“O Escafandro e a Borboleta”: lições de Vida

Filme sobre jornalista que após sofrer ataque cardíaco fica preso à cadeira de rodas combina memória e linguagem para mostrar limites da criatividade humana

Preso a uma cadeira de rodas, o ex-editor da “Elle”, planetária revista feminina, Jean Dominique Bauby (Mathieu Amalric) se relaciona com o mundo a seu redor apenas com o olho esquerdo, depois de um derrame cerebral que o deixou paraplégico. Sua relação com o mundo, ao invés de se restringir, se amplia, pois lhe permite refletir sobre o que foi a sua vida até aquele momento e suas possibilidades dali pra frente. Sem qualquer mágoa ou culpa, ele analisa suas relações com a ex-mulher, Celine Desmoulins (Emmanuelle Seigner), a atual Jopséphine (Marina Hands) os três filhos ainda pequenos, suas amantes, o trabalho na “Elle” e o pai Papinou (Max von Sydow). A amargura que poderia surgir daí, ele dribla com energia suficiente para recriar seu universo interior e olhar o espaço onde agora está preso. O que não pode fazer deslocando-se fisicamente, ele o faz através de uma mente prodigiosa. Às vezes ruem montanhas e geleiras e ele se prostra para logo se reerguer.


 


 


São com estes entrechos, formados por fragmentos, recortes e lembranças e insights que o diretor estadunidense Julien Schnabel (“Basquitiá”) recria a vida do jornalista de 43 anos em filme, “O Escafandro e a Borboleta”, cheio de referências à linguagem e à memória. Seu personagem, real, Jean Do, como era chamado, é um profissional acostumado à vida em grandes, sofisticados e luxuosos ambientes, que se vê limitado ao leito de hospital, ligado a aparelhos e à cadeira de rodas, cercado de especialistas das mais diversas áreas. Um homem no auge de seu vigor, que se vale agora apenas da mente e do olho esquerdo para se manter vivo e criativo. Schnabel, no início não o mostra, transforma-o apenas numa voz, como a checar sua capacidade de ser inteiro, embora não o possa sê-lo, dadas às seqüelas do derrame cerebral.


 


 


Schnabel evita sentimento de pena em relação a Jean Do


 


 


 


Esta forma de apresentá-lo evita que o expectador se choque com o estado vegetativo que ele vive e se veja enredado no sentimento de pena que este tipo de cena normalmente provoca. Pretende com isto empatia, partilhamento, fato que irá acompanhar um e outro ao longo do filme. E evita que este também se arraste; como naquelas produções em que o doente oscila entre a sobrevivência e a derrocada, e o espectador termina envolvido sem tempo de raciocinar sobre a condição humana do personagem e sua relação com o mundo. Schnabel escolhe técnica apurada, burilando cada seqüência para atrair o espectador para o que importante: o drama humano e o que a ciência faz para lhe permitir usar o que lhe resta para não se desligar do que o cerca.


 


 


Difícil é torná-lo convincente, enquanto personagem real, e, ao mesmo tempo, instigante durante os 112 minutos que dura o filme. Schnabel o faz usando câmera subjetiva, foco destorcido e sobreposto. E cria; desta forma, certo estranhamento, dificuldade para o público entender o que se passa, pois tudo é desconhecido. Falta algo ali para ambos, expectador e personagem. Ambos terão que, devagar, ir absorvendo o ambiente, as falas e adaptando os olhos, como se ajustasse a lente dos óculos e o foco da câmera. Para Jean Do se trata de absorver o que o circunda, para o expectador entender o que se passa. Terão de fazê-lo às custas de uma narrativa fragmentada que privilegia o off (voz do personagem), a câmera inclinada, como se tudo tivesse de ir se aprumando, para a apreensão do todo.


 


 


Expectador terá que acreditar que personagem sobreviverá


 


 


Isto dará a sensação de que, ao longo do filme, personagem e expectador terão de acreditar que o que virá a seguir mudará a visão de ambos sobre as possibilidades de sobrevivência de alguém paraplégico sobreviver e se relacionar com o mundo, via linguagem, consolidada no texto. Este é, aliás, um dos temas de “O Escafandro e a Borboleta”. Ele, incapaz de se mover, articular a fala, se vale do mover de pálpebras para, letra por letra, ir formando palavras, frases, idéias, um livro inteiro. Uma articulação que se dá, também, por meio da técnica elaborada e aplicada por vários especialistas, que, pacientes, vão apreendendo seu universo e sua nova relação com o mundo exterior, já que interiormente nada mudou.



 



 


 


Sua capacidade de criar, elaborar e projetar continua intacta. Só não pode mais externá-la e dialogar com quem se relaciona através das pálpebras. Se a linguagem recriada lhe permite se comunicar e ditar todo um livro, é essa mesma linguagem que se torna sua forma de externar emoção, recusa; paixão. Nenhum movimento, além do mover das pálpebras, lhe é mais possível. A linguagem do corpo, a expressão facial, os gestos e o movimento articulado dos lábios lhes foram tirados pelo derrame que o vitimou. Schnabel nega ao expectador a oportunidade de sentir pena dele, instiga-o a acompanhar o que parece sua evolução. Não se está diante de um inválido, sim de alguém que irá usar o que lhe restou do corpo para se manter vivo.


 


 


Jean Do quer recriar “O Conde de Monte Cristo”


 


 


Quando ele sai pela primeira vez para o mundo exterior, um terraço que dá para o mar; é para se encontrar com a ex-mulher, Céline. Ela está distante, meio embaçada, e ao se aproximar, o faz como se falasse com uma criança. E ele, Jean Do, nos opõe em contato com esta mulher que ele deixou. Ele pensa em outra, em Inês, por quem está apaixonado. E Céline tece algumas frases, sem que o faça dela se recordar, salvo por Inês, sempre presente. Dois seres separados não pela sua condição atual, mas por algo, o amor, que não mais os liga. O mesmo se dá com o amigo Roussin (Niels Arestrup) a quem cedeu seu lugar no avião e para o qual não mais ligou, para se desculpar pelo que lhe aconteceu na viagem. Percebe-se assim que tipo de homem é Jean Do. Vai se saber mais sobre ele, quando, enfim, fizer sua mea culpa sobre as mulheres, os filhos e o mundo a seu redor. E também sobre a paixão que nutre pelo personagem Edmond Dantés, criação de Alexandre Dumas, eternizado no romance “O Conde de Monte Cristo”. E têm-se uma idéia do que pretende fazer. Algo que debate com o pai, Papinou, e ambos e se alegram sobre o que isto significaria.


 


 


Schnabel, ao fazê-lo tecer estes comentários, o mostra como alguém ligado ao seu tempo e, por isto, predisposto a refazer a história de Alexandre Dumas sob o ponto de vista da mulher. É jovem, criativo e vigoroso– a cena em que sua queda se dá aponta, no entanto, para outro lado. Suas elaborações, sonhos e projeções deverão ser, a partir daí, de outra natureza. Ele que agora está cercado por várias mulheres, cada uma especialista em uma área de seu corpo. É como se cada membro dele pudesse ser religado por meio de técnicas neurológicas, de terapia, de fonoaudiologia, de reaprender a articular palavras não usando lábios e língua. Deve, para isto, pôr-se inteiramente nas mãos de profissionais que trabalham com ele, separando cada um de seus membros para rearticulá-los, sem que isto signifique recuperar todos seus movimentos, inclusive os faciais.


 


 


Jean estranha batalhão de especialistas a seu redor


 


 


Chega-se, assim, à conclusão de que, na sociedade hiper-tecnológica, somos como uma máquina que deve ter sempre ao seu redor um batalhão de especialistas para fazê-lo funcionar, quando cessam algumas de suas funções físicas e neurológicas. Logo no início quando os médicos tentam diagnosticar o que, de fato ocorreu, e como afetou seu corpo, entende-se que a época do generalista, do clínico geral, ficou realmente para trás, não só nas fábricas, como nos hospitais. Alguém dirá que faz tempo, porém, caso entrechos como esses compusessem um filme sobre relações do trabalho ficaria óbvio demais, porém, ao sintetizar a relação paciente-especialista, fica ainda mais patente, uma vez que o próprio Jean Do se assusta com o nome das especialistas que diante dele surgem, com seus belos rostos, suaves palavras e uma disposição invejável para fazê-lo recuperar seus movimentos.


 


 


O belo de “O Escafandro e a Borboleta” é justamente isto; a capacidade do diretor em ir montando os entrechos de forma suave, sem deixar que a doença se sobreponha ao equilíbrio criado pelas seqüências. Diante do expectador está um ser humano numa situação aflitiva, mas não deve ser tratado como um inválido, alguém a quem se nega mesmo o instinto de sobrevivência – ele irá se virar com os membros que lhe restaram e, a partir daí, se relacionar com o mundo. Sim com o mundo, porque se transportará para além do quarto do hospital, se materializando nas páginas dos jornais, nas tvs, nas rádios, na mídia em si, e nas livrarias. E, daí em diante com o mundo.


 


 


Amalric passa a sensação de alheamento do personagem


 


 


Incomodam-no as primeiras tentativas das especialistas em trazê-lo de volta à vida, ao contato com os filhos, o aprender as novas linguagens e o espaço a seu redor. Quando isto se dá, fica normal, com toda a estranheza que isto possa causar. Mathieu Amalric, que faz Jean Do, consegue atrair para seu canto o expectador que vê apenas sua doença. Como se dissesse: estou sou eu, mas não sou mais eu. Posso desenvolver uma atividade com a qual me comprometi. O olhar fixo nas pessoas que o cercam é como o olhar de alguém que não mais está ali. Mas basta suas pálpebras se moveram para o expectador ver que a mensagem é falsa. Ele irá produzir, dia após dias, o livro que ele e Claude (Anne Consigny) irão escrever, como num ditado, usado por muitos escritores que poderiam sentar-se ao computador e não o fazem.


 


 


No final, quando a obra estiver pronta, ele confirmará o que Amalric/ Jean Do esteve a dizer o tempo todo: este sou eu e agora sou outro. Afirmação e negação; juntas o tempo todo. Numa espécie de recriação do ser humano numa situação limite. O suficiente para cada expectador testar sua capacidade de apreender espaços, pessoas e ações onde se locomove; se relaciona e age no cotidiano. Num filme que aponta a necessidade de cada um usar suas potencialidades insuspeitas, no instante em que não mais puder fazer uso de todos os membros de seu corpo. Sem dúvida, um filme que sem manipular as emoções do expectador o encurrala no espaço e situação que ele pretende ignorar. Belo filme!


 


 


“O Escafandro e a Borboleta” (“Le Scaphandre et lê Papillon”). Drama. França/EUA. 2007. 112 minutos. Roteiro: Ronald Harwood (“O Pianista”. Direção: Julian Schnabel. Elenco: Mathieu Amalric, Emmanuele Seigner, Marie-José Croize, Anne Consigny, Olatz Lopez Garmendra, Isaach De Bankolé, Marina Hands, Max von Sydow.


 


 


(*) Prêmio de Melhor Diretor e o Grande Prêmio Técnico no Festival de Cannes 2007, Globo de Ouro de Melhor Diretor e Melhor Filme Estrangeiro, BAFTA (premiação inglesa) de Melhor Roteiro Adaptado .

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