O espião Johnny de Graaf por inteiro

Em 2010, completaram-se 75 anos de um dos mais gloriosos capítulos da História da resistência popular no Brasil e um dos marcos da luta por um País democrático e soberano que procura romper com o imperialismo e o latifúndio.

A Aliança Nacional Libertadora (ANL), que na sua conjuntura ainda tinha um caráter antifascista muito intenso, foi protagonista da Insurreição de novembro de 1935, símbolo da luta ideológica do século 20, rememorada pelos movimentos sociais e políticos transformadores, exemplo do que não deve ser feito para brasileiros reacionários, de direita e ligados ao capital financeiro.

Em torno dela, uma memória em disputa até os dias atuais. Muitos dos pesquisadores sobre o tema e participantes daquele processo, entre eles Marly Vianna, Anita Leocádia Prestes, Nelson Werneck Sodré, Edgard Carone, Marcos del Roio, José Antônio Segatto, Ricardo Antunes, José Augusto Drummond, Paulo Sérgio Pinheiro, Fernando Morais, José Joffily, José Nilo Tavares, Francisco Viana, Dario Canale, Leila Fernandez, Ronald Chilcote, John W. F. Dulles, Roberto Levine, João Amazonas, Luiz Carlos Prestes, Agildo Barata, Dinarco Reis, Affonso Henriques, Leôncio Basbaum, Eloy Martins, entre outros, brasileiros e brasilianistas, se dividiram entre a tese central: predomínio e orientação da III Internacional Comunista para a criação de frentes populares antifascistas ou uma organização com peculiaridades nacionais.

Em minha dissertação de mestrado, 1935: a Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul. escrevi um capítulo sobre o tema, enfatizando mais a sua característica brasileira, sem deixar de lado o apoio da Kominterrn.

No geral, todos os pesquisadores sempre concordaram sobre os erros cometidos em 1935, essencialmente o predomínio da visão tenentista que preponderou no movimento, a qual priorizava a tomada dos quartéis no lugar da organização e insurreição das grandes massas proletárias e camponesas. O próprio Prestes, por várias vezes, em memórias e autocríticas sobre o movimento enfatizou estes aspectos. Mas, na época, poucos defenderam esta tese, entre eles “Harry Berger” ou Arthur Ernst Ewert, o ex-deputado do Reichstag alemão que foi preso, trucidado pela repressão policial e política brasileira, saindo da prisão, em 1945, absolutamente insano em decorrência das torturas sofridas.

A visão conservadora, enfatizando o “ouro de Moscou” na organização da Insurreição Nacional Libertadora, ganhou destaque com a obra Camaradas, do jornalista William Waack. Seu mérito foi ter sido um dos pioneiros nas pesquisas dos arquivos soviéticos após a abertura na década de 1990, com o fim da URSS. Mais ainda, pela descoberta da identidade de Paul Gruber, o espião duplo, traidor do movimento e especialista em explosivos (aquele responsável pela não explosão do cofre de Prestes) e que, na verdade se chamava Johnny de Graaf. Porém, apressado, Waack concluiu que Graaf fora morto nos processos de Moscou no final da década de 1930, apenas por “desaparecer” das informações dos arquivos pesquisados.

Em minhas pesquisas de tese, no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), cujos resultados estão em O fantasma do medo, descobri Johnny de Graaf vivo no Brasil de 1939. Ele voltara ao País e entre 20 de dezembro de 1939 a 3 de janeiro de 1940, após uma prisão pela polícia política, depois de ser descoberto passando rádios para a Inglaterra, prestou vários depoimentos circunstanciados no “Termo de Declarações e Respostas aos Quisitos Formulados pelo Sr. Cap. Delegado Especial”, elaborado na Seção de Segurança Social da Polícia Civil do Distrito Federal, na Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), a futura e famigerada DOPS. Depois disso, seu paradeiro não encontra mais evidências nos arquivos brasileiros, ao menos até agora pesquisados, mas isso não significava a sua morte.

Pois foi o historiador norte-americano R. S. Rose, um dos primeiros a pesquisar no fundo Polícias Políticas, abertos apenas no início dos anos 1990, no APERJ que articulou todo o paradeiro de Johnny de Graaf e recompôs sua biografia conjuntamente com Gordon D. Scott.

Autor de Uma das coisas esquecidas: Getúlio Vargas e controle social no Brasil (1930-1954), acaba de ser lançado no Brasil (final de 2010) Johnny: a vida do espião que delatou a rebelião comunista de 1935. Depois de intensa pesquisa em arquivos da ex-URSS, Brasil, Argentina, Alemanha, Inglaterra e Canadá, com farta documentação, além de entrevistas com familiares e diversos outros personagens marcantes do processo histórico que envolveu Graaf, está tudo ali. Desde o que já sabíamos, sua entrada na NKVD, futura KGB, a traição durante a Insurreição Nacional-Libertadora até a sua saída do Brasil, em 1940, a continuidade do trabalho no M-15 (popularmente chamado de Intelligence Service da Grã-Bretanha), sua ida para o Canadá, o posterior e longínquo trabalho de apoio à CIA e sua morte, aos 86 anos, de isquemia miocárdia aguda, depois de finalizar um currículo de serviços à reação de dar inveja a qualquer James Bond, um roteiro quase pronto para um grande filme de espionagem baseado em fatos reais.

Num grosso volume de 600 páginas, a história de Graaf confirma uma parte trágica da história do Paul Gruber, que todos pensavam ser um espião da Gestapo ainda no decorrer dos insucessos de 1935. Confirma o delator que, em trabalho conjunto do M-15 com a Light, seu diretor Alfred Hutt e o Governo Vargas, têm relação direta com a morte de Olga Benário, Elise Ewert (a “Sabo”), Victor Allen Baron e tantos outros lutadores brasileiros da ANL.

O livro de Rose/Scott apresenta uma convincente técnica literária na narrativa, marca da tradição anglo-saxônica de biografar baseada no romance, com muitas fontes comprovadas, com algumas elucubrações, mas que não compromete o livro nem mata ninguém a priori, como já fizera Waack em Camaradas.

Novas pesquisas que virão pela frente poderão dar conta de novas questões, agora menos com o livro Johnny. Não é tudo sobre 1935 e o papel nefasto de Johnny de Graaf. Mas é uma obra a ser lida por todos, especialmente para entender mais sobre a tática da infiltração traidora, tão recorrente nos movimentos operários e comunistas desde o século XIX, uma prática infeliz na qual aquele que está do nosso lado pode ser o mesmo que está entregando toda uma estratégia de luta.

Referências

KONRAD, Diorge Alceno. 1935: a Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: PUC-RS, 1994. Dissertação de Mestrado.

________. O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos sócio-políticos (1930-1937). Campinas: IFCH-Unicamp, 2004. Tese de Doutorado.
ROSE, R. S. Uma das coisas esquecidas: Getúlio Vargas e o controle social no Brasil/1930-1954. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

_____. Johnny: a vida do espião que delatou a rebelião comunista de 1935. Rio de Janeiro: Record, 2010.

WAACK, William. Camaradas: a história secreta da revolução brasileira de 1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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