que provavelmente o Partido AKP de Erdogan, de um islamismo mais moderado e que nunca defendeu um estado islâmico, vem fazendo agora um caminho inverso do que os governantes anteriores fizeram. Vendo que dificilmente a Turquia será admitida na União Europeia, volta-se para a Ásia e em especial para o Irã e para a Síria. Pode-se até falar num certo bloco ou eixo Irã-Síria-Turquia. Por incrível que possa parecer, até o governo do primeiro Ministro moderado do Líbano, de Said Hariri, pode se juntar a esse bloco.

O comportamento de Erdogan em janeiro do ano passado no Fórum Econômico Mundial em Davos, quando enfrentou e cobrou abertamente o presidente de Israel, Shimon Peres, as injustiças que comete contra os palestinos em especial os ataques à Gaza, acabou fazendo com que a sua popularidade crescesse ainda mais. Ele foi recebido quando da sua volta à Ancara como heroi nacional.

Em vários momentos durante os ataques de dezembro de 2008 e janeiro de 2009 por parte de Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza, a Turquia tentou mediar acordos para um cessar fogo. Mesmo na tentativa de acordo de paz geral, ela coloca-se como contato indireto nos esforços de paz. Nunca permitiu nesse governo, que seu território fosse usado desde 2003 para bombardear o Iraque. Uma posição interessante. Isso sem falar na popularidade do primeiro Ministro advinda da melhora da situação econômica geral do país.

Ele tem apoio amplo de camadas populares, mas de imensas parcelas dos setores médios da sociedade e mesmo parte das elites. Isso faz com que os militares mais radicais fiquem isolados, o que dá ao governo mais força para fazer exatamente o que fez: uma espécie de contragolpe, prendendo mais de oito dezenas de altos oficiais golpistas.

Assim, podemos dizer que a Turquia hoje vive uma espécie de volta ao Oriente, ao contrário do que já fez no passado, quando olhava apenas o Ocidente, dando às costas ao seu povo e à sua região. Esperemos que isso possa contribuir para fortalecer seus laços com países árabes e os persas do Irã, na busca de um caminho soberano e independente de todo o Oriente Médio, com fronteiras seguras e com a paz para todos.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor